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Reescrevendo a história do primeiro microprocessador, com ajuda do Maverick

A história dos microprocessadores foi reescrita, neste artigo vamos conhecer o projeto secreto que por décadas deu crédito indevido à Intel

27/01/2024 às 19:39

História como um todo é algo em perpétuo movimento. Novas descobertas fazem com que o passado seja reescrito. Recentemente datações descobriram que uma vila romana no Reino Unido, presumidamente abandonada no final do Período Romano, continuou habitada e próspera por pelo menos mais duzentos anos.

Um processador ideal para uma zona de perigo (Crédito: Stable Diffusion)

Algumas vezes as informações históricas “erradas” surgem em tempo real, como o mito de que cenoura faz você ter boa visão. Isso foi um despiste usado por pilotos de caças noturnos na 2ª Guerra Mundial, para não chamar atenção para o verdadeiro segredo: seus caças eram equipados com radar.

O próprio radar foi uma arma controlada cuidadosamente pelas Unidades de Inteligência. É um mito que os alemães não sabiam o que era o radar. Eles tinham suas próprias unidades, identificaram os sinais dos transmissores ingleses e tinham unidades especializadas em interferência.

O grande público não sabia sobre o radar em detalhes, mas tinha noção do que era, afinal esconder todas aquelas torres seria no mínimo impossível. O que era segredo era sua importância.

Por isso as forças armadas mantiveram dezenas de milhares de civis voluntários em postos de observação no litoral, e alegremente publicavam nos jornais seu feitos, localizando formações inimigas. Com isso os alemães desviavam sua atenção dos radares, e não perceberam que a tecnologia em si não era o segredo.

Bunker onde foi comandada a Batalha da Inglaterra. (Crédito: Reprodução Internet)

O segredo era a imensa rede de comunicações interligando estações de radar no país inteiro, afunilando os dados até o comando central, que tinha uma visão global de tudo que estava acontecendo, e podia prever movimentos alemães e planejar a resposta.

Outros segredos eram bem mais secretos. Em maio de 1943 a RAF realizou a Operação Chastise, um ataque às represas do Vale do Rio Ruhr, zona industrial da Alemanha. Era uma missão impossível, nenhum avião era capaz de levar uma bomba capaz de explodir uma represa, os reservatórios estavam protegidos por redes e uma bomba lançada na direção da represa explodiria na parede, sem causar danos.

Barnes Wallis, projetista da Vickers estava em um lago, jogando pedras na água quando teve um momento eureka: uma bomba cilíndrica, girando em alta velocidade, se lançada da altura e velocidade corretas, iria quicar sobre a água um número N de vezes, até perder velocidade e afundar. Um simples detonador de pressão seria suficiente para acionar a bomba, quando ela estivesse próxima do fundo, garantindo o maior impacto possível.

Incrivelmente, eles conseguiram, mas a tecnologia foi considerada top secret. A história foi contada (sem os detalhes técnicos) nos jornais celebrando o ataque, que foi um grande incentivo moral para o povo britânico.

Em 1955 saiu o primeiro filme sobre o ataque, The Dam Busters, mas a tecnologia ainda era secreta. As cenas mostrando as bombas de teste sendo lançadas foram censuradas, com um borrão preto no lugar da bomba, e a bomba em si nunca é mostrada no filme. Somente muitos anos depois os detalhes apareceram.

A bomba borrada... (Crédito: The Dam Busters - 1955)

Isso acontece o tempo todo, em todas as áreas da história, e verdades estabelecidas vivem sendo mudadas. Uma dessas verdades é sobre o primeiro processador.

Sim, se você perguntar em qualquer curso de informática dos anos 80/90, na época em que ainda ensinavam alguma coisa, os alunos vão responder que o primeiro microprocessador foi o Intel 4004, lançado em novembro de 1971, isso é história antiga.

Foi a primeira vez que toda a lógica discreta de processamento foi reunida em um único chip, abrindo caminho para equipamentos mais compactos, leves e de menor consumo.

Claro, o 4004, com 2300 transístores e clock de 109kHz, não rodava Crysis, mas foi a base da revolução da microinformática, em 1975 seria lançado o 6502, base do Apple I e II e milhares de outros computadores. Um ano depois, o venerável Zilog Z80 iniciaria toda uma dinastia de computadores. Até hoje, em 2024, o Z80 e o 6502 continuam sendo produzidos, usados em equipamentos médicos, controles industriais e outras áreas.

Exceto que... não foi bem assim.

Ë comum acharmos que equipamentos militares são desatualizados. É verdade, qualquer PC tem mais capacidade de processamento que um Tomahawk ou um F18, mas em algum momento esses equipamentos foram novos, e quando estamos falando de topo de linha, com tecnologia que custa centenas de vezes mais caro do que a comprada em loja, é natural presumir que essa tecnologia é também muito avançada.

E quando você está criando um projeto do zero, e seu orçamento é um cheque em branco, muita coisa pode acontecer, como foi o caso do F-14 Tomcat.

