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Peste Negra deixou marcas profundas no genoma humano

Peste Negra estimulou seleção de genes resistentes à doença, hoje associados a doenças autoimunes como Crohn, lúpus e artrite reumatoide

1 ano e meio atrás

A Peste Negra, que devastou a Europa durante a primeira metade do século XIV, foi a pandemia mais devastadora registrada pela História, tendo causado entre 75 milhões e 200 milhões de mortes. Ela foi o segundo dos três grandes surtos da doença, o primeiro sendo a Praga de Justiniano, cuja causa foi confirmada em 2013.

Yersinia pestis, bactéria responsável pela maior e mais mortal pandemia da História (Crédito: Larry Stauffer/Oregon State Public Health Laboratory/CDC's Public Health Image Library (PHIL)/ID #1918/domínio público)

Yersinia pestis, bactéria responsável pela maior e mais mortal pandemia da História (Crédito: Larry Stauffer/Oregon State Public Health Laboratory/CDC's Public Health Image Library (PHIL)/ID #1918/domínio público)

Em apenas 5 anos, cerca de metade da população europeia da época sucumbiu à Peste, que deixou marcas bem profundas nas gerações seguintes de mais de uma maneira: uma pesquisa publicada por um time de antropólogos e geneticistas das Universidades de Chicago e McMaster, no Canadá, revelou que a doença selecionou mutações no genoma humano, associadas a diversas doenças autoimunes modernas.

Resistência, mas a que preço?

A pesquisa, publicada pela Nature, analisou o material genético de 200 ossadas escavadas em Londres e na Dinamarca, de vítimas da Peste Negra durante o surto europeu, entre 1347 e 1351. O objetivo era identificar como uma doença tão devastadora poupou certos indivíduos, que sofreram menos com a infecção e conseguiram sobreviver, se considerarmos os parcos (ou nulos) conhecimentos sobre medicina e higiene dos europeus na época.

Para dar uma ideia, uma das principais teorias vigentes de então para a pandemia, e para outros surtos até o século XIX, foi a do "miasma", que a atribuía a ar poluído, emanado de cadáveres. Mas divago.

No estudo, os pesquisadores selecionaram 4 genes específicos, de um grupo de 200 relacionados a uma possível imunidade à bactéria Yersinia pestis, causadora de três tipos de Peste, sendo a bubônica, a pneumônica e a septicêmica, as duas últimas quase sempre mortais.

Das 206 amostras analisadas, 67 eram do período antes da Peste Negra, 42 durante, de indivíduos que morreram da doença, e 97 depois. Os infectados foram especificamente escavados do cemitério de East Smithfield, em Londres, dedicado exclusivamente a enterrar os mortos pela Peste.

Em O Triunfo da Morte, Pieter Bruegel, O Velho retratou o levante social e o período de terror que se seguiu à Peste Negra (Crédito: Museo del Prado)

Em O Triunfo da Morte, Pieter Bruegel, O Velho retratou o levante social e o período de terror que se seguiu à Peste Negra (Crédito: Museo del Prado)

O estudo (cuidado, PDF) se concentrou em um gene específico, o ERAP2, que trabalha para auxiliar no reconhecimento de uma infecção. Indivíduos que possuíam duas cópias de uma variante específica, chamada rs2549794, conseguiam produzir cópias completas do gene, auxiliando os macrófagos (células que fagocitam elementos estranhos) a produzir mais proteínas e a combater, com mais eficiência, o Y. pestis.

Segundo o Dr. Javier Pizarro-Cerda, diretor do time de pesquisa dedicado à Y. pestis, do Departamento de Microbiologia do Instituto Pasteur, a pesquisa mostra que "o rs2549794 atua como um agente protetor" contra a Peste Negra. Assim, sobreviventes passaram o gene resistente para a frente, no que sim, a doença atuou como um mecanismo de Seleção Natural, no que o gene também age para combater outros patógenos.

Entretanto, essa proteção contra a pandemia não viria sem consequências às futuras gerações. Com o avanço da medicina, desde a descoberta da penicilina e dos antibióticos, a tratamentos eficazes contra diversas doenças, e melhoras na qualidade de vida que estenderam a expectativa da população, esses mesmos genes estão hoje associados a várias doenças autoimunes, como lúpus, artrite reumatoide e Doença de Crohn, uma síndrome crônica que afeta o sistema digestório.

Com a Mãe Natureza, uma mão dá, a outra tira.

O Homem, e não o rato, causou a Peste Negra

Responsável por vários surtos pandêmicos da Antiguidade, a Peste é hoje apontada como a possível causa para o Declínio do Neolítico, um rápido colapso da população eurasiana, por volta de 3000 AEC. A Praga de Justiniano, que afligiu a Europa e Ásia entre 541 e 549, foi o primeiro período da hoje chamada Primeira Pandemia da Peste, que perdurou até 767.

A Peste Negra, ou Segunda Pandemia (a Terceira começou na China em 1855, alcançou todos os continentes, matou mais de 12 milhões de pessoas, e só foi controlada em 1960), afetou principalmente áreas populosas da Europa medieval, assim como o campo, e por muito tempo, sua transmissão foi associada a piolhos de ratos infectados, os hospedeiros tradicionais da Y. pestis.

Porém, pesquisas recentes mostraram que embora os roedores respondessem por contágios iniciais, o grande responsável pelo alastramento da doença foi o Homem, ou mais precisamente, a ausência de cuidados com a higiene, pessoal e comunitária.

Por muito tempo, os ratos foram associados à Peste Negra; o real culpado foi um porco que anda sobre duas patas (Crédito: Wildlifesnapper/Dreamstime.com)

Por muito tempo, os ratos foram associados à Peste Negra; o real culpado foi um porco que anda sobre duas patas (Crédito: Wildlifesnapper/Dreamstime.com)

Em 2018, pesquisadores da Universidade de Oslo analisaram os três principais métodos de contágio, transmissão pelo ar via gotículas de saliva (fazendo contato próximo com um doente), que espalha a Peste Pneumônica, mais letal, e picadas de parasitas como pulgas e piolhos, mas separados entre as espécies que infestas ratos e humanos.

O estudo concluiu que as pulgas humanas, bem como o piolho-do-corpo (Pediculus humanus humanus), que causa a pediculose corporal (o piolho-da-cabeça, Pediculus humanus capitis, é um parente deste) foram os principais responsáveis e verdadeiros vetores primários da disseminação da Y. pestis, e do alastramento da Peste Negra por toda a Europa, e não os parasitas dos ratos.

O motivo é simples: ninguém no Velho Mundo se preocupava com questões simples para muitos hoje, como banhos diários (para ser sincero, o europeu não é dado a isso mesmo hoje), tratamento de esgoto e lixo, limpeza das ruas, armazenamento adequado de alimentos, etc. O mundo árabe da época, bem mais organizado, era diametralmente oposto à geral imundície do medievo europeu.

Em um cenário como esse, é garantida a proliferação de parasitas que infestam exclusivamente humanos, como as espécies direcionadas de piolhos, pulgas e outros, que se alimentam de sangue e pulam de um hospedeiro para outro, passando doenças para a frente, no caso, a Peste Negra.

No fim, fez-se justiça aos ratinhos.

Referências bibliográficas

KLUNK, J., VILGALYS, T. P., DEMEURE, C. E. et al. Evolution of immune genes is associated with the Black Death. Nature, 22 páginas, 19 de outubro de 2022. Disponível aqui.

Fonte: Ars Technica

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