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Direito ao reparo: Apple a favor, Cientologia contra

Nos EUA, Apple muda de ideia e passa a apoiar o direito ao reparo; Cientologia é contra manutenção externa em seus "e-meters"

27 semanas atrás

O direito ao reparo é o conceito de que usuários devem ter a liberdade de realizar manutenção de seus produtos eletrônicos como acharem melhor, ou por conta própria, ou escolhendo qual empresa de assistência técnica irá atendê-lo, para não mais depender exclusivamente das fabricantes.

A prática é tema de uma guerra entre legisladores e companhias há vários anos, com o conceito se aplicando originalmente a tratores e se estendendo às fabricantes de dispositivos móveis, no que a Apple obviamente se opunha ferrenhamente ao direito ao reparo.

Após anos lutando contra, Apple simplesmente mudou de ideia quanto ao direito ao reparo nos EUA (Crédito: Reprodução/iFixit)

Após anos lutando contra, Apple simplesmente mudou de ideia quanto ao direito ao reparo nos EUA (Crédito: Reprodução/iFixit)

Com o passar dos anos, a maçã começou a rever alguns de seus conceitos quanto à reparabilidade de iPhones, iPads, Macs e outros de seus produtos, culminando em 2019 com a liberação de peças e treinamento para assistências terceirizadas, mas abrangendo apenas produtos que já estivessem fora da garantia. Novos? Nem pensar.

Em julho de 2021, a discussão tomou um novo rumo quando o presidente dos EUA Joe Biden expôs seu pouco apreço pelas big techs, que ficaram grandes e poderosas demais nos últimos anos, e uma das ações foi propor leis de alcance nacional para a implementação do direito ao reparo. Na ocasião, a Casa Branca emitiu uma ordem executiva destinada à FTC (Comissão Federal de Comércio), o órgão equivalente ao CADE no Brasil, para que leis nesse sentido fossem elaboradas e endossadas.

O objetivo é bem claro, quebrar a hegemonia da assistência técnica que, nos EUA, é exclusiva dos fabricantes de seus produtos. Embora Apple, Microsoft e outras do Vale do Silício exercam um forte lobby, a questão é muito antiga e tinha como alvos originais as gigantes Caterpillar e John Deere, fabricantes de veículos agrários, construção civil e mineração, que são contra abrirem mão do controle da manutenção de seus tratores e afins, pois perderão MUITO dinheiro.

A exclusividade costuma ser bem cruel com donos de consoles de videogame, por exemplo. Tanto a Sony quanto a Microsoft condicionam o funcionamento do PS5 e do Xbox Series X, e também de modelos de gerações anteriores, à vida útil do drive óptico, e uma vez que este pifa, o dispositivo vira um peso de papel (excluem-se obviamente as versões de ambos sistemas que não têm o leitor). O reparo, além de exclusivo, costuma ser tão caro que é mais vantajoso comprar um novo console.

Sob o novo conjunto de leis, Sony e Microsoft seriam obrigadas a fornecerem não só as peças para que o reparo seja executado por qualquer um, mas compartilhar também ferramentas exclusivas e fornecer treinamento adequado, para que o reparo seja feito da maneira correta por assistências terceirizadas, ou pelo próprio consumidor. O mesmo seria aplicado para celulares, tablets, ou mesmo um trator.

A última coisa que a Caterpillar quer é ser forçada a abrir mão da manutenção exclusiva de seus veículos (Crédito: Reprodução/besthqwallpapers.com)

A última coisa que a Caterpillar quer é ser forçada a abrir mão da manutenção exclusiva de seus veículos (Crédito: Reprodução/besthqwallpapers.com)

Os estados de Minnesota, Colorado e Nova Iorque já passaram leis que implementam o direito ao reparo, ainda que com várias restrições. O primeiro, por exemplo, mira exclusivamente em dispositivos móveis e concedeu exceções a consoles, carros, equipamentos médicos, dispositivos de segurança e equipamentos agrícolas, no que o lobby de Sony, Microsoft, Caterpillar e John Deere saiu ganhando. Já estes perderam feio no segundo, no que o estado aprovou uma lei exclusiva para o reparo de tratores; no terceiro, a lei foi alterada pela pressão de lobistas.

Enquanto isso, a senadora distrital democrata do Susan Eggman (não, ela não é parente do Dr. Robotnik), do estado da Califórnia, apresentou um Projeto de Lei, o SB-244, bem mais alinhado com as diretrizes definidas por Biden, e não concede benefícios a nenhum fabricante. Todos serão obrigados a fornecerem peças, ferramentas, manuais e treinamento para o conserto de seus produtos para quem quiser realizá-los, seja o consumidor, ou uma assistência independente.

