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Com a Guerra na Ucrânia, como fica a Estação Espacial?

A guerra na Ucrânia trará consequências nefastas para muita gente, mas um grupo em especial pode ser alvo de decisões difíceis: Astronautas

2 anos atrás

A menos que você more debaixo de uma pedra, e essa pedra esteja fora do Sistema Solar, sabe que estourou uma guerra na Ucrânia.

Tanques russos rumo à Ucrânia (Crédito: Al Jazeera)

Claro, como provavelmente eu tenho vários leitores morando debaixo de pedras, vamos recapitular: A Ucrânia vem sofrendo desde 2014 com uma guerra civil na região de Donbas, onde dois oblasts, Donetsk e Luhansk se declararam independentes.

A Rússia apoia descaradamente o movimento, fornecendo armas, pessoal, dinheiro e equipamento de ponta, inclusive o sistema antiaéreo BUK, que derrubou sem-querer querendo o 777 da Malaysia Airlines, em 2014.

Agora, nas últimas movimentações, Vladmir Putin reconheceu a independência das duas regiões, assinou um acordo de cooperação e defesa e mandou suas Tropas de Paz (juro!) seguirem para os novos territórios amigos.

O discurso de uma hora de Vladmir Putin foi assustador, ele voltou aos tempos de Lenin, lamentou o fim da União Soviética e disse que a Ucrânia não tem o direito de existir.

Ele essencialmente deu a entender que estaria invadindo a Ucrânia, o Secretário-Geral da ONU mandou um twit bem ríspido, e Biden está preparando sanções. Antes da tinta do Twit secar, a Rússia iniciou a maior operação combinada, aérea naval e terrestre desde a Guerra do Golfo.

A Ucrânia está sob ataque de tanques, mísseis balísticos, pára-quedistas e navios, só que isso não é o ponto deste artigo.

Kharkiv com uma fábrica de munições em chamas (Crédito: YouTube)

Nas próximas semanas, ou mais provavelmente dias vamos ver muitas repercussões desses momentos históricos, mas isso já aconteceu antes, muitas e muitas vezes principalmente na ficção. Agora pela primeira vez temos que lidar com um potencial conflito no espaço, mais precisamente na Estação Espacial Internacional.

A questão em si, é simples: como fica a Estação?

Mesmo que você esteja no espaço, o mundo não deixa de girar, a menos que você esteja em órbita geoestacionária. O que acontece aqui embaixo afeta lá em cima, como descobriram dois cosmonautas, Aleksandr Aleksandrovich Volkov e Sergei Krikalev.

Eles eram uma tripulação mínima que ficou na Estação Espacial Mir, por causa de uns problemas de agenda que atrasaram a troca normal de tripulações. O que eles não contavam, em sua missão planejada de menos de 150 dias em órbita, é que o mundo viraria de cabeça pra baixo.

Krikalev chegou na Mir em maio de 1991, e pelos supracitados motivos de agenda, topou permanecer como membro da próxima expedição, que chegaria em outubro.

Países-Membros da Estação Espacial Internacional. Tão desatualizado que ainda tem o Brasil. (Crédito: NASA)

Em terra, a União Soviética 1.0 chegava a seus últimos dias.  Depois do golpe fracassado de agosto de 1991, quando militares da linha dura tentaram depor Mihail Gorbachov e foram impedidos por Boris Yeltsin e Pedro Bial, as antigas repúblicas da União Soviética começaram a se rebelar, declarando-se fora da União.

Em 8 de dezembro de 1991 a situação chegou ao ponto final, com a Rússia, Ucrânia e Bielorrússia cada uma reconhecendo a independência das outras formalmente abandonando a União Soviética e formando a Comunidade dos Estados Independentes.

Em 25 de dezembro Gorbachov formalmente abdicou da Presidência, entregando a Boris Yeltsin seus poderes presidenciais, inclusive os códigos nucleares. A bandeira da União Soviética 1.0 foi baixada pela última vez no Kremlin.

Então alguém se lembrou que havia dois astronautas em órbita querendo voltar para casa, e toda a estrutura de apoio ficava agora no Cazaquistão, um país estrangeiro, cheio de ressentimento com a Rússia.

Game over, commies (Crédito: AFP)

Depois de muita diplomacia e dinheiro trocado, o Cazaquistão topou reabrir o Cosmódromo de Baikonur para os (agora) russos. Krikalev só voltou pra Terra em 25 de março de 1992. Ele passou 311 dias no espaço, mais tempo que qualquer ser humano. Rendeu uma pletora de informações científicas sobre o efeito prolongado da microgravidade, e como bônus, graças à dilatação do tempo de Einstein, ele voltou 0,02 segundos mais jovem do que seria se permanecesse em terra.

Krikalev decolou como cosmonauta da União Soviética, e por meses permaneceu no espaço como um cidadão de país nenhum, seu status e o da Mir completamente nebulosos.