Dizem que é Rainha do Hangar, mas é um dos aviões mais bonitos que já foram feitos. (Crédito: US Navy)

No começo dos Anos 1950 os EUA perceberam que a estratégia de combate naval havia mudado. Ao invés de enxames de caças-bombardeiros, os porta-aviões agora seriam alvos de mísseis anti-navio lançados de bombardeiros russos, bem distantes, e se não tomassem uma atitude, seus navios virariam história.

Foi desenvolvido o míssil AIM-54 Phoenix, um monstro com alcance de 200Km, com guiagem semi-ativa. Inicialmente ele usa o radar do avião lançador, sobe a mais de 100 mil pés de altitude (31km) e desce em trajetória balística, já sem motor, indetectável até os últimos segundos, quando ativa um radar interno para refinar a posição do alvo.

Um Tomcat levando SEIS mísseis Phoenix, pronto pra estragar o dia de alguém (Crédito: US Navy)

A um custo (valores de 2023) de US$5 milhões a unidade, o Phoenix precisava de uma plataforma de lançamento, e o Grumman F-14 foi projetado para isso. Ele é o único caça da História a levar operacionalmente o Phoenix.

Embora hoje pareça uma peça de museu, o F-14 era uma maravilha tecnologia em 1970, quando voou pela primeira vez. Entre muitos recursos, suas asas de geometria variável permitiam alta performance em todos os regimes de velocidade, e uma característica era especial: havia um modo automático, onde o piloto não precisava se preocupar em configurar a posição das asas.

Mas como isso era possível em 1970, quando computadores eram basicamente barro fofo e pedra lascada? Com isto:

CADC (Crédito: Reprodução Internet)

O CADC - Central Air Data Computer cuida disso e muito mais.

Projetado por Steve Geller e Ray Holt para aGarrett AiResearch, o CADC levou quatro anos para ficar pronto, sendo criado por pura necessidade. Sistemas eletromecânicos ocupariam muito mais espaço e seriam mais pesados, além de consumir mais de 10W, a potência alocada para o CADC.

A solução foi projetar circuitos integrados, criando não só uma CPU especializada, mas todo um chipset, chamado MP944.

O conjunto trabalhava como um microprocessador de 20 bits, em uma época em que o 4004 tinha um endereçamento de 12 bits.

  1. A placa principal era composta de 6 chips:
  2. Unidade Multiplicadora Paralela (PMU)
  3. Unidade Divisor Paralelo (PDU)
  4. Função Lógica Especial (SLF)
  5. Unidade de Direção de Dados (SL)
  6. Armazenamento de acesso aleatório (leitura/gravação) (RAS)
  7. Unidade de memória somente leitura (ROM)

A comunicação entre os chips era serial, com um clock de 375KHz. Os chips recebiam dados em tempo real de acelerômetros, sensores de pressão, altímetros, e criavam um modelo do avião, para pela primeira vez na história, decidir em que posição as asas deveriam ficar.

O software ficava em ROM, 2560 bits em blocos de 128 palavras de 20 bits. A RAM era composta de 16 palavras de 20 bits, ou 320 bits. 40 bytes. Sim, crianças, gênios conseguiam fazer um F-14 voar com 40 bytes.

O MP944 foi pioneiro em diversas áreas, algumas que ainda nem existiam. Ele foi o primeiro processador com pipeline de instruções, quebrando uma tarefa em partes distintas. O MP944 também foi projetado para paralelismo, recebendo dados e executando instruções simultaneamente.

Havia chips dedicados a processamento digital de sinais, conversores Analógico-Digitais e até testes internos e redundância.

Apenas para comparação:

Intel 4004:

  • Clock: 109kHz
  • Transístores: 2300
  • Palavra: 12 bits

MP944:

  • Clock: 375KHz
  • Transístores: Contando 19 ROMs, 74,442
  • Palavra: 20 bits

O MP944 também foi o primeiro processador da história a ter várias unidades aritméticas, chips dedicados a realizar cálculos complexos e funções, rodando em paralelo e independente da CPU.

Ray Holt ficou entusiasmado com o projeto, e como todo bom engenheiro, não prestava muita atenção nessas coisas de sigilo, segurança, etc. Escreveu alegremente um artigo descrevendo o projeto do MP944, e marcou para ser publicado em 1971 na Computer Design magazine, mas a Marinha entrou no circuito, melando tudo.

“Meu, cê tá louco? Bebeu? Quer que os russos copiem tudo? Vai publicar é nada!”

O projeto inteiro estava classificado como Top Secret, o que significava, entre outras coisas, que Ray não poderia patentear seu microprocessador. Esse é até o nome de um dos documentários sobre o caso:

Em 1985 Ray tentou de novo, apenas para ter seu pedido negado. Somente em 1998, quase 30 anos depois de sua criação, o artigo de Ray foi liberado e ele aos poucos foi tendo seu mérito reconhecido.

Agora é imaginar o que há nos laboratórios de pesquisas militares, e toda a tecnologia que só veremos em uns 20 anos, ou em uns 2 meses, se a Rússia resolver se engraçar...

O artigo original de Ray você consegue ler aqui. (cuidado, PDF)

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