Ronaldo Gogoni 21/02/2024 às 11:25
A Suprema Corte do Alabama, nos Estados Unidos, tomou uma decisão controversa que pode prejudicar, ou mesmo interromper totalmente, os procedimentos de fertilização in vitro (FIV) no estado: os magistrados decidiram que embriões humanos, incluindo os congelados e armazenados em clínicas, são "crianças", com todos os direitos universais garantidos.
Dessa forma, quem destruir embriões no Alabama poderá responder por homicídio culposo, independente do motivo que levou ao descarte.
A decisão da Suprema Corte (cuidado, PDF) foi publicada na última sexta-feira (16), como resposta a um caso em que dois casais processaram uma clínica, devido um paciente, sabe-se lá como, ter conseguido acesso ao freezer onde os embriões eram armazenados em temperaturas abaixo de zero, e removido um dos frascos; quando o frio intenso fez o que dele se espera, infligindo queimaduras no indivíduo, este largou o frasco, que se espatifou no chão, destruindo dois embriões no processo.
O grande problema da história, os casais que abriram o processo o fizeram sob a acusação de homicídio culposo de menor, sob a noção de que os embriões destruídos eram "crianças", tendo se apoiado em uma lei do estado, de 1872. Uma corte menor havia dispensado o processo, alegando (cientificamente falando, corretamente) que "embriões não preenchem os requisitos para serem definidos como crianças". De fato, um óvulo fecundado não é mais do que um amontoado de células, incapaz de se sustentar de forma independente.
Porém, a Suprema Corte do Alabama, de maioria republicana (não coincidentemente, um dos 20 estados dos EUA que tornou o aborto ilegal, após a reversão de Roe vs. Wade), decidiu que os direitos universais "se aplicam a todas as crianças, nascidas e não-nascidas, sem limitações". Tom Parker, o juiz-chefe da corte, fez a clássica defesa do direito à vida, citando Deus e tal:
"A vida humana não pode ser destruída sem que sobre ela caia a ira de Deus, que vê a destruição d'Aqueles feitos à Sua imagem como uma afronta a Ele próprio (...).
Mesmo antes do nascimento, todos os seres humanos são criados para refletir Sua semelhança, e suas vidas não podem ser destruídas sem apagar a Sua glória".
Sob o novo entendimento da justiça do Alabama, procedimentos de FIV que, por qualquer motivo, levem ao descarte de embriões, podem enfrentar processos de homicídio culposo de menor, o que está tirando os responsáveis e profissionais de medicina do sério. Para entender a gravidade da situação, é preciso conhecer os pormenores do processo:
Em geral, a FIV é indicada para casos em que casais não conseguem conceber filhos, por uma série de fatores. No primeiro passo, a mulher passa por um tratamento hormonal, a fim de estimular a ovulação, e assim, os médicos colhem tantos óvulos quantos forem possíveis; ao mesmo tempo, o marido também tem seu esperma coletado.
O processo de fertilização é feito fora do útero, e os embriões, geralmente mais de um, para garantir o sucesso do procedimento, são reinseridos no útero. Por isso que há casos de gravidez de múltiplos gêmeos, quando vários acabam vingando, o que é muito raro, mas pode acontecer. Da mesma forma, o procedimento não é 100% garantido de sucesso, como tudo em Biologia, claro.
A grande questão está no fato de que casais nem sempre optam pela reinserção dos embriões imediatamente, de novo, por vários fatores (tratamentos para o câncer, por exemplo), ou preferem armazenar os excedentes, assim, eles são congelados e armazenados para uso posterior. Os pais também podem optar por doá-los a outros casais ou para pesquisa, ou mesmo pelo descarte.
Conforme o entendimento da Suprema Corte do Alabama, no entanto, o descarte ou destruição de embriões, mesmo de forma involuntária, durante o tratamento, pode ser entendido pela Justiça como homicídio de um menor de idade, sob a definição de que óvulos fecundados têm o mesmo direito à vida que uma criança.
Tratamentos de FIV respondem por cerca de 100 mil nascimentos nos EUA todos os anos, mas como a taxa de sucesso gira entre 51% e 76%, no que as chances caem conforme a idade, dá para entender por que está todo mundo preocupado.
Obviamente, a decisão do Alabama vem sendo duramente criticada. A Associação Nacional de Fertilidade dos EUA (RESOLVE) declarou que a medida terá "consequências devastadoras", além de taxá-la como uma consequência da onda conservadora contra os direitos das mulheres, puxada pela derrubada de Roe vs. Wade em 2022.
Barbara Collura, CEO da instituição, disse que a decisão tem o potencial de simplesmente de acabar com os procedimentos de FIV no Alabama, já que clínicas e profissionais não vão querer serem enquadrados em um caso onde a fertilização não deu certo, mas os pais abram um processo pelo "assassinato" de um ou vários embriões, que não vingaram.
Já Karine Jean-Pierre, porta-voz da Casa Branca, sabe a quem culpar:
"Em todo o país, as mulheres estão sendo forçadas a lidar com as consequências devastadoras das ações dos funcionários republicanos eleitos (...), que minam o acesso aos cuidados reprodutivos e de emergência, chegando a ameaçar o acesso à contracepção".
Coincidentemente ou não, o pré-candidato republicano à presidência dos EUA, Donald Trump, teria apoiado, de modo reservado, uma proibição ao aborto após 16 semanas, em todo o paí, salvo em casos de estupro, incesto, ou quando a vida da mãe está em risco; já o atual presidente Joe Biden, que oficialmente não concorre à reeleição, está seguindo na direção contrária.
Fonte: Ars Technica