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Phil Spencer, jogos AAA e por que as editoras existem

Em e-mail enviado a outros executivos, Phil Spencer questionou a necessidade das editoras atualmente e jogou uma sombra nos jogos AAA

24 semanas atrás

Se você tem o mínimo interesse por videogames, provavelmente já ouviu alguém dizer que a indústria de games anda muito cautelosa, que as empresas deveriam parar de lançar continuações e apostar mais em ideias originais. Esse é o ponto de vista do consumidor, mas você já parou para pensar como os executivos tratam essa falta de criatividade nos títulos de grande porte, os chamados jogos AAA?

Jogos AAA

Crédito: Divulgação/Microsoft

Pois não estranhe não ver os figurões da indústria falando abertamente sobre o assunto. Esse é um tema delicado e que provavelmente despertaria a ira em muitos consumidores. Porém, não haver declarações publicas não quer dizer que o tema não seja debatido internamente e o recente vazamento de documentos na briga entre a Microsoft e a Federal Trade Commission (FTC) mostrou isso.

Sim, enquanto boa parte da imprensa esteve debatendo os jogos que podem estar em produção ou um suposto desprezo por parte da Gigante de Redmond a um dos jogos mais aclamados de 2023, nós não demos a devida atenção a um dos e-mails mais importante e reveladores dessa onda.

O memorando em questão foi notado pelo jornalista Ethan Gach, do Kotaku e foi escrito por Phil Spencer. Nele o chefe da divisão Xbox fala sobre como enxerga as mudanças pelas quais estava passando a indústria, especificamente sobre a distribuição digital e a criação de jogos AAA. A mensagem foi enviada em 2020, tendo como destinatários o CEO Satya Nadella; a Diretora Financeira Amy Hood; a então Vice-presidente Executiva de Negócios, Peggy Johnson e o Chefe de Marketing, Chris Capossela.

Phil Spencer é gente como a gente (Crédito: Reprodução/@XboxP3/Twitter)

A mensagem pode parecer longa, mas faz um apanhado muito interessante do motivo que tem levado as editoras a travarem o investimento em novas franquias. Confira:

“Em termos de assinaturas e do impacto sobre as editoras maiores, percebi que não fiz um bom trabalho ao compartilhar a nossa visão sobre a ruptura que as editoras AAA potencialmente enxergam e como o nosso papel na indústria mudará com o crescimento das plataformas de assinatura, como o Xbox Game Pass.

Devemos começar com a pergunta de por que as editoras de jogos existem, em primeiro lugar. E como muitas outras formas de mídia, a ideia de uma editora de jogos foi criada de um ‘fosso’ de acesso; como os estúdios de cinema que bloqueiam as distribuições em cinema, e a gravadoras que bloqueiam as reproduções em rádios, a escalas das editoras de jogos na distribuição física as permitiu garantir espaço nas prateleiras do varejo, promoção nas lojas e uma margem estrutural além do que qualquer estúdio poderia ditar individualmente quando os jogos eram vendidos pela primeira vez nas lojas. Se você é um estúdio, precisaria de uma editora AAA para alcançar um consumidor numa [loja] Egghead Software.

Esse gargalo no acesso do criador para o consumidor permaneceu por anos e nesse período as editoras de jogos AAA aumentaram seus controles. A criação de vitrines digitais como Steam, Xbox Store e PlayStation Store eventualmente democratizaram o acesso para os criadores, quebrando a tranca do varejo para a distribuição de jogos. As editoras AAA foram lentas para reagirem a essa ruptura. As editoras AAA não encontraram uma maneira de aproveitar no reino digital o fosso que o varejo físico criou, de uma forma que os levassem a continuar dominando o mercado de jogos. Eles não encontraram uma maneira de efetivamente promover a promoção cruzada, não encontram uma maneira de construir marcas de publicação que levassem à afinidade com o consumidor (como a Disney fez no vídeo), eles não criaram uma plataforma social que os permitissem alcançar além dos seus usuários ativos mensalmente das propriedades intelectuais. Sem o bloqueio na distribuição física, o papel das editoras AAA mudou e elas se tornaram menos importantes na indústria de jogos atualmente.