A Estação Espacial Internacional e a Guerra na Ucrânia

Agora a situação é diferente. Vladmir Putin quer reerguer a União Soviética, declarou abertamente seu ódio pelo ocidente e pelos EUA em especial. Joe Biden por sua vez, quando está acordado inventa novas sanções econômicas contra a Rússia, o que deixa Putin, bem, você consegue completar o trocadilho.

Agora imagine como está esse climão em órbita.

A Estação Espacial Internacional é essencialmente um projeto conjunto entre os Estados Unidos e Rússia. Cada lado é responsável por áreas diferentes. Os russos reposicionam e elevam a órbita da estação. Os americanos geram a energia.

Sim, tem até santinho no lado russo da Estação Espacial Internacional (Crédito: NASA)

Há uma escotilha separando as duas metades da estação, mas se ela for fechada os russos terão que depender de seu sistema de suporte de vida, que vive quebrando. Algum tempo atrás os russos falaram que poderiam separar a estação em duas, mas isso hoje é tecnicamente inviável.

Embora a maioria do trabalho na Estação Espacial Internacional seja pacífico, em tempos de guerra olhos no espaço são sempre bem-vindos, então é de se esperar que ambos os lados usem seus recursos para monitoramento e espionagem, mas como isso é provavelmente contra os acordos firmados pelo consórcio, um lado tentará monitorar o outro para que não viole a regra.

Em pior cenário possível, um dos lados pode decidir que assumir o controle da Estação é estrategicamente importante, e podem receber ordem de restringir e dominar os adversários. Sim, eu sei que isso é cenário de um filme de ficção ruim, mas a invasão da Ucrânia também não é?

Mais guerra, mais problemas

Dmitry Rogozin é Diretor-Geral da Roscosmos, a estatal russa de pesquisas espaciais. Ele é famoso por observações criativas como dizer que os russos poderiam se negar a enviar astronautas então os americanos teriam que usar um trampolim para chega até a ISS.

No momento, graças à SpaceX (estou olhando pra você, Boeing) os americanos têm como mandar astronautas por conta própria, mas como isso funciona em clima de guerra? É preciso bastante cooperação entre as partes, suprimentos vão para ambas as tripulações. Como estabelecer uma rotina de troca de suprimentos?

A situação é tão complicada, que os foguetes Soyuz russos dependem de componentes químicos produzidos... na Alemanha. Então em uma reviravolta, os russos podem ser obrigados a usar um trampolim para enviar seus cosmonautas.

Rogozin está surtando no Twitter, em 24/2/2022 ele postou uma longa diatribe, falando entre outras coisas:

“Se você bloquear a cooperação conosco, quem salvará a ISS de uma saída descontrolada e cairá nos Estados Unidos ou... Europa? Há também a opção de lançar uma estrutura de 500 toneladas para a Índia e a China. Você quer ameaçá-los com tal perspectiva? A ISS não sobrevoa a Rússia, então todos os riscos são seus. Você está pronto para eles?”

Ele também está chamando as sanções de Biden de “Sanções de Alzheimer”.

E calma que piora. Em setembro de 2022 se tudo der certo será feito o segundo lançamento da missão ExoMars. Só que dificilmente as coisas darão certo.

A ExoMars é um consórcio entre a Agência Espacial Europeia e a Roscosmos. Na missão de setembro enviarão, ou pretendem enviar dois robôs, o russo Kazachok e o europeu Rosalind Franklin.

O robozinho russo que com muita sorte andará em Marte. Um dia. (Crédito: Kirill Borisenko / Wikimedia Commons)

O lançamento será feito da base na Guiana Francesa, em Kourou, usando um foguete Soyuz russo. Em teoria o foguete é parte do consórcio da Arianespace, mas em essência são Soyuz russos.

Já há gente pensando que o lançamento miou, outros não se arriscam a pensar tão no futuro quanto setembro.

Ultrapassa a irresponsabilidade fazer qualquer tipo de previsão com menos de 24 horas de guerra, ainda mais no campo espacial, que é repleto de simbolismo e constantemente sequestrado para fins de orgulho nacional.

Um bom exemplo foi a missão Apollo-Soyuz, em 1975, que fez a NASA gastar dinheiro que não tinha apenas para um lançamento de pura propaganda, fingindo uma cooperação inexistente com a União Soviética.

Esse tipo de propaganda será bem raro nos próximos anos, mas a única certeza é que não teremos grandes emoções no espaço. Astronautas e cosmonautas são um grupo especial de humanos, trabalham meses, anos juntos. Eles sabem que suas vidas dependem dos colegas, e em um ambiente que passa 24/7 tentando te matar, não há espaço para ideologia.

Qualquer ordem que envolva violência ou que coloque o outro lado em risco,  será ignorada.

De resto, o que temos que fazer é aguardar. Essa crise mal começou, e parafraseando Winston Churchill, não estamos no começo do fim da crise. Não estamos nem no começo do fim. Nem mesmo estamos no fim do começo.

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