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Road 96 — Para fazer uma revolução, é preciso o povo

Funcionando como um típico road movie, Road 96 é um jogo repleto de personagens fascinantes, situações tensas e onde cada viagem será gerada proceduralmente

2 anos e meio atrás

Há bastante tempo os jogos eletrônicos se consolidaram como uma mídia que vai além do mero entretenimento. Com os desenvolvedores tendo percebido que algumas histórias só seriam possíveis se contadas de forma interativa, os games se tornaram um ótimo ambiente para elas e um título que soube fazer isso de maneira brilhante é o Road 96.

Road 96

Crédito: Divulgação/Digixart

Idealizado por Yoan Fanise, mais conhecido por codirigir o excelente Valiant Hearts: The Great War, Road 96 vinha sendo divulgado como uma viagem procedural que nos colocaria para fugir de um regime autoritário, uma espécie de Road Movie interativo que misturaria os estilos dos cineastas Quentin Tarantino, os irmãos Coen e Bong Joon-ho. Corresponder a tão alto padrão de qualidade não seria uma tarefa fácil, mas o Digixart conseguiu atingiu este objetivo ao criar um rico universo.

Walking in My Shoes

Road 96 se passa durante o verão de 1996, num fictício país chamado Petria. Comandado com mão de ferro por um sujeito chamado Tyrak, 10 anos antes aquela nação foi alvo de um atentado na fronteira localizada ao norte, no que aparentemente foi obra de um grupo de resistência chamado Black Brigade. Além de ter fortalecido o poder do político, aquele ato dividiu o país, com parte da população apoiando os revolucionários, enquanto outros os consideram terroristas.

Assumindo o papel de um adolescente que pretende deixar o país, a nossa jornada começará poucos meses antes de uma nova eleição para presidente e embora o pleito conte com uma candidata que promete melhorar a vida da população caso saia vencedora, muitos afirmam que o resultado já está decidido, com Tyrak usando a propaganda e a opressão para não deixar o comando de Petria.

Road 96

Crédito: Divulgação/Digixart

Mas antes mesmo de iniciarmos a nossa perigosa aventura, o jogo nos apresentará à sua principal característica, que é nos colocar para tomar decisões. Através de um breve questionário teremos que escolher, por exemplo, o que procuramos quando vamos assistir um filme ou o que faríamos caso estivéssemos em uma nação passando por uma situação como Petria: tentar mudar o cenário através das eleições? Organizar-se para realizar protestos?

Tudo isso impactará diretamente no desenrolar da história, fazendo com que uma partida não seja exatamente igual a outra e o que ajuda a aumentar este fator replay são as muitas opções que faremos ao longo do caminho.

De certa forma, Road 96 pode ser comparado àqueles livros em que temos que tomar uma decisão e saltar para uma determinada página, com os diálogos que travamos com os personagens sendo a linha guia para a narrativa.

Suspicious Mind

Crédito: Divulgação/Digixart

Ao todo cruzaremos o nosso caminho com oito personagens principais, cada um com suas motivações e histórias. Eu não entrarei em detalhe sobre eles, pois acredito que conhecê-los aos poucos é justamente uma das coisas mais legais de Petria. Mas seja uma policial que tem enfrentado problemas em casa, seja um misterioso taxista que adora música clássica e que por algum motivo odeia a Black Brigade, todos parecem estar ligados de alguma forma.

Quase sempre proporcionando conversas bem interessantes, estes personagens são a essência de Road 96, com o emaranhado de suas histórias servindo para construir aquele fascinante enredo e nos colocando para sentir como seria estar na estrada, tentando deixar para trás tudo de ruim que um regime ditatorial pode causar.

E como estamos falando de personalidades tão distintas, tentar desvendar o mistério por trás da vida daquelas pessoas acaba sendo outro ponto a se elogiar, com as pílulas de informação que nos são ofertadas servindo para nos manter interessados e querendo continuar explorando as rodovias daquela perigosa (e muitas vezes bizarra) nação.

Smells Like Teen Spirit

Crédito: Divulgação/Digixart

Contudo, uma viagem até a fronteira não seria suficiente para explorarmos os oito personagens em sua totalidade e para resolver este problema os desenvolvedores tiveram uma ideia muita bacana, que foi colocar o jogador no papel de vários adolescentes. Funcionando de maneira parecida com um rogue-like, teremos apenas uma chance de fugir do país, com todo o tipo de coisa podendo acontecer no caminho.