Ao longo dos últimos 5-7 anos, as editoras AAA tentaram usar suas escalas de produção como seus novos fossos. Poucas companhias podem gastar os US$ 200 mi que uma Activision ou uma Take-Two gastam para colocar nas prateleiras um título como o Call of Duty ou Red Dead Redemption. Essas editoras AAA tem, na maioria, usado essa escala de produção para manter anualmente suas franquias principais no topo das vendas.  O problema que essas editoras enfrentam é que essa mesma escala/custo de produção prejudica suas habilidades de criar propriedades intelectuais. A taxa mínima de novas propriedades intelectuais nesses altos níveis de produção levou à aversão ao risco de novas propriedades intelectuais por parte das grandes editoras. Você viu um aumento de editoras AAA usando propriedades intelectuais alugadas para tentar compensar o risco (Star Wars com a EA, Spider-Man com a Sony, Avatar com Ubisoft, etc.) Essa mesma dinâmica obviamente também ocorreu em Hollywood, com a Netflix criando mais propriedades intelectuais do que qualquer estúdio de cinema.

Especificamente, as editoras AAA de jogos, partindo de uma posição de força impulsionada pelo varejo físico, não conseguiram criar nenhum efeito real de plataforma para si próprias. Elas efetivamente continuam criando suas escalas por meio de demonstração de resultados por jogos agregados, esperando maximizar cada novo lançamento de suas propriedades intelectuais existentes.

No novo mundo em que as editoras AAA não possuem uma alavancagem real de distribuição com os consumidores — elas não têm eficiência de produção e sua nova taxa de acerto com as propriedades intelectuais não são desproporcionalmente maiores do que a média da indústria — vemos que atualmente as principais franquias, em sua maioria, não foram criadas pelas editoras AAA. Jogos como Fortnite, Minecraft, Candy Crush, Clash Royale, Dota 2, etc. foram todos criados por estúdios independentes com total acesso à distribuição. No geral, isso, na minha opinião, é uma coisa boa para a indústria, mas coloca as editoras AAA em uma situação precária para o futuro. As editoras AAA estão sangrando suas principais franquias, mas lutando para reabastecer seus portifólios com franquias de sucesso. A maioria das editoras AAA está aproveitando o sucesso de franquias criadas há mais de dez anos.”

Minecraft, um exemplo de sucesso sem precisar de editora (Crédito: Divulgação/Microsoft)

Com o custo de produção se tornando cada vez maior, é natural que as empresas apostem em marcas já estabelecidas, pois assim a chance de retorno se torna muito maior. Mas apesar disso ser de conhecimento público, é importante ver alguém de dentro colocando os pingos nos Is, afirmando assim uma crítica que é comum entre os consumidores.

Todos nós sabemos que uma empresa existe para dar lucro, mesmo uma voltada para a criação de arte ou entretenimento. Por isso vemos muitos jogos, mesmo aqueles com potencial para vender vários milhões de cópias, adotarem práticas como microtransações ou a venda de conteúdo que deveria estar na versão original.

Como explicado por Spencer, talvez isso seja fruto da incapacidade das grandes editoras em se adaptarem à distribuição digital. Talvez essas empresas não estivessem preparadas para ver uma fatia de seus bolos ser conquistada pelos estúdios independentes, que ganharam maior visibilidade graças ao digital. Embora o provável seja a junção de ambos, com uma pitada de ganância.

Game Oass - Jogos AAA

Xbox Game Pass pode ajudar as editoras AAA (Crédito: Divulgação/Microsoft)

Contudo, por mais sincero que Phil Spencer tenha sido em suas palavras, ele também estava puxando a sardinha para sua própria brasa, chegando a defender que com o Xbox Game Pass, as editoras de grande porte teriam uma plataforma para compartilhar seus jogos, o que consequentemente serviria como motivação para um maior investimento nos projetos.

“Yves Guillemot, CEO da Ubisoft, comentou com a gente que com o aumento de assinaturas como o Xbox Game Pass, eles dobrarão a aposta na criação de valor para suas franquias existentes, mas reduzirá as novas apostas de risco, pois não possuem um mecanismo como o Xbox Game Pass que os ajude a amortizar o risco de investimento em qualquer conteúdo em toda uma base de assinantes,” escreveu Spencer no e-mail.

Também precisamos levar em consideração como as coisas mudaram de 2020 para cá, inclusive com a Microsoft anunciando e estando perto de fechar um negócio bilionário que lhe dará acesso a uma das maiores editoras do planeta.

No fim das contas, se as editoras se tornaram menos relevantes do que no passado, e particularmente acho que sim, ao menos elas ainda possuem uma grande quantidade de marcas extremamente poderosas. Ou você acha que outras empresas não adorariam ter algo como um Call of Duty, um The Elder Scroll, um Doom, um Minecraft, um Candy Crush ou tantas outros jogos AAA em que a Microsoft gastou bilhões para chamar de sua?

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