Ronaldo Gogoni 1 ano atrás
ATUALIZAÇÃO: o YouTube restaurou o vídeo; você pode assisti-lo aqui.
Segue abaixo o texto original.
Fato: a Nintendo é a companhia mais conservadora do mercado de games, no que se refere à proteção de suas propriedades intelectuais (IPs). A casa de Mario, Zelda, Pokémon e cia. já deixou claro, inúmeras vezes, que considera suas marcas seus bens mais preciosos, o que a leva e entrar frequentemente em atrito com todo mundo, fãs e consumidores fiéis inclusos.
Os incansáveis advogados da Big N já encrencaram com tudo o que é possível imaginar, mas o último caso está sendo encarado como censura: a Nintendo usou a DMCA (Digital Millennial Copyright Act), lei de proteção a direitos autorais, para bloquear um documentário no YouTube.
Em outubro de 2022, o canal do YouTube DidYouKnowGaming?, especializado em documentar histórias de bastidores e desenvolvimento da indústria, e por cavar fundo em projetos, games e acessórios esquecidos ou nunca lançados, como o teclado Work Boy, publicou um vídeo com detalhes interessantes sobre Heroes of Hyrule, um título para Nintendo DS que seria desenvolvido pela Retro Studios, desenvolvedora responsável pela série Metroid Prime.
O estúdio iniciou os trabalhos em 2004, no que o game traria uma abordagem similar à vista em Final Fantasy Tactics Advance, game lançado para o Game Boy Advance um ano antes. O plot é inclusive um "copy paste" do título portátil da Square Enix, no que o protagonista não é Link, mas um garoto que encontra um livro sobre heróis derrotando o vilão Ganon; dois terços do jogo se passariam dentro do livro, e o restante, no "mundo real", tal qual FFTA, no que as batalhas também se passam num livro.
A abordagem, no entanto, era diferente. Em Heroes of Hyrule, os heróis não ganhariam pontos de experiência através de combate, ao invés disso, teriam que explorar o ambiente e resolver quebra-cabeças, para coletar habilidades e power-ups. O jogador, na pele do leitor do livro, também podia colocar itens do mundo real no livro, para que estes pudessem conceder mudanças de status e poderes aos heróis.
O jogador deveria explorar tanto o mundo fantástico quanto o real para avançar na história, já que o livro teria páginas faltando, e cabia ao protagonista vasculhar o mundo e coletá-las. Da mesma forma, certas áreas só poderiam ser acessadas pelo leitor, se os heróis coletassem as chaves necessárias para destrancá-las; cada página adicionada ao tomo se reverteria em uma nova área para desbravar.
Segundo Paul Tozour, ex-desenvolvedor da Retro Studios, a equipe sofreu com burnout generalizado após o desenvolvimento de Metroid Prime 2, e trabalhar em uma franquia diferente seria uma forma de aliviar o estresse. Ele e Mark Pacini, diretor do primeiro Prime, compilaram suas ideias em um documento de 22 páginas, entre descrições e artes conceituais, e o apresentaram a Satoru Iwata, o então presidente e CEO da Nintendo.
O executivo, no entanto, não demostrou interesse na ideia de Heroes of Hyrule, e não só a podou sem cerimônia, como ordenou que a Retro Studios iniciasse os trabalhos de Metroid Prime 3: Corruption para o Nintendo Wii, que sairia em 2007.
Não obstante, Iwata os incumbiu de reviver a franquia Donkey Kong Country, um projeto que não era interessante para Tozour e outros da Retro Studios, no que acabou com estes deixando a companhia. Donkey Kong Country Returns só daria as caras em 2010, também no Wii.
Esta não foi a primeira vez que o canal DidYouKnowGaming?, que reúne historiadores especializados na indústria dos games, cobre uma história a respeito dos bastidores da Nintendo. No caso de Heroes of Hyrule, Dr. Lava teve acesso ao documento criado por Mark Pacini e Paul Tozour, o mesmo apresentado a (e rejeitado por) Satoru Iwata, por uma entrevista concedida pelo último.
Ninguém esperava, no entanto, que a Nintendo subisse nos tamancos com a história, e tomasse a atitude mais antipática e controversa possível: através do Content ID, ferramenta do YouTube para clamar direitos autorais sobre vídeos compartilhados na plataforma, a casa do Mario bloqueou inteiramente o documentário.
