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Caravan SandWitch — Uma viagem fora dos padrões

Caravan SandWitch é um jogo com elementos de metroidvania que nos coloca para explorar um belo planeta — enquanto conhecemos personagens fascinantes

17/09/2024 às 10:19

Quando pensamos em videogames, é natural os associarmos a jogos desafiadores, ambientes online tóxicos ou jornadas que se resumem a matar ou morrer. Porém, a ascensão dos jogos indies abriu espaço para que muitas barreiras fossem quebradas, com algumas produções mostrando que é possível criar experiências mais pacíficas, focando no enredo e passando mensagens positivas. Caravan SandWitch é um desses casos.

Caravan SandWitch

Crédito: Divulgação/Studio Plane Toast

Desenvolvido pelo Studio Plane Toast, Caravan SandWitch recebeu versões para PC, Nintendo Switch e PlayStation 5, e tem se destacado por nos colocar para explorar um planeta pós-apocalíptico a bordo de uma van.

Nele seremos Sauge, uma jovem que durante algum tempo viveu em uma estação espacial e certo dia recebe uma mensagem de sua irmã mais velha. Aquilo abala a protagonista, pois ela acreditava que a garota havia morrido há seis anos enquanto visitava Cigalo, o planeta que se tornou um deserto após seus recursos serem extraídos por uma grande corporação.

Embora um tanto incrédula, a mensagem faz com que Sauge renove a esperança de encontrar sua irmã viva e assim decide abandonar a estação e partir em direção ao seu planeta natal. Ao chegar no local, ela se depara com uma mulher que a deixará no controle de um bem muito valioso, uma van que responde como o último veículo do lugar.

Será a bordo do veículo que partiremos para os confins de Cigalo, visitando construções abandonadas, realizando missões e a utilizando como um uma espécie de canivete-suíço. E não demorará para percebemos que aquele carro é a estrela do jogo. Graças a ajuda de uma antiga amiga, Sauge poderá melhorar a van para que ela garanta acesso a lugares antes inacessíveis, fazendo desse o maior desafio oferecido pelo Caravan SandWitch.

Caravan SandWitch

Crédito: Divulgação/Studio Plane Toast

Isso acontece porque, para implementar as melhorias no veículo, será preciso recolher componentes espalhados pelos cenários e somente quando tivermos a quantidade certa conseguiremos melhorar nossa van. Assim ganharemos, por exemplo, a habilidade de vasculhar os cenários usando uma espécie de sonar, lançar uma corda para alcançar longas distâncias ou usar a bateria do carro para ativar geradores.

Desta forma o jogo adota elementos típicos de um metroidvania, o que não é tão comum em um mapa aberto em três dimensões, o que me faz tecer elogios ao estúdio ter optado por seguir por esse caminho. O ponto negativo se dá pela pouca variedade de cenários, pois mesmo havendo a justificativa de se tratar de um mundo em decadência, enjoa estarmos quase sempre nos mesmos ambientes.

Caravan SandWitch

Crédito: Divulgação/Studio Plane Toast

Outra boa decisão tomada pelos criadores foi garantir que as melhorias feitas no carro sirvam como o fim de cada capítulo. Assim, mesmo que já tenhamos os itens necessários para progredir, teremos que tomar cuidado com as missões paralelas temporárias, já que elas não poderão ser continuadas. Felizmente o jogo nos avisa que elas ainda existem, então cabe a você decidir se prefere avançar na história ou passar mais um tempo atendendo aos pedidos dos personagens.

E aqui vem um dos aspectos que prometem causar mais discordância entre os jogadores: a dificuldade, ou melhor, a quase total ausência dela. Em Caravan SandWitch não teremos inimigos pela frente, não precisaremos nos preocupar com ameaças climáticas, nem mesmo ter que coletar recursos para sobreviver no deserto. Aqui, nem mesmo a queda de lugares altos afetará Sauge, com o mesmo valendo para seu veículo.

Quando não estivermos a pé, o único risco se dá com a possibilidade de a van ficar presa em algum lugar, o que nos obrigará a voltar para a vila e dependendo da distância, poderá ser bem chato. Eu também presenciei uma situação em que o jogo simplesmente travou e outra em que toda a parte sonora desapareceu. Numa época em que bugs são comuns mesmo em grande produções, o Studio Plane Toast merece um refresco, mas nem por isso as falhas não devem ser criticadas.

