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Da série “Estudante de Design acha que salvou o mundo” — Parte MMCXVIII

Outro dia outra idéia de jerico de estudantes de design que acham que sabem mais do que sabem (dica: todos são Jon Snow). Desta vez uma… folha artificial. Leia e descubra os 24.972.349 motivos pelos quais só uma anta acha isso uma boa idéia.

10 anos atrás

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Sim, uma árvore de facepalms. Tem a ver.

Eu sei, eu sei, vai soar como negativismo, mas a realidade é que se você tem um mínimo de pretensões profissionais, é preciso ter o pé no chão e fazer seu dever de casa. Estudantes de Design são especialistas em não fazer isso, e se saem com as idéias mais esdrúxulas, se refugiando na justificativa de que estão apenas “experimentando conceitos”. Isso é uma enorme perda de tempo, que resultam em bobagens como este BMW conceitual desenhado por um sujeito que não tem a mínima idéia das Leis que definem como um carro deve ser NEM tem qualquer apreço por outros seres humanos, visto que um atropelamento por essa belezinha resultaria em um esquartejamento traumático nível Darth Maul.

Ou então esta IMENSA bobagem abaixo, que fez milhares de retar-digo, comentaristas de portal se derreterem em elogios dizendo UAU, EU QUERO, etc, sem se preocupar em COMO a desgraça levitava. Imagino que seja por obra e graça de Nosso Senhor Jesus Cristo.

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A bola da vez é um sujeito de nome Julian Melchiorri. É um recém-formado em Design pelo Royal College of Art, obviamente ninguém mais qualificado para tratar de… biologia.

Julian está pensando no Futuro da Humanidade, pois como disse Konstantin Tsiolkovsky, a Terra é o berço da Humanidade mas não podemos permanecer no berço para sempre.

Ele diz que um dos problemas de viagens espaciais de longa duração é o fornecimento de oxigênio. idealmente usaríamos plantas, mas “plantas não crescem em gravidade zero”. Deveria haver uma forma de aproveitar o processo de fotossíntese sem depender de plantas, mas como?

O estudante descobriu que a fotossíntese ocorre em um componente da célula chamado cloroplasto. Então o resto é inútil. Ele desenvolveu um método para remover os cloroplastos das células vegetais, montá-los em uma estrutura com proteína de seda — que tem a propriedade de estabilizar moléculas — e construiu uma folha artificial.

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Segundo Julian os cloroplastos suspensos em seda são o primeiro material fotossintético que é vivo e respira como uma folha. É leve, consome pouca energia e é completamente biológico. Ele criou luminárias que produzem oxigênio, um feito!

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Isso é lindo: aproveita a energia da luz, ilumina o ambiente e melhora o ar que você respira. Esse garoto merece um Nobel, mas calma, tem mais: Julian propõe que sua tecnologia biológica seja usada em fachadas de prédios, assim os antigos arranha-céus cinzentos que maculavam a paisagem se tornarão usinas de oxigenação do planeta.

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Um momento enquanto limpo as lágrimas de gratidão por essa invenção revolucionária que vai salvar a Humanidade de si mesma, reverter o Efeito Estufa e nos levar a um futuro glorioso.

Pronto.

bats

Ok, não tenho uma semana, mas vá lá. Vamos tentar resumir o PORQUÊ de essa “folha artificial” ser a idéia mais idiota desde a invasão da Rússia no inverno.

1 — Cloroplastos não são autônomos.

Mais ou menos um bilhão de anos atrás uma cianobactéria usou o Apple Maps, virou na direção errada em Albuquerque e foi parar dentro de uma célula eucarionte, complexa, com vários orgânulos internos. Por sorte de todo mundo que gosta de alface a célula não atacou a cianobactéria, ou atacou e não adiantou. A bactéria por sua vez percebeu que estava em um ambiente fechado, exclusivo, VIP, sem predadores e onde qualquer visitante indesejado seria imediatamente devorado.

Ao contrário de um cunhado a cianobactéria se tocou que era hora de agradecer a hospitalidade, então ajudou a célula a trocar o sofá de lugar, se ofereceu pra lavar a louça e produzia energia.

Resumindo de forma BEM simplificada, a fórmula da fotossíntese é:

12 H2O + 6 CO2 → 6 O2 + C6H12O6 + 6 H2O

Basicamente água, dióxido de carbono e luz resultam em água, glicose e oxigênio, que é o lixo. (pras plantas)

Isso é lindo, mas os cloroplastos se tornaram tão acomodados que espalharam suas tralhas pela casa toda do anfitrião. Há centenas de proteínas essenciais ao metabolismo dos cloroplastos que não existem mais em seu DNA, as instruções de fabricação estão armazenadas no DNA no núcleo da célula hospedeira. Um cloroplasto fora da célula é incapaz de se reproduzir.

