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Always online: o fiasco do "deal with it", 10 anos depois

10 anos após o fiasco "deal with it" do Xbox One, que quase foi um console always online, a indústria adaptou o conceito de outras formas

44 semanas atrás

Os jogos always online, que exigem conexão constante à internet, não são uma novidade desde que a rede mundial de computadores™️ se tornou de acesso público. Há uma série de experiências do tipo, e por muito tempo este foi um recurso que fazia mais sentido em títulos multiplayer, como MMORPGs e, mais recentemente, os Battle Royales.

Em 2013, no entanto, a EA abriu uma nova e controversa tendência ao introduzir o novo SimCity, um game single player que só funcionava conectado à net. Paralelamente, a Microsoft e a Sony preparavam seus novos consoles, o Xbox One e o PS4 respectivamente, mas em Redmond, a ideia original era aplicar o conceito always online ao seu sistema.

Originalmente, o Xbox One só funcionaria conectado à internet (Crédito: The Verge)

Originalmente, o Xbox One só funcionaria conectado à internet (Crédito: The Verge)

Quando as primeiras informações a respeito do feature começaram a circular, a reclamação foi geral, do público e da imprensa. Nesse momento, o então diretor criativo da Microsoft Studios, Adam Orth, respondeu às críticas de uma forma que lhe custou muito, muito caro.

O primeiro "cancelado" da internet

Meses antes do Xbox One ser originalmente anunciado, a mídia especializada foi bombardeada por uma enxurrada de informações desencontradas, que envolviam diversos pormenores incômodos do console, que foram derrubados depois. Um deles, e um dos mais bizarros, era intenção da Microsoft cobrar uma taxa de games usados, que seria o preço cheio, para coibir o empréstimo e troca de mídias físicas entre jogadores, no que os estúdios não ganham um centavo.

Outro era a exigência de uma conexão constante à internet para que o Xbox One funcionasse, o que Redmond depois esclareceu ser uma checagem (ping) a cada 24 horas, um DRM implementado no dispositivo, similar ao que a EA fez com SimCity, para identificar modificações em hardware e jogos, ou pirataria. Se o ping falhasse, o console deixaria de funcionar.

Quando o rumor de uma conexão constante para usar o Xbox One se espalhou, muita gente criticou a Microsoft com razão, mas Adam Orth não soube lidar bem aos questionamentos. Em uma discussão no Twitter com Manveer Heir, então designer de jogabilidade da BioWare, que apontou os lançamentos problemáticos de SimCity e Diablo III como exemplos do que não fazer, Orth disse o seguinte:

A sequência de tweets desastrosos de Adam Orth entrou para a posteridade (Crédito: Reprodução/Twitter)

A sequência de tweets desastrosos de Adam Orth entrou para a posteridade (Crédito: Reprodução/Twitter)

"Desculpe, mas eu não entendo o drama sobre existir um console 'always online'. Todo dispositivo está sempre conectado hoje em dia. Esse é o mundo em que vivemos. #dealwithit"

Orth não só defendeu a existência de um console de mesa sempre conectado à internet, como transferiu a culpa para os jogadores que moravam em regiões sem internet rápida, e que a rede está sujeita a instabilidades em qualquer lugar, da mesma forma que a rede elétrica.

Como se não bastasse, o então chefe da divisão Xbox, Don Mattrick, jogou mais gasolina no fogo, ao dizer que os jogadores que não possuíam conexões estáveis, ou rápidas, para garantir o adequado funcionamento do Xbox One, deviam comprar o Xbox 360, defendido pelo executivo como a opção offline da Microsoft.

A coisa escalou de tal forma, que a Microsoft teve que vir a público pedir desculpas pelas declarações de Adam Orth, e todas as restrições, do ping diário à taxa de games usados, caíram. Tanto o diretor criativo quanto o chefão Don Mattrick saíram da companhia, com este assumindo o cargo de CEO da Zynga; em 2014, Phil Spencer foi promovido a chefe da divisão de games da gigante de Redmond.

Adam Orth chegou a ser ameaçado de morte devido sua postagem infeliz, que quase destruiu sua carreira (Crédito: Dean Takahashi/VentureBeat)

Adam Orth chegou a ser ameaçado de morte devido sua postagem infeliz, que quase destruiu sua carreira (Crédito: Dean Takahashi/VentureBeat)

De lá para cá, a ideia de um console de mesa sempre conectado à internet se tornou um tabu, mas muitos dos títulos de sucesso hoje em dia acabaram por incorporar a filosofia do always online, por mais de um motivo, mesmo em experiências nas quais ela não faz tanto sentido em primeiro lugar.

GaaS e always online

Em 10 anos, a disponibilidade de conexões a internet de alta velocidade aumentou bastante, ainda que não tenha ainda chegado a todos os lugares, as velocidades aumentaram e os preços se tornaram mais acessíveis. Citando meu exemplo, em 2013 eu tinha que me virar com um plano ADSL de 4 Mb/s, o único disponível na minha região (graças a upgrades no plano, adquirido em 2004 e originalmente de 600 Kb/s; para venda, o limite era 2 Mb/s), um bairro no extremo da Zona Leste da cidade de São Paulo, que me custava mais de R$ 100 mensais.

Atualmente, diversas operadoras competem pelo público, e oferecem em uma região de periferia planos por fibra óptica de até 1 Gb/s; o meu, de 500 Mb/s, é mais barato do que o que eu tinha uma década atrás, e 125 vezes mais rápido. Antes, era preciso mais de 30 horas para baixar um game de 50 GB, enquanto hoje, esse tempo fica em torno de 15 minutos.

A maior oferta de planos de internet rápidos e menos caros, e em mais lugares, permitiu a empresas de diversos ramos da TI investirem pesado no conceito Everyhing as a Service (XaaS), em que ao invés de oferecer um produto como venda única, o mesmo é transformado em um serviço online, cujo acesso é feito mediante assinatura ou vendas acessórias.

Os games não ficaram imunes a isso. Hoje existem diversos títulos que só funcionam conectados à rede, e nem falo dos suspeitos óbvios, que dependem da net para o básico, como os dos gêneros multiplayer, que incluem MMORPGs (World of Warcraft, Final Fantasy XIV), Battle Royales (Fortnite, PUBG Battlegrounds, Free Fire), FPS competitivos ou colaborativos (Counter-Strike: Global Offensive, Apex Legends, Destiny 2, Overwatch 2), MOBAs (League of Legends, DOTA 2), etc.

O conceito de GaaS foi estendido também a experiências single player, no que Diablo III e SimCity foram os primeiros exemplos em PCs e consoles, mas podemos citar também títulos como For Honor e Gran Turismo Sport, além da totalidade dos gacha games, sejam os móveis ou para consoles e PCs, incluindo os títulos da Hoyoverse, Genshin Impact e o mais recente Honkai: Star Rail.

Mesmo experiências essencialmente single player, como Genshin Impact e o mais recente Honkai: Star Rail, exigem conexão constante (Crédito: Divulgação/Hoyoverse) / always online

Mesmo experiências essencialmente single player, como Genshin Impact e o mais recente Honkai: Star Rail, exigem conexão constante (Crédito: Divulgação/Hoyoverse)

Embora sejam essencialmente JRPGs de mundo aberto com interações multiplayer limitadas, tanto Genshin Impact quanto Honkai: Star Rail não funcionam sem uma conexão constante à internet, mesmo no PS5, PS4 e PC.

O público se não aceitou o always online, ao menos se convenceu de que não adianta reclamar, pois mesmo que a máxima "votar com a carteira" continue valendo, muitos jogadores preferem aderir a jogos oferecidos como serviços, sejam eles gratuitos ou não.

Adr1ft e autorreflexão

Tendo sido pivô de uma situação desagradável, e após falar muita besteira (e ter sido bastante agressivo e insensível), Adam Orth viu sua vida virar um inferno. O desenvolvedor acabou ostracizado e ridicularizado, por gamers e pares na indústria, e antes de encerrar suas contas nas redes sociais, ele chegou a receber 60 mensagens negativas por minuto, incluindo ameaças de morte contra ele e sua família, de gente que dizia saber onde ele morava.

Isso o obrigou a sair de Seattle e se mudar para o sul da Califórnia, e foi nesse período que ele resolveu espelhar suas frustrações, as consequências com as quais ele estava lidando pelo que ele disse, e o processo de tentar sair da situação em que se meteu, em um novo game. O resultado foi Adr1ft, lançado em 2016 para PS4 e Windows.

No game, o jogador assume o papel de um astronauta à deriva no espaço, após um acidente na estação espacial do qual ele não se lembra de como ocorreu. Sua missão é entender a situação e resolver o problema, enquanto junta os pedaços da história e tenta entender como a catástrofe ocorreu.

Adr1ft (Crédito: Divulgação/Three One Zero/505 Games) / always online

Adr1ft (Crédito: Divulgação/Three One Zero/505 Games)

Na época, Orth disse que o game foi "a forma que encontrei de lidar com isso", parafraseando a si próprio, no que Adr1ft é um espelho de toda a situação em que ele se meteu, e que agora cabia a si próprio resolver; o desenvolvedor diz que ficou o aprendizado, mas o título foi mal recebi por público e crítica, e ironicamente (talvez não), a versão planejada para Xbox One foi cancelada. O estúdio Three One Zero, responsável pelo game, fechou em 2017.

Adam Orth faz parte do time da Digital Eclipse, estúdio especializado na preservação de games antigos, ao lançar coletâneas com novas abordagens e roupagens para títulos clássicos. Hoje, ele admite que não deveria ter soltado o famigerado #dealwithit, mas diz que esta era uma lição que ele precisava aprender, para o bem e para o mal, e que, sim, ele "lidou com isso".

Por outro lado, embora consoles always online não sejam, e talvez nunca sejam, uma realidade, é curioso notar que quase todos os jogos mais populares, sejam multi ou single player, só funcionem se conectados o tempo todo à internet, independente da plataforma.

Fonte: GamesIndustry.biz

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