Crédito: Divulgação/Studio Plane Toast

Além disso, enquanto explorando Cigalo nossa única preocupação será prestar atenção no cenário para não deixar passar algum componente que poderá ser usado posteriormente ou ter certeza se estamos indo na direção correta. No jogo não há a urgência para fazer as missões dentro do tempo, não teremos alguém nos cobrando pelo rádio a todo momento, muito menos estaremos a procura de um checkpoint salvador.

Eu não diria que Caravan SandWitch se enquadra no que muitos gostam de classificar (até pejorativamente) como um walking simulator, mas o fato é que sua proposta é muito diferente da maioria dos jogos que temos no mercado. Com esse jogo, o que o Studio Plane Toast visa é nos deixar intrigados com o mistério relacionado ao desaparecimento de uma personagem, enquanto conhecemos um belo mundo habitado por figuras interessantes.

Isso faz com que os diálogos aconteçam em profusão, com as pessoas sempre tendo algo para nos contar sobre suas vidas ou o passado daquele lugar. Contudo, esse aspecto nos leva para um assunto que poderá causar alguma polêmica.

 A adoção da linguagem neutra

Ao iniciar minha campanha em Caravan SandWitch, estranhei a maneira como os diálogos aconteciam. Num primeiro momento cheguei a pensar em erros na localização, mas então percebi que ele foi traduzido utilizando a linguagem neutra.

Confesso não lembrar de outro jogo que adotou essa linguagem ao ser localizado para o nosso idioma e também preciso admitir que em diversas situações precisei reler os diálogos mais de uma vez para entender o que eles diziam. Por não ter familiaridade com a linguagem neutra, ela não me soa natural e um exemplo disso pode ser visto na imagem abaixo.

"Nenhume nãe deveria ter que enterrar le próprie filhe" (Crédito: reprodução/Studio Plane Toast)

Utilizando o Sistema Ile, que altera os pronomes para ile, iles, dile, diles, nile, niles, aquile, aquiles, no jogo os artigos o/os e a/as são representados como ê/ês ou le/les, só para citar alguns exemplos. Além disso, o jogador precisará “interpretar” palavras como avôe (avô/Avó); nãe (pai/mãe); ume (uma/um); ae (ao) e tantas outras.

Até mesmo ao se referir a animais e objetos a localização utiliza linguagem neutra e um exemplo está em um cartaz de encontramos pelo cenário, onde a protagonista fala algo como “ah, que pena, alguém perdeu ume gate.” Contudo, para quem não está habituado a essa linguagem, a minha impressão foi que ela acaba se tornando uma barreira, dificultando a transmissão da mensagem a ser passada.

Esse sentimento me fez querer saber se aquela pode ter sido uma resistência negativa apenas para mim ou se os criadores do jogo/responsáveis pela localização exageraram ao implementar a linguagem em praticamente todos os diálogos. Assim, pedi ajuda a Roberta Freire, professora de português formada em letras e especialista em ensino de linguagens.

“A linguagem neutra nasceu para esse público [2% da população que se considera trans ou não-binário], para tratarmos dessa forma e acho justo que tentemos usar a linguagem com essas pessoas, se mostrar respeitoso e pedir desculpas por não conseguir usar 100% por falta de conhecimento,” defendeu. “Agora, para falar com a população em geral, essa linguagem não deve ser usada, pois ela não quer dizer os dois gêneros (como quando fazemos ao usar o masculino). Ela quer dizer sem gênero nenhum. Pela norma do português padrão, o ‘gênero neutro’, aquele para de referir a todos os gêneros, ainda é o masculino.”

"Toda vez que você achar um item associado ae suspeite, nós podemos tentar entender como ile age" (Crédito: reprodução/Studio Plane Toast)

A intenção desta análise não é erguer um movimento contra a linguagem neutra, muito menos contra a inclusão, mesmo porque acredito que cada um tem o direito de ser tratado como preferir. Caravan SandWitch é um jogo lindo em vários sentidos e me agradou enormemente ver que ele aborda muito bem a questão da inclusão, tocando em temas sociais e ambientais, com seu roteiro refletindo uma comunidade vasta e respeitando as individualidades de seus personagens.

O que questiono é, como comunicador, se a linguagem inclusiva como foi implementada no jogo não pode trazer uma atenção injusta para a obra, incitando ataques e levando a críticas rasas a uma causa válida. Quanto a isso, deixo um comentário feito pelo professor do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,  Marcelo Modesto: “Nada que advém de uma imposição é funcional, assim, para o pronome neutro ser incorporado na esfera legal, ele deve ser generalizado no âmbito social, familiar e cultural, pois a língua reflete o ideal da sociedade e não o contrário, assim, se todo mundo a utiliza, é inegável seu lugar na esfera legal da língua.”

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