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Pele transparente graças a... corante de salgadinho?

Substância usada como corante tornou pele de ratos transparente; processo é reversível e pode ter amplas aplicações na Medicina

17/09/2024 às 10:00

Na Ciência, costuma-se contar uma anedota que a frase clássica que indica uma nova descoberta não é "eureka!", mas "isso é estranho". Provavelmente foi o que pesquisadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, pensaram ao isolar um agente químico que permite tornar a pele transparente, para facilitar a observação de tecidos internos, usado principalmente como... corante de salgadinho.

O experimento, inevitavelmente comparável ao livro O Homem Invisível de H. G. Wells, usou ratos como cobaias, mas diferente do que acontece no livro, o processo é reversível e não causou danos às cobaias.

Algo assim (Crédito: Reprodução/Columbia Pictures/Red Wagon Productions/Global Entertainment Productions GmbH & Company Medien KG/Sony Pictures)

Algo assim (Crédito: Reprodução/Columbia Pictures/Red Wagon Productions/Global Entertainment Productions GmbH & Company Medien KG/Sony Pictures)

Ratinhos de pele invisível

O estudo foi realizado pela equipe de Guosong Hong, professor-assistente do Departamento de Ciência dos Materiais de Stanford, com o suporte do também professor-assistente Zihao Ou, do Departamento de Física da Universidade do Texas em Dallas. O objetivo era estudar elementos capazes de uniformizar o índice de refração de luz da pele, que não é um valor único.

Funciona assim: a pele é um tecido complexo que compreende diversos elementos e substâncias diferentes, de componentes aquosos como células e outros fluidos diversos, como lipídios e proteínas. Cada um deles possui um índice de refração diferente, isto é, o quanto a luz desacelera ao atravessar determinada substância ou material.

Por padrão, quanto menor o índice, menos a luz desacelera, mas com a pele sendo um órgão composto, a velocidade varia, sendo mais lenta por meio de lipídios, e mais rápida para passar por componentes aquosos. Assim, a luz é curvada constantemente e é dispersa, assim, tudo o que vemos é a luz que rebate na superfície, e nada além disso.

Para tornar a pele transparente, ou mesmo levemente translúcida, seria preciso usar um agente para igualar o índice de refração entre os vários componentes dérmicos, e o consenso era de que corantes, por padrão, teriam o efeito inverso. Jogue tinta em um tanque com água, por exemplo, e ela ficará cada vez mais escura, até o ponto onde você não verá mais o fundo.

Por isso, a descoberta de que a tartrazina, um corante alimentício muito usado, é capaz de tornar tecidos transparentes, foi uma surpresa.

Zihao Ou exibe tubo com solução de tartrazina (Crédito: University of Dallas in Texas/Stanford University)

Zihao Ou exibe tubo com solução de tartrazina (Crédito: University of Dallas in Texas/Stanford University)

Esse pigmento de cor amarela, também conhecido como E102 e pelo nome comercial FD&C Yellow 5, é bastante usado em vários alimentos ultraprocessados, como balas, salgadinhos, chicletes, gomas de mascar e gelatinas, mas também é empregado para colorizar condimentos, cosméticos e até remédios. Ele é sintetizado a base do alcatrão de carvão, e é solúvel em água fria e gordura.

Segundo o prof. Hong, a equipe esperava que um corante como a tartrazina tenderia a tornar materiais menos transparentes, mas músculos e pele se tornavam mais translúcidos quanto mais material era aplicado, na forma de uma solução diluída, similar a uma loção. Os testes foram inicialmente realizados em peças de peitos de frango, e posteriormente passaram para ratos vivos.

A tal "loção de transparência" foi aplicada em segmentos de pele devidamente raspados, no abdômen e cabeça dos ratinhos, da mesma forma que um produto cosmético comum, o que permitiu aos cientistas observarem as veias e artérias sobre o crânio, o que normalmente é possível apenas com a remoção do escalpo, bem como ver órgãos internos como fígado, bexiga e intestinos, a olho nu.

A transparência é removida apenas lavando a pele e removendo a loção, sem deixar efeitos colaterais. Claro, a visualização não é perfeita, a tartrazina absorve luz num certo espectro (257 a 428 nm), e absorção mínima de 600 nm, a pele não fica 100% invisível, mas deixa o que se quer ver com tons em vermelho.

Da mesma forma, a solução funciona melhor em pontos onde a pele é mais fina, e não penetra o suficiente em lugares onde é mais espessa. Isso se resolveu fazendo uma aplicação subcutânea com seringa, basicamente uma "tatuagem" temporária.

Não é uma loção de invisibilidade, mas pode ajudar em alguns cenários (Crédito: University of Dallas in Texas/Stanford University) / pele

Não é uma loção de invisibilidade, mas pode ajudar em alguns cenários (Crédito: University of Dallas in Texas/Stanford University)

Caso a pesquisa seja viável para uso em humanos no futuro, a solução à base de tartrazina pode ser aplicada na Medicina, facilitando, por exemplo, a detecção de veias para coleta de sangue, e aplicação de medicamentos e soro via intravenosa. O método também pode ser empregado para facilitar diagnósticos, como identificar visualmente tumores e reduzir a dependência de biópsias.

Embora o uso da tartrazina nesses cenários seja interessante, nem tudo são flores: além do prof. Hong desaconselhar a replicação do método em humanos no momento, já que os testes de toxicidade ainda precisam ser conduzidos, a substância é considerada cancerígena se consumida sem controle, tanto que ela é banida na Noruega.

No Brasil, seu uso é regulado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), sua inclusão em alimentos ultraprocessados e medicamentos é permitida em níveis que não representem riscos à saúde, mas alérgicos e pessoas sensíveis, como quem sofre de asma e bronquite, devem ser alertados sobre a presença do corante, através das embalagens e bulas.

Assim, não dá para prever que efeitos a tartrazina pode ter no organismo humano, se aplicada sobre a pele ou injetada, sem que os devidos testes sejam feitos, o que deve consumir mais alguns anos de pesquisa.

Referências bibliográficas

OU, Z., DUH, Y.S., ROMMELFANGER, N. J. et al. Achieving optical transparency in live animals with absorbing molecules. Science, Volume 385, N.º 6.713, 6 de setembro de 2024.

DOI: https://doi.org/10.1126/science.adm6869

Fonte: Ars Technica

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