Há um caso de uma lesma do mar que teve a mesma idéia do Justin, mas como a lesma é bem mais inteligente, ela incorpora os cloroplastos das algas que come em suas células. Mesmo assim os cloroplastos não se reproduzem e morrem em no máximo 10 meses. Isso com todo um metabolismo celular para prover proteínas e outros compostos essenciais. Não em uma gosma de proteína de seda.

Em resumo: cloroplastos só vivem de forma autônoma na mente de designers.

2 — Plantas não crescem no espaço?

Eu concordo com Justin. Até prova em contrário plantas não crescem em gravidade zero.

Prova em contrário:

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Pois é, Justin. Se você tivesse gastado 5 s no Google descobriria que desde os Anos 70 já se sabe que sementes germinam no espaço, e que nem mesmo o enraizamento depende de gravidade. O fluxo de seiva funciona por diferença de pressão osmótica, que também independe de gravidade, e se há um efeito colateral é que teremos plantas maiores. Claro, isso inviabiliza a essência do seu projeto, pois se podemos usar plantas, não há necessidade dessa ginástica toda de criar uma folha artificial. O que me leva a um outro ponto:

3 — Plantas não geram oxigênio o tempo todo

De noite, ou em situações de stress plantas praticam respiração celular, consumindo glicose e oxigênio e gerando CO2. Não, você não vai morrer por causa da planta em sua mesinha de cabeceira (a não ser que seja a Audrey). Animais não morrem envenenados por CO2 em florestas. A produção mesmo coletiva tanto de CO2 quanto de O2 é pequena demais para afetar significativamente qualquer um em volta.

Colocando em números: uma figueira adulta de 12 metros e duas toneladas cresce 5% ao ano. Ela recupera 38 kg de carbono da atmosfera, durante a fotossíntese e libera no ar 100 kg de oxigênio. Excelente, mas um humano consome por ano 740 kg de oxigênio.(fonte). Ou seja: sua nave espacial precisará de 7 figueiras por tripulante, solo e espaço para crescerem. Ou na verdade mais, pois os astronautas consomem oxigênio o tempo todo e durante a noite as figueiras consumirão também.

Plantas precisam de um ciclo de dia/noite, manter a fotossíntese ativa o tempo todo estressa as bichinhas. (pode chamar planta de bichinhas?)

4 — Fotossíntese é terrivelmente ineficiente

A eficiência máxima teórica da fotossíntese é de 11%. Na prática ela converte entre 3 e 6% da luz solar em energia. (fonte). Todo mundo usa por limitações biológicas, que não existem no mundo da tecnologia.

A principal função dos vegetais superiores não é produção de oxigênio, isso fica a cargo do fitoplâncton. A Amazônia não é o pulmão do mundo, é o ar-condicionado e o armário de guardar carbono. Plantas controlam o efeito-estufa, nisso sim são úteis. A cada ano a eficiência dos painéis solares aumenta. Se você esquecer essa bobagem ecochata e usar painéis fotovoltaicos com eficiência de 44,7% e quiser oxigênio, basta fazer um bom e velho equipamento de eletrólise, usar água do mar e pronto. Se quiser ser mais ecológico ainda, pode usar a chamada Reação de Sabatier, que começa com dióxido de carbono e hidrogênio e termina com metano e água. Isso mesmo, transformamos o vilão CO2 em combustível e se quisermos O2, é só eletrolisar a água.

5 — NÃO FAZ SENTIDO REINVENTAR A RODA

Então vejamos: o Julian Melchiorri lá quer criar uma folha artificial, que consumirá recursos para ser produzida, terá na melhor das hipóteses vida útil de meses, só funcionará durante o dia  e por pura mágica realizará um processo metabólico sem nenhum subproduto além do oxigênio? Seguindo a dica do Átila no Twitter, proponho uma idéia melhor. Uma máquina biológica que recobrirá fachadas de prédio, fará recuperação de carbono da atmosfera, não depende de manutenção exceto estética. Na verdade essa tecnologia já existe, está sendo experimentada na Universidade de Chicago, veja:

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Não há nada de errado em imaginar idéias incríveis, mas é preciso ter o pé no chão para saber o que é viável e o que é fantasia. Sonhar é ótimo mas quem faz o futuro é quem tem o olhar nas estrelas mas os pés no chão. Por isso temos uma nave espacial chamada Júlio Verne mas não uma JK Rowling.

Fonte: DZ.

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