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O gacha game que revelou um esquema de corrupção

Auditoria em órgão regulador da Coreia do Sul, motivada por jogadores de gacha game reclassificado como 18+, revelou desvio de verba pública

35 semanas atrás

Os gacha games, jogos que usam mecânicas de roleta para a aquisição de itens e personagens raros, estão entre os maiores geradores de receita do mercado atualmente; os dois carros-chefes da Hoyoverse, Genshin Impact e o mais recente Honkai: Star Rail, lideram a lista dos mais rentáveis, com cada um arrecadando mais de US$ 30 milhões por mês.

O game móvel Blue Archive, da desenvolvedora/distribuidora Nexon (MapleStory, Dungeon Fighter Online) não gera tanta grana assim, mas frequentemente figura entre os mais lucrativos de sua categoria, ao ponto de ter muitos fãs no Japão e Coreia do Sul, seu país de origem, que gastam muito para recrutar as várias personagens fofas do game.

Blue Archive (Crédito: Divulgação/Nexon/Yostar Games)

Blue Archive (Crédito: Divulgação/Nexon/Yostar Games)

Pois foi em casa que Blue Archive se tornou o pivô de um caso curioso, no que uma reclamação de jogadores furiosos com a reclassificação etária do game, que passou a ser classificado como voltado a adultos, espiralou para uma auditoria no comitê responsável do governo, que desvendou um caso de desvio de verbas, que levará à completa reestruturação do órgão.

Gacha gamers vs. governo

Lançado em 2021 para iOS e Android, Blue Archive é um RPG tático que coloca o jogador no papel de "comandante" invisível, com a missão de coordenar esquadrões de colegiais armadas até os dentes, para enfrentar inimigos variados em diversos mapas. Essencialmente gratuito, como quase todo gacha game, ele faz dinheiro com as roletas de personagens, algumas contando com mais de uma versão alternativa.

Assim como muitos jogos orientais do gênero, o público-alvo são principalmente homens jovens, daí as personagens serem jovens garotas fofinhas, com versões de trajes mais sugestivos, de roupas de banho a trajes de coelhinha. Cada versão é uma unit diferente (não há skins equipáveis), logo, quem quer todas precisa girar a roleta, no que "baleias" e krakens jogam com a carteira.

Quem jogou títulos distribuídos pela Yostar Games, como Azur Lane e Arknights, conhece bem a estratégia. O estúdio de Xangai distribui Blue Archive no Japão e em breve o lançará na China, enquanto a Nexon fica a cargo das versões global (ocidente) e sul-coreana.

A classificação etária de Blue Archive, como muitos games do gênero que apelam para a tática "eye candy" (visuais atrativos, quase sempre pendendo para designs sensuais) o coloca como voltado a um público acima de 15/17 anos, dependendo da plataforma (Brasil como referência, respectivamente Android e iOS). Assim também era na Coreia do Sul até setembro de 2022, quando a Nexon recebeu um aviso do Comitê de Administração e Classificação de Games da Coreia do Sul (GRAC, na sigla em inglês).

O órgão alertou a desenvolvedora que seu game era impróprio para a classificação vigente na época, que era 15+, devido à presença de personagens sexualizadas e estímulo a práticas viciantes, a própria mecânica de gacha/roleta, que incentiva o jogador a continuar rodando com dinheiro, quando os recursos ingame, que podem ser acumulados, acabam. E deu uma opção à Nexon: alterar os visuais, ou aumentar a classificação etária.

No fim, o estúdio fez ambas as coisas. Em outubro de 2022, a versão original de Blue Archive passou a ser 18+, o que o classifica como um jogo pr0n, logo, sua distribuição nas lojas digitais da Apple e Google foi interrompida. Este passou a ser disponibilizado apenas para Android, via arquivo APK a ser instalado via sideloading. Para as versões móveis das lojas, uma nova versão mais comportada de Blue Archive foi lançada, esta 15+, a única que os jogadores sul-coreanos donos de iPhones podem jogar hoje.

Paralelo a isso, o GRAC também desceu o martelo em outro gacha game, o popular Fate/Grand Order, que também passou a ser 18+ e sumiu das lojas oficiais. Ambos títulos teriam sido usados como exemplos para combater o que o governo via como "proliferação de jogos mobile sexualizados", