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Alimentos ultraprocessados são ou não viciantes?

Estudos apontam potencial viciante dos alimentos ultraprocessados, mas dados preliminares dividem cientistas

27 semanas atrás

Há uma velha discussão entre cientistas sobre o potencial viciante da comida, ou sendo mais específico, dos alimentos ultraprocessados. Diferente de proteína animal e vegetais naturais, produtos industrializados estimulariam o sistema de recompensa cerebral, causando efeitos não muito diferentes de outras substâncias, tanto as lícitas presentes no álcool e cigarros, quanto as ilícitas.

Novos estudos sugerem inclusive que alimentos ultraprocessados causam os efeitos clássicos de dependência, o desejo compulsivo pelo consumo e a crise de abstinência em sua ausência, mas nem todos os pesquisadores concordam com essa visão.

Alimentos ultraprocessados teriam potencial viciante similar ao álcool, cigarro e drogas ilícitas (Crédito: Reprodução/acervo internet)

Alimentos ultraprocessados teriam potencial viciante similar ao álcool, cigarro e drogas ilícitas (Crédito: Reprodução/acervo internet)

A discussão sobre se alimentos ultraprocessados são viciantes é bem antiga, e levou a diversos estudos de vários institutos ao longo dos anos, com resultados dos mais variados. O que sabemos é que certos elementos presentes nesses produtos em abundância, como o açúcar, causam reações no cérebro que podem disparar comportamentos perigosos.

Em ratos, por exemplo, o desejo por mais é tão forte, que ele suprime o próprio instinto de sobrevivência, no que espécimes se submetiam a choques elétricos de forma voluntária, só para conseguirem mais um pouco de açúcar. Com humanos, isso não é muito diferente.

A grande resistência de parte de comunidade científica está no óbvio argumento de que dependemos da comida para sobreviver, e que para que o consumo exagerado de determinada substância seja classificado como vício, ele deve obrigatoriamente superativar o sistema de recompensa cerebral, o que estimula o indivíduo ao desejo.

Atividades como comer carnes, sexo, e amamentar, entre outros, ativam o sistema em níveis normais, mas certas substâncias podem sobrecarregar o circuito e liberação de dopamina, levando ao comportamento de vício. Estas incluem o etanol (álcool), nicotina (cigarro), cocaína e heroína, entre outros, mas não a cafeína (café, chás, cacau), que não chega a ativá-lo; assim, seu abuso é classificado como dependência.

A comida natural não superativa o sistema de recompensa, mas o mesmo não pode ser dito dos alimentos ultraprocessados, como refrigerantes, salgadinhos, sorvetes e sucos industrializados, comida congelada, biscoitos, doces e balas, queijos processados, alimentos embutidos, etc. Segundo a Dra. Ashley Gearhardt, professora de Psicologia da Universidade de Michigan, e uma especialista no assunto, "as pessoas não perdem a cabeça por feijões", mas por Coca-Cola e milkshakes.

Em 2022, um estudo conjunto entre pesquisadores da USP, Universidade Federal de Alagoas, e Universidade de Michigan, apontou que 1 em cada 5 indivíduos adultos são viciados em comida, e apresentam comportamentos clássicos do quadro clínico, como fazer de tudo para conseguir o alimento de preferência, mesmo que isso interfira em sua vida social, consomem em excesso chegando ao ponto de passar mal, e apresentam sintomas de abstinência quando ficam sem comer por muito tempo.

O quadro de vício e dependência não está diretamente associado à obesidade, entretanto. A maioria dos voluntários que apresentam comportamentos de vício estão "em forma", dentro dos parâmetros considerados normais do índice de massa corporal (IMC). O vício é mais recorrente em homens, na faixa dos 35 anos.

O comportamento de viciado envolve quase que exclusivamente alimentos ultraprocessados, e há um motivo para isso, apontado em estudos recentes.

O documentário independente Super Size Me: A Dieta do Palhaço (2004) mostrou os perigos de uma dieta exclusiva (e exagerada) de alimentos ultraprocessados (Crédito: Reprodução/The Con/Samuel Goldwyn Films/Roadside Attractions)

O documentário independente Super Size Me: A Dieta do Palhaço (2004) mostrou os perigos de uma dieta exclusiva (e exagerada) de alimentos ultraprocessados (Crédito: Reprodução/The Con/Samuel Goldwyn Films/Roadside Attractions)

Um dos artigos, publicado em maio de 2023 por pesquisadores do Departamento de Medicina Johns Hopkins da Universidade de Baltimore, aponta para o comportamento tanto de consumidores saudáveis (leia-se dentro do padrão normal do IMC), quanto de pacientes que passaram por cirurgias bariátricas (redução do estômago para o controle de obesidade mórbida), que têm o desejo compulsivo de consumir milkshakes.

O ato libera uma quantidade significativa de dopamina no cérebro dos voluntários, cerca de 1/3 do liberado ao consumir anfetaminas, o que é considerado uma marca alta e caracteriza superativação, o que leva ao vício. Em outro estudo, publicado em abril de 2023 pela Escola de Medicina e Instituto de Pesquisa de Virginia Tech Carilion, foi detectado que o hábito diário de consumir doces e alimentos gordurosos reescreve os padrões de recompensa, não muito diferente do que drogas fazem.

Mais, o consumo de alimentos mais saudáveis não desperta as mesmas sinapses, o que explica por que é tão difícil migrar de um produto calórico e doce demais para um com menos açúcar ou gordura. Para a Dra. Alexandra G. DiFeliceantonio, professora e neurocientista responsável pelo estudo do Virginia Tech, tanto a comida normal quanto a processada podem disparar o transtorno de compulsão alimentar, mas a segunda categoria é única, por também causar efeitos como desejo compulsivo e abstinência, tal como drogas, álcool e cigarro fazem.

A Dra. Ashley Gearhardt explica que isso é intencional, pois produtos industrializados foram criados para serem assim:

"Isso é por design, desenvolvido por cientistas do ramo alimentar em laboratórios, para que (alimentos ultraprocessados) se pareçam de uma certa forma, passem uma sensação específica na sua boca, tenham um cheiro específico quando você abre o pacote."

Gearhardt diz que, diferente do que encontramos na Natureza, ou produzimos graças à agricultura e pecuária há milênios, alimentos industrializados contam com proporções muito específicas e equilibradas em proporções precisas de carboidratos, açúcares e outros elementos, como aromatizantes, corantes e cheiros, naturais ou artificiais. Eles são calculados milimetricamente para um só objetivo: estimular o sistema de recompensa e gerar a necessidade no consumidor de sempre querer mais e mais, não importa como, para garantir as vendas.

A combinação "matadora" (entenda como quiser) de açúcar e gordura é uma das senão a mais viciante, segundo estudo da Dra. DeFeliceantonio publicado em 2018, mostrando que comidas com apenas um dos dois é menos capaz de ativar o corpo estriado ventral, a área do cérebro mais associada ao sistema de recompensa.

Lanches como o Big Mac são usados como argumento para limpar a barra das comidas ultraprocessadas (Crédito: Divulgação/McDonald's)

Lanches como o Big Mac são usados como argumento para limpar a barra das comidas ultraprocessadas (Crédito: Divulgação/McDonald's)

Há uma série de discussões sobre se alimentos ultraprocessados devem ou não ser classificados como produtos viciantes, igualando-os ao álcool e ao cigarro. Críticos argumentam que os mesmos comportamentos nunca foram reproduzidos em lanches, mesmo em clássicos junk foods como o Big Mac.

A Dra. Gearhardt rebate o pensamento, dizendo que sob tal lógica, "o cigarro não seria viciante", pois o usuário é capaz de fazer outras coisas enquanto fuma, e lembra que o chocolate pode causar efeitos psicotrópicos similares à nicotina, mas neste, o quadro só ocorre quando administrada via intravenosa.

Mesmo com a chance de que os cientistas estejam promovendo uma caça às bruxas de forma exagerada, a Dra. Gearhardt prefere pecar pelo excesso de zelo, argumentando que regulações devem ser implementadas agora nos Estados Unidos (vários países se adiantaram, e há no Brasil discussões a respeito), para não repetir o mesmo erro com a indústria do cigarro, que por décadas foi defendido como saudável, inclusive por médicos dos EUA.

O motivo? A primeira nação a publicar um estudo detalhado da relação entre tabagismo e câncer de pulmão, e a promover uma campanha intensa contra o fumo, foi a Alemanha nazista.

O problema, a regulação de alimentos ultraprocessados vai de encontro aos interesses das gigantes dos alimentos, tais como Nestlé e Unilever, que fizeram fortunas nas nações em desenvolvimento com a premissa do combate à fome, garantindo subsídios, mas que levou à subnutrição da população, inclusive por aqui.

Fonte: Scientific American

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