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Full Void — As cicatrizes do isolamento

Fazendo homenagem aos clássicos jogos de plataforma cinematográficos e servindo como metáfora ao isolamento, você precisa jogar Full Void

12 semanas atrás

Quando ainda era moleque, um dos meus passatempos preferidos era ir até uma locadora (não só de games) e garimpar. Isso me permitiu conhecer muitos títulos poucos falados, algumas pérolas que até hoje considero entre as minhas favoritas. Fazer algo parecido hoje em dia é algo quase impossível e nem me refiro ao fim daqueles estabelecimentos, mas a tanta informação a que temos acesso. Mesmo assim, vez ou outra me vejo fascinado por algum jogo sem fama, uma grata surpresa como o belíssimo Full Void.

Full Void

Crédito: Divulgação/OutOfTheBit

Lançado na metade de 2023, eu só fui tomar conhecimento desse título indie devido a uma matéria que falava sobre ele ter sido adaptado para os aparelhos da Evercade, videogames voltados para os jogos retrôs e que rodam cartuchos. Naquela ocasião, imaginei que a criação da OutOfTheBit fosse exclusiva de tais consoles, mas impressionado com a qualidade da sua pixelart, quis saber mais sobre o título.

Foi então que descobri que além do Full Void estar disponível há alguns meses, ele contava com versões para todas as plataformas atuais (PC, Nintendo Switch, PlayStation 4, PlayStation 5, Xbox One e Xbox Series S|X). Imediatamente percebi que eu precisava jogá-lo e ao ver que no PC e no híbrido da Nintendo ele custa quase o mesmo, não pensei duas vezes e optei pelo Switch.

Mas o que teria despertado tanto o meu interesse naquele título sobre o qual nunca tinha ouvido falar? Para começar, o seu estilo: Cinematic Platformer. Caso não conheça esse subgênero, ele engloba jogos de plataformas — geralmente 2D — com um grande foco na precisão e realismo dos movimentos, assim como no enredo. Entre os principais representantes temos Prince of Persia, Another World, Heart of Darkness e o meu tão adorado Flashback: The Quest for Identity.

A triste realidade é que jogos assim sempre foram raros e por isso minha surpresa ao saber que um deles chegou às lojas recentemente e passou pelo meu radar. Só isso já deveria ser o suficiente para chamar minha atenção, mas a parte visual do Full Void foi outro aspecto que me atraiu.

Crédito: Divulgação/OutOfTheBit

Para muitas pessoas, atualmente não há mais espaço para jogos feitos com gráficos pixelados, que remetam diretamente à época em que os polígonos ainda não tinham tomado a indústria. Respeito essa opinião, mas a pixel art é algo que me agrada muito, mesmo numa tela grande e de altíssima resolução. Além disso, para um jogo que buscou tanta inspiração nos clássicos do gênero, não seguir seus passos na parte estética seria, a meu ver, uma escolha equivocada.

E quanto a isso, posso dizer que o pessoal da OutOfTheBit fez um ótimo trabalho. Aproveitando o maior poder de processamento das máquinas atuais, eles conseguiram entregar cenários bastante detalhados e variados, um sistema de iluminação que ajuda a tornar o Full Void muito bonito e assim garantir que a imersão fosse a maior possível.

Avançar pela cidade em que a história se passa é estar sempre sob uma atmosfera bastante pesada, com o jogo conseguindo passar uma tensão e um medo maior do que encontramos em muitos títulos que miram no fotorrealismo.

No entanto, é na movimentação do protagonista que o Full Void realmente se destaca. Com uma animação bastante fluída, é fácil aceitarmos que aquele é um garotinho que está lutando pela sua sobrevivência, com seus movimentos muitas vezes parecendo até mais naturais do que os vistos nas lendárias obras de Jordan Mechner, Éric Chahi e Paul Cuisset.

Full Void

Crédito: Divulgação/OutOfTheBit

Quanto ao enredo, o jogo também usa o padrão do que era feito nos Cinematic Platformer de outrora, que é entregar muito, mesmo dizendo tão pouco. Aqui não espere demorados diálogos com NPCs, arquivos para serem encontrados e que visam nos situar na história, nem mesmo longas sequências não-interativas.