Desde perdermos nossas vidas tentando, até sermos presos, as dicas para obtermos sucesso nesta fuga estarão espalhadas por todos os lados, mas assim como na vida real, nem todas surtirão o efeito desejado. Porém, mesmo que você consiga atravessar a fronteira, isso não representará o fim da história, pois seremos convidados a iniciar um novo capítulo na pele de outro adolescente e assim mais uma tortuosa viagem terá início, desta vez em outro ponto do mapa.

Isso pode dar a entender que o Road 96 é um jogo sem sentido, mas precisamos levar em consideração que a estrela da história não somos nós e sim aquele grupo que continuaremos encontrando conforme buscamos um destino melhor. Ao fazer isso, Yoan e sua equipe correram um grande risco de nunca nos apegarmos a quem estamos controlando e embora isso de fato aconteça, a decisão de design resultou numa narrativa pouco comum e que evidência a profundidade dos oito odiados prezados com quem passamos a dividir alguns quilômetros.

Mesmo com a liberdade de escolhas não sendo tão grande quanto aparenta, a imprevisibilidade de eventos faz com que a experiência seja bastante imersiva, com a possibilidade de desbloqueio de habilidades ajudando a tornar as próximas viagens ainda mais interessantes. Some a isso alguns mini-games que encontraremos aqui e ali, e mesmo com o jogo sendo basicamente guiado pela narrativa, em nenhum momento me senti entediado.

Video Killed the Radio Star

Crédito: Divulgação/Digixart

Outro ponto a ser elogiada em Road 96 é a sua trilha sonora. Contando com a participação de oito artistas, as músicas remetem aos anos 90 e independentemente de ser uma das faixas que podem ser colecionadas através de fitas K7 que encontramos pelo caminho, o que está sendo tocado sempre consegue passar muito bem a atmosfera de cada cena.

Conseguindo fazer um fantástico trabalho até ao nos colocar para tentar tocar a clássica Bella Ciao, o cuidado por parte dos responsáveis por esta área mostra como utilizar uma boa trilha sonora pode fazer com que toda a experiência seja amplificada e tenho certeza de que se não fosse pelo acerto neste sentido, as viagens que fazemos no jogo seriam bem menos marcantes.

Já na parte visual temos uma direção artística que poderá agradar alguns, mas incomodar outros. Particularmente gostei muito do estilo, com os personagens contando com características marcantes e sendo facilmente identificáveis. Os cenários também são bonitos, mas senti falta de mais variedade e como joguei no Nintendo Switch, as quedas na taxa de atualização de frames é algo que me incomodou um pouco.

Take Your Time (Do It Right)

Apesar de contar com momentos de tensão e oferecer algum desafio de vez em quando, seja através de uma cena de ação ou exigindo raciocínio lógico, Road 96 é um jogo com um ritmo mais lento, voltado principalmente para quem gosta de uma boa narrativa e de sentir que está tomando decisões que alterem um mundo virtual. Aqui você não precisa ter pressa, basta sentar-se, aproveitar a viagem e ver como um país sob o controle de um ditador pode inflamar conforme se aproxima do que parte da população julga não passar de um jogo de cartas marcadas.

Para quem defende que política e games não devem se misturar, provavelmente não se sentirá à vontade com um título que ousa abordar assuntos complexos como a manipulação da imprensa, opressão, fake news, censura e poder ao povo. Vale dizer, no entanto, que alguns desses temas são tratados de forma um tanto caricaturada ou até mesmo superficial, cabendo ao jogador decidir qual lado apoiará nas eleições.

Polêmicas à parte, em Road 96 você encontrará um jogo que utiliza a geração procedural de conteúdo de uma maneira muito bem-feita. Isso não quer dizer que não verá a mesma cena em um novo save, mas mesmo quando isso acontecer, a quantidade de opções para prosseguir na história é tão grande, que a sensação será de estar sempre conhecendo algo novo.

Muitas vezes não teremos a menor noção de como as nossas escolhas impactarão a história e até nos arrependeremos por termos clicado numa determinada opção. Em outras o nosso destino será decidido ao acaso, num rolar de dados que, se tivéssemos descoberto antes a habilidade que nos dá mais sorte, poderia ter um desfecho melhor.

Contudo, ter sucesso ou fracassar faz parte desta excelente criação da Digixart e enquanto continuava tentando montar o enorme quebra-cabeça que é o seu enredo, eu só consegui pensar no assustador Anton Chigurh, de Onde os Fracos Não Têm Vez, que em determinado momento para diante de um homem e lhe pergunta: “Qual o máximo que você já perdeu jogando cara ou coroa?” Isto define não só o Road 96, mas a vida como um todo.

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