O Content ID permite ao dono do copyright escolher a punição aplicada a um vídeo, que pode ser uma advertência, restrição da monetização, reversão da mesma para si (o que a Nintendo já fez no passado), ou a retirada do ar, o que foi o caso.
O ato da Nintendo pegou muito mal não só entre o público, mas também na mídia, visto que o DidYouKnowGaming? é essencialmente um canal jornalístico, focado em desenvolver reportagens e documentários sobre a história dos games. A atitude da companhia japonesa está sendo encarada como censura, uma tentativa de impedir a circulação de uma história que a empresa não quer que venha à tona.
No Twitter, o perfil do canal disse o seguinte (tradução do texto em imagem):
A Nintendo removeu nosso vídeo sobre Heroes of Hyrule do YouTube. Este era um documentário e trabalho jornalístico sobre um game em que a Retro Studios começou a trabalhar há quase 20 anos. Esta é uma tentativa de uma grande companhia em silenciar quaisquer reportagens das quais ela não goste, e um tapa na cara na preservação da história dos games. Estamos explorando todas as opções possíveis para restaurar o vídeo.
Já Dr. Lava disse em seu perfil pessoal que além de buscar recursos legais para restaurar o vídeo, há outras reportagens na fila para serem postadas no canal; ele só não esclareceu se elas envolvem, ou não, a Nintendo.
Well, Nintendo of America had one of my videos deleted. The one that revealed Retro Studios' Zelda Tactics pitch document. Lame.
Anyways, I've got plenty more videos like that one already in the pipeline. That's my job. DYKG's currently seeking legal consultation on a reupload. https://t.co/FNojdJDo9k pic.twitter.com/dUdFyw4xWk
— Dr. Lava (@DrLavaYT) December 8, 2022
Na minha opinião, a Nintendo teria usado o Content ID para derrubar o vídeo sobre Heroes of Hyrule, devido a uma suposta quebra de um Acordo de Confidencialidade (Non-Disclosure Agreement, ou NDA). No passado, a gigante japonesa usou este mesmo argumento para, em 2013, barrar a publicação de um livro de Marcus Lindblom, diretor de localização de Earthbound, sobre como ele teve que adaptar conceitos do original Mother 2 para o público ocidental.
Quando o processo de financiamento coletivo para a publicação do livro teve início, Lindblom entrou em contato com a Nintendo, que inicialmente foi contra, e o lembrou de que ele assinou um NDA, no que ele era legalmente proibido de dar detalhes sobre o desenvolvimento do game. Na época, o projeto foi cancelado, e a história só foi contada em 2016, no livro Legends of Localization Book 2: EarthBound, desta vez, nos termos da Big N.
É provável que, como ex-desenvolvedor da Retro Studios, uma subsidiária da Nintendo, Paul Tozour tenha em algum momento assinado um NDA, se comprometendo a nunca revelar detalhes e histórias dos bastidores da companhia, sem que a mesma estivesse no controle da narrativa.
Assim, a gigante entenderia a revelação de que Heroes of Hyrule quase veio a existir, como uma violação de seus direitos sobre suas IPs, o que a Nintendo entende que ela, e somente ela, pode administrar.
Como dito antes, este não é nem de longe o único caso em que o departamento jurídico da Nintendo sai distribuindo marteladas. A companhia já implicou com:
Isso sem contar inúmeros games baseados em suas IPs criados por fãs, sem interesse comercial, como o excelente AM2R, Pokémon Uranium, Mario Battle Royale, Zelda: Breath of the NES (um demake de The Legend of Zelda: Breath of the Wild para o Nintendinho), e muitos outros; todos receberam o temido Cease and Desist da Nintendo, e desapareceram por completo.
Exatamente por isso, muitas iniciativas interessantes nunca saem da fase de projeto, embora pudessem render games excelentes. Foi o caso da adaptação do desenho animado The Super Mario Bros. Super Show!, que era apenas um exercício conceitual e nunca foi compartilhado, para não enfurecer os advogados da Nintendo.
Para variar, a Nintendo não se pronunciou sobre o bloqueio do vídeo do DidYouKnowGaming? sobre Heroes of Hyrule, e conhecendo a empresa, nunca o fará.
Resta aguardar para descobrir se o canal conseguirá reverter a decisão do YouTube, e restaurar (ou não) o documentário.
Fonte: Kotaku