Assim como acontecia no Another World, muito do que aprenderemos sobre o universo de Full Void está nos detalhes, no mundo que nos cerca e nas ações que o protagonista realiza conforme avança pelo cenário. Sim, a comparação com um dos jogos mais importante quando se trata de narrativa talvez seja muito pesada, mas é a maneira mais fácil de explicar como o título da OutOfTheBit funciona.

Se passando num futuro distópico, a história fala sobre uma época em que as máquinas se rebelaram contra a humanidade, aniquilando qualquer pessoa que encontram pelo caminho. Neste cenário seremos um adolescente que parte em busca de uma salvação, contando apenas com um notebook guardado em sua mochila e muita coragem — alguns chamariam de irresponsabilidade.

Durante boa parte do caminho o protagonista-sem-nome estará sozinho, tendo que hackear terminais para abrir caminho, evitar a todo custo os robôs e os muitos perigos espalhados pela cidade abandonada, além de realizar saltos que precisarão ser milimetricamente calculados, o que diga-se, se tornará bem mais simples após entendermos como tudo funciona baseado num sistema de grids.

Falando assim, pode parecer complicado, mas a jogabilidade de Full Void é bem simples, principalmente para os padrões atuais, com o jogo contando apenas com um botão para pulo e outro de ação. Ele até nos entrega alguns quebra-cabeças, mas no geral, esses desafios são de fácil solução e não deverão te prender por muito tempo.

Full Void

Crédito: Divulgação/OutOfTheBit

O que deverá tirar uma pouco da paciência de alguns é a maneira como o jogo se escora na ideia da tentativa e erro. Novamente bebendo da fonte do Anotther World, há inclusive uma clara referência ao clássico logo no início, quando seremos perseguidos por uma besta quadrupede. Contudo, Limbo foi o jogo que ele mais me lembrou quando percebi esse modelo de só identificarmos uma ameaça quando já for tarde demais, o que de forma alguma considero negativo.

É importante dizer que, ao contrário do que acontecia nos jogos assim lançados há três décadas, aqui os checkpoints são bem generosos. Isso faz com que a progressão seja mais agradável, por outro lado, resulta em algo que poderá desagradar alguns, que é a curta duração da campanha.

Ver os créditos finais é algo que podemos fazer em poucas horas, mas o jogo me divertiu tanto, que não reclamaria disso. A lamentar, talvez a falta de incentivo para o encararmos novamente, restando apenas a busca por troféus/conquistas (que, por sinal, existem até no Nintendo Switch).

Crédito: Divulgação/OutOfTheBit

Mesmo com tantos elogios aos aspectos técnicos do Full Void, arriscaria dizer que a parte em que ele mais brilha é na metáfora sobre uma situação recente. Costumo dizer que normalmente tenho dificuldade em lembrar dos muitos meses em que o mundo foi assolado pela pandemia do COVID-19, de como foi difícil ficar isolado enquanto acompanhávamos milhares de pessoas morrendo devido à doença.

Daquele período, uma das lembranças mais fortes que tenho foi das duas vezes que precisei sair durante o lockdown e do quão assustador foi ver uma cidade grande quase que totalmente deserta. Passar de carro entre os prédios e me sentir sozinho naquela selva de pedras foi algo que nunca pensei que chegaria a ver, um cenário que só julgava ser possível em filmes ou livros.

Se a pandemia teve um grande impacto em nós, adultos, sempre me perguntei o que ela pode ter causado nos mais novos. Imagine como deve ter sido para eles passar tanto tempo trancafiados em casa, sem contato com outras pessoas da mesma idade e por isso, não acredito ser coincidência o jogo nos colocar no papel de um adolescente, com ele vez ou outra recordando como era seu mundo antes das ruas ficarem vazias.

E de certa forma, Full Void é sobre isso. É sobre usar um videogame para nos fazer pensar como seria nos sentirmos impotentes num ambiente perigoso. É sobre nos fazer lembrar como uma cidade vazia pode ser assustadora, opressora e o pior, com essa longe de ser uma possibilidade surreal. Full Void é sobre muitas coisas, mas é também sobre isso, um vazio completo.

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