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Sobre Apple, Jon Stewart, e o problema com narrativas

Jon Stewart afirma que Apple não o permitiu falar de IA e China, ou entrevistar Lina Khan, presidente da FTC; maçã irritou Congresso dos EUA

03/04/2024 às 8:45

Jon Stewart voltou a colocar a Apple em uma saia justa. Nesta segunda-feira (1.º), o comediante e apresentador do Daily Show cutucou a ferida aberta do cancelamento do programa do Apple TV+ The Problem with Jon Stewart, em outubro de 2023, com um segmento focado em uma das pautas barradas pela maçã: Inteligência Artificial (IA).

Na época, Stewart comentou que a maçã o proibiu de abordar este tema e a China, no que "diferenças criativas" entre as partes levaram ao cancelamento sumário da atração; agora, o apresentador revelou, no ar, que a Apple também o "aconselhou" a não entrevistar Lina Khan, presidente da FTC (Comissão Federal de Comércio), o órgão dos Estados Unidos equivalente ao CADE no Brasil.

Cancelamento de The Problem with Jon Stewart foi entendido por comitê do Congresso como subserviência da Apple às pautas de Pequim (Crédito: Scott Kowalchyk/CBS/Getty Images/Ronaldo Gogoni/Meio Bit)

Cancelamento de The Problem with Jon Stewart foi entendido por comitê do Congresso como subserviência da Apple às pautas de Pequim (Crédito: Scott Kowalchyk/CBS/Getty Images/Ronaldo Gogoni/Meio Bit)

Embora não seja um movimento de censura per se, o ponto específico de não permitir que Stewart falasse sobre a China rendeu questionamentos do Congresso, e a confirmação de que ele também foi impedido de conversar com a reguladora mais odiada pelas big techs do país só joga mais gasolina no fogo.

"Não fale mal da IA (nem da China)!"

The Problem with Jon Stewart foi o resultado de um acordo de longa duração entre a Apple e o comediante, afastado da TV de forma regular desde que deixou a apresentação diária do The Daily Show, em 2015. A atração, distribuída exclusivamente no Apple TV+, teve 20 episódios divididos em duas temporadas, de 2021 a 2023.

O programa tinha o mesmo formato do Daily Show e similares, focado em uma pauta fixa por episódio, com segmentos humorístico/jornalístico/opinativos e entrevistas, cada um pareado a um podcast, com ambos os roteiros escritos por Stewart e sua equipe, que na teoria, tinham total liberdade criativa.

O que Jon Stewart logo descobriu, assim como o Neo, é que o controle remoto nunca fica na mão dos apresentadores, atores, etc., e sim nas do dono do parquinho, no caso, a Apple. Por outro lado, a maçã também descobriu, da pior maneira, que controlar uma wild card como Stewart era praticamente impossível.

Em novembro de 2023, o acordo foi abruptamente cancelado do lado da Apple, levando ao fim do The Problem, sem maiores explicações. O que chegou a público veio de fontes próximas, que apontavam "diferenças criativas" entre Stewart e a maçã, mais especificamente, o apresentador teria dito à sua equipe que a matriz não gostou de suas opiniões a respeito de duas pautas sensíveis, China e IA, e teria barrado ambas.

O primeiro "não" envolve, obviamente, dinheiro. A Apple mantém acordos muito vantajosos com o governo do premiê Xi Jinping, que viabilizam a produção de seus gadgets nas manufaturas da Foxconn, e uma maior fatia do mercado de bens e serviços, embora esse casamento já tenha visto dias melhores. Mesmo assim, não seria conveniente, do ponto de vista de negócios, permitir a Stewart descer o malho em um de seus parceiros mais valiosos.

Já a IA se tornou o Santo Graal da indústria tech da vez, todas as grandes companhias estão investindo no setor, e claro que a Apple não ficaria de fora; especula-se que Tim Cook fará um grande anúncio a respeito durante o keynote da WWDC24, em 10 de junho de 2024, introduzindo a solução de Cupertino obviamente exclusiva para uso em iGadgets, a ser posicionada como a "definitiva" e "perfeita", com todos os chavões e claques clássicos da empresa.

A pauta de Stewart a respeito da IA, barrada pela Apple e revisitada no Daily Show desta segunda-feira, embora hiperbólica como de praxe, usa as declarações de diversos executivos tech, incluindo Satya Nadella, CEO da Microsoft, contra eles próprios, ao apontar a hipocrisia da tecnologia "voltada a melhorar o mundo", quando, na verdade, ela seria desenvolvida primariamente para tomar empregos, reduzindo a necessidade de mão-de-obra humana nos mais diversos setores.