Em todos os casos, a Apple era contra a implementação do direito ao reparo, e usava as mesmas desculpas de sempre, desde a "segurança de dados dos usuários" e "garantia de qualidade no reparo" quando executado por ela própria, à própria "experiência de uso". Exatamente por isso, todo mundo foi pego de surpresa em 24 de agosto de 2023, quando a maçã declarou ter... mudado de ideia.

Na ocasião, a Apple enviou uma carta (cuidado, PDF) ao gabinete da senadora Eggman, dizendo que apoia a SB-244 já que esta não deve implementar exigências para a desativação de recursos de segurança, e as assistências terceirizadas devem notificar os consumidores se usarem peças usadas nos reparos, ou componentes não-oficiais; estas também devem exigir que o cliente autorize, por escrito, o reparo alternativo.

Ainda que com uma série de condições, a Apple apoiando o direito ao reparo é algo que não se vê todo dia. Por outro lado, o último lugar de que alguém esperava vir uma nova oposição a reparos executados por terceiros, é a Igreja da Tecnologia Espiritual, mais conhecida como Cientologia.

Cientologia não quer ninguém mexendo nos seus e-meters (Crédito: Colliric/Wikimedia Commons)

Cientologia não quer ninguém mexendo nos seus e-meters (Crédito: Colliric/Wikimedia Commons)

Fundada em 1953, a igreja foi uma forma de L. Ron Hubbard (1911 – 1986) driblar a pouca aceitação de seu método de "dianética", promovido inicialmente como um tratamento alternativo, ao mesmo tempo que gozaria de isenções fiscais. Sem se aprofundar muito, a Cientologia defende que eventos traumáticos causam "engramas", que se manifestariam como más influências, atrapalhando a evolução mesmo no decorrer de várias encarnações.

Para combater isso, a Cientologia promove o que chamam de "auditoria", um tratamento não muito diferente de uma consulta com um psicólogo, para a remoção dos "engramas", mediante pagamento de taxa. Entre os métodos usados, está o que inclui o uso de um dispositivo chamado eletroespectrômetro, ou e-meter, que, segundo a igreja, usa a atividade eletrodérmica (EDA, o mesmo princípio por trás do polígrafo) para auxiliar na "auditoria".

O e-meter não foi inventado por Hubbard, e o mesmo foi e voltou com seu uso dentro da Cientologia, no que suas versões são diferentes do modelo original, usado por outras instituições. Claro que todas são patenteadas e registradas junto à Author Services Inc., subsidiária que cuida de todo o espólio do fundador da Cientologia.

No dia 10 de agosto de 2023, Ryland Hawkins, representante legal da Author Services, enviou uma carta ao Escritório de Direitos Autorais dos EUA (USCO), alertando que o DMCA "considera ilegal o ato de contornar medidas tecnológicas implementadas para impedir o acesso não autorizado a obras protegidas por direitos autorais", e exige a alteração da lei para que esta conceda as mesmas exceções feitas pelo estado de Minnesota.

Embora a carta não cite o e-meter em nenhum momento, fica evidente que a Author Services se refere a ele. O equipamento nunca teve sua eficácia comprovada por especialistas externos, até porque apenas seus "auditores", que seriam "ministros treinados", são autorizados a operá-lo; a última coisa que a Cientologia quer é ser forçada a fornecer materiais e manuais de reparo a terceiros, o que invariavelmente revelaria como ele (não) funciona.

As exceções propostas pela Author Services vêm sendo criticadas duramente, pois acabariam por invalidar a lei por completo (convenhamos, é esta a intenção). De acordo com Nathan Proctor, diretor sênior dos Grupos de Pesquisa de Interesse Público dos EUA (PIRGs), se a sugestão da Cientologia for acatada, reparos seriam ilegais em qualquer dispositivo cuja operação esteja ligada à concordância com um Acordo de Licença de Usuário Final (EULA, não a de Genshin Impact).

Segundo Elizabeth Chamberlain, diretora de sustentabilidade da iFixit, a proposta é totalmente desproporcional, já que pouca gente conhece os e-meters, e menos gente ainda tem interesse em repará-los, no que a Cientologia pode acabar prejudicando milhões de consumidores de outros produtos, por pura mesquinharia.

Como de praxe, nem Ryland Hawkins, nem a Author Services ou alguém ligado à Cientologia, comentou o assunto.

Fonte: TechCrunch, 404 Media

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