Ronaldo Gogoni 09/08/2024 às 17:00
Batman: Cruzado Encapuzado (Batman: Caped Crusader no original em inglês) é a mais recente série animada protagonizada pelo vigilante sombrio de Gotham após uma década inteira, desde A Sombra do Batman (2013 — 2014). A seu favor, a produção conta com o retorno de Bruce Timm à produção, o responsável pela criação do Universo Animado da DC original, com Batman: A Série Animada mais de 30 anos atrás.
Além de Timm, Cruzado Encapuzado tem como produtores executivos pesos pesados como JJ Abrams, Matt Reeves, diretor de The Batman, e Ed Brubaker, o responsável por quebrar de forma espetacular uma das regras não-escritas da Marvel, ao reviver Bucky Barnes, o sidekick original do Capitão América, como o Soldado Invernal.
O mais irônico é lembrar que, mesmo com essa turma reunida, a série quase não saiu; foi preciso a Amazon jogar um caminhão de dinheiro no colo de David Zaslav, CEO da Warner Bros. Discovery, para garantir os direitos de produção e distribuição, e abrigar o homem-morcego em uma nova batcaverna.
Batman: Cruzado Encapuzado segue o formato "monstro da semana", contando uma aventura fechada em cada um dos 8 primeiros episódios, e uma trama contínua nos dois últimos. Diferente d'A Série Animada, um tanto anacrônica em alguns aspectos, a história aqui se passa claramente no fim dos anos 1930, alinhando-se à estreia do Batman nos quadrinhos, em 1939.
Isso é percebido no design de Gotham, com carros antigos para todo lado, nas roupas dos personagens, câmeras, acessórios, TVs preto-e-branco, e no próprio Batman: seu traje é claramente inspirado no de Detective Comics #27, com orelhas mais longas e anguladas, e as luvas curtas, embora pretas; as originais eram... roxas.
Na história, Bruce Wayne começou a atuar como Batman há pouquíssimo tempo, no início da série ele é uma lenda urbana, ninguém bota fé na sua existência, bandidos e polícia. Gotham continua o poço de podridão de sempre, com policiais corruptos e poucos que ainda acreditam no sistema, como o comissário James Gordon, sua filha Barbara, aqui uma defensora pública, e a detetive Renee Montoya.
Além destes, há o promotor público Harvey Dent, em sua campanha para prefeito de Gotham, e uma guerra entre dois grupos criminosos no início, o do chefe mafioso Rupert Thorne, e de uma organização rival, revelada no piloto como liderada por Oswalda Cobblebot, que usa uma fachada de dona do Clube Iceberg. Sim, o Pinguim aqui é uma mulher, e passa uma vibe muito mais ameaçadora que o original.
Em alguns momentos ela lembra a Mamãe, de Futurama, mas ainda mais sinistra; Oswalda não tem o menor melindre de colocar seus próprios filhos para nadarem com os peixes, se eles atrapalharem seus planos.
Batman tem à disposição seus já clássicos brinquedinhos, como o Batmóvel, o arpéu, batarangues e bombas de fumaça, mas nada muito mais tecnológico que isso. Ele se vira com o que havia na época, incluindo transmissores de rádio e uma linha de telefone privada, operada por Alfred Pennyworth, aqui uma mistura do mordomo que todos conhecem com Alfred Beagle, o original da Terra-2.
Aliás, cabe mencionar que o morcego é bem inexperiente e impulsivo, ainda mais taciturno, e definitivamente não confia em ninguém, nem mesmo em Alfred, a quem ele vê como um servo e só o chama pelo sobrenome; até seu advogado e contador, Lucius Fox (que aqui, não é o criador dos gadgets do Batman), critica Wayne por não tratar seu empregado "como gente". Claro, isso muda no decorrer da série.
No geral, Batman: Cruzado Encapuzado é uma releitura à origem do Batman, um personagem fortemente inspirado nas histórias de detetives, e em personagens do rádio e romances pulp como O Sombra, a quem Bob Kane e Bill Finger chupinharam de alto a baixo, por mais que muitos neguem.
As histórias seguem um estilo investigativo, com várias nuances do gênero noir já exploradas por Bruce Timm antes, mas aqui, com a história estabelecida de fato no período pré-WWII, foi possível ir bem mais fundo. Os vilões desta temporada, escolhidos a dedo, incluem releituras interessantes para tipos como Mariposa (aqui, mais próximo do Vaga-lume pós-A Série Animada) e Arlequina, e homenagens às encarnações originais de outros, como Mulher-Gato, Fantasma Fidalgo (um dos poucos momentos em que Wayne é forçado a reconhecer que há coisas que sua lógica não explica), e Cara-de-Barro.
Dentre os mais recentes vilões da DC, destaque para o bizarro Onomatopeia, o assassino que só fala efeitos sonoros, criação de (finja surpresa) Kevin Smith.
A gestação de Batman: Cruzado Encapuzado foi extremamente complicada, mais uma prova de que nenhuma franquia da Warner está 100% segura sob a gestão de David Zaslav. Vez após outra, o atual CEO já deixou claro que só se importa com dinheiro, seja para ganhar o máximo possível, ou para poupar a qualquer custo.
Dois exemplos recentes foram os write-offs (inclusão para desconto no IR, basicamente uma admissão de dinheiro jogado fora) dos filmes Batgirl e Coyote vs. ACME, o primeiro em pós-produção, o segundo finalizado, que foram deletados e deixaram de existir.
Coyote vs. ACME chegou a ser exibido em salas em teste, e comparado por quem viu a Uma Cilada para Roger Rabbit, mas Zaslav o cancelou, tentou vender para outros estúdios por US$ 80 milhões sem direito a contra-propostas, e quando ninguém assumiu, mandou a produção para o limbo.
Batman: Cruzado Encapuzado quase teve o mesmo destino. Anunciada em 2021 para o Max, a série foi tesourada em agosto de 2022 por Zaslav, durante a rodada de reestruturação da Warner para cortar gastos de onde quer que fosse. Timm, Abrams, Brubaker e Reeves foram autorizados a buscar compradores, e a Amazon passou à frente de outros como Apple e Netflix, colocando o MGM Studios à disposição dos produtores.
A série garantiu uma segunda temporada dois anos antes da estreia da primeira, mas Ed Brubaker, que escreveu alguns dos episódios desta, não trabalhou na sequência, devido à greve dos roteiristas de 2023, o que é uma pena: quem leu os arcos do Capitão América Tempo Esgotado e O Soldado Invernal sabe o quão bom ele é; aqui, ele assina os episódios 3 (com Bruce Timm), 4 e 10.
Greg Rucka (Gotham Central, escrito em parceria com Brubaker e Michael Lark, A Velha Guarda), Halley Gross (The Last of Us, Chernobyl), Marc Bernadin (Star Trek: Picard, Castle Rock), e as gêmeas Adamma e Adanne Ebo (Sr. & Sra. Smith, a série) são os demais roteiristas, assim como Jase Ricci (Batman: A Perdição Chegou a Gotham), que assina o piloto com Bruce Timm, e o 9.º episódio sozinho.
Tecnicamente, a série trabalha bem com a estética noir que o tema pede, Gotham continua suja, opressiva e sombria, e os vilões seguem um design muito mais sóbrio e soturno, algo que você veria em filmes da época.
A dublagem original também é caprichada, com Hamish Linklater como Bruce Wayne/Batman, Jason Watkins como Alfred, e John DiMaggio como Harvey Bullock, além de algumas surpresas como Christina Ricci (Selina Kyle/Mulher-Gato), Jamie "Mulan" Chung (Harleen Quinzel/Arlequina), e Haley Joel Osment (Anton Knight).
A localização brasileira segue o esperado, com Márcio Seixas outra vez emprestando sua voz ao protagonista.
Batman: Cruzado Encapuzado causou o alvoroço de sempre, com os suspeitos habituais reclamando de "wokismo" por mudanças em alguns personagens; o fato de Jim e Barbara Gordon serem negros, ou Harleen ser sino-americana, fora a já mencionada Pinguim, não diminui em nada a qualidade do roteiro e da animação da série.
Esta é só mais uma versão de uma história que todos conhecem, assim como os Titãs ultra violentos em live-action contrastando com os originais e os retardados de Teen Titans Go, e o Snyderverso em relação a tudo que já foi feito em filmes e séries antes, com os heróis de Zack Snyder serem mais deuses que humanos.
Quem ignorou os chatos encontrou uma obra de alta qualidade, que estreou com 100% de aprovação da crítica no Rotten Tomatoes, tal qual Minhas Aventuras com o Superman, que foi igualmente atacada.
A meu ver, Batman: Cruzado Encapuzado se sustenta como uma versão pulp do mundo do morcego, que ainda não é um Cavaleiro das Trevas, e precisa aprender a ser, o que inclui confiar em seus aliados na luta contra o crime. E se há uma coisa que Bruce Timm, JJ Abrams, Ed Brubaker, e Matt Reaves não fizeram, foi entregar uma obra meia-boca.
Já para quem acha que esse Batman "estragou" sua infância, só lamento.
5/5 você-sabe-quem.
Batman: Cruzado Encapuzado está disponível no Amazon Prime Video.