Stewart também apontou o dedo para as falácias do "auto melhoramento", que não se aplica a alguém desempregado, cuja prioridade é pagar as contas e por comida na mesa, e do "treinamento para novas profissões", a mesma ladainha usada desde o boom da automação industrial, que mandou muitos peões de chão-de-fábrica para a rua.

Considerando que a Apple pretende investir pesado em IA, assim como aconteceu com a pauta da China, não é interessante contar com um programa exclusivo no acervo do Apple TV+, questionando seus próprios produtos. O que a maçã quer é endosso, não pauladas, e quando ficou óbvio que Jon Stewart não pode ser controlado, The Problem foi cancelado.

No fim, Stewart acordou seu retorno ao Daily Show apenas nas segundas-feiras, onde o Comedy Central (hoje propriedade da Paramount) sempre lhe deu carta-branca, e isso não mudou, o que nos traz à revelação de outra pauta barrada por Cupertino.

Apple barrou entrevista com Lina Khan

Lina Khan, entrevistada do Daily Show nesta segunda-feira, é atualmente a norte-americana mais persona non grata entre as big techs dos EUA, muito provavelmente ficando atrás apenas dos comissários da União Europeia (UE) Margrethe Vestager (Concorrência e VP Executiva do bloco) e Thierry Breton (Mercado Interno).

Quando o presidente dos EUA Joe Biden indicou Khan para a chefia da FTC, houve um movimento do setor para barrar a escolha, sem sucesso, visto que ela incomodava as gigantes desde a faculdade de Direito. Desde então, ela tem se mostrado uma tremenda pedra no sapato do Vale do Silício, ao abrir processos contra a Amazon e Meta por monopólio, apoiar os do Departamento de Justiça (DoJ) contra Apple e Google, e continuar investindo para reverter a compra da Activision Blizzard pela Microsoft.

Durante a entrevista, Stewart confirmou que a Apple foi contra o quadro sobre IA, e adicionou que os executivos da companhia o "aconselharam" contra (na prática, vetaram) a participação de Khan no podcast do The Problem.

"Eu preciso te dizer, eu queria trazer você para um podcast (do The Problem), e a Apple nos pediu para não fazê-lo — para não convidar você. Eles literalmente disseram, 'por favor, não fale com ela' (...). Eles não nos deixaram nem fazer aquela coisa boba sobre IA do primeiro bloco.

Por que essa sensitividade? Por que eles (as big techs) têm tanto medo de entrar nessas discussões em público?"

Lina Khan respondeu que "é o que acontece quando você coloca poder demais nas mãos de poucas companhias", e o Congresso dos EUA também está preocupado com isso. O cancelamento do The Problem gerou uma carta, emitida pelo Comitê de Investigação do Partido Comunista da China da Câmara dos Representantes, intimando Tim Cook a dar satisfações.

No documento, legisladores Democratas e Republicanos demonstraram preocupação sobre o que entenderam como a Apple coibindo conteúdos críticos à China, por medo de prejudicar seus próprios negócios, e citou uma suposta subserviência para não irritar o ursi- digo, premiê Xi, o que não é exclusividade da maçã, vide o que aconteceu com Enes Kanter Freedom, ex-jogador da NBA, banido informalmente da liga por suas críticas a Pequim; ele não pode aparecer em transmissões na China, logo, sua presença em tela é prejuízo. Sim, o Congresso também questionou a NBA.

Vale lembrar que é desejo do governo dos EUA, desde a gestão Trump e mantido na de Biden, que a maçã e outras companhias tech voltem a produzir componentes e chips na América, o que elas não querem de jeito nenhum, pois os custos seriam muito maiores.

O que sabemos hoje, a Apple já usa soluções de IA internamente, mas um produto voltado ao consumidor final (dizem, provido pelo Google, o que não boto fé) seria a next big think da maçã, e a última coisa que permitiriam é um parceiro na produção de conteúdo questionando seus métodos e produtos. Ao mesmo tempo, dar espaço a uma reguladora que está disposta a acabar com a farra de todas as gigantes tech dos EUA, Apple inclusa, e que também está de olho na IA, é um grande no-no.

Resta saber se a Apple ter barrado Lina Khan, pressionando pelo controle de narrativas e impedindo um criador de conteúdo falar o que pensa, irá repercutir, mas eu diria que isso é quase certo, visto que o governo Biden está no modo Tolerância Zero.

Fonte: Ars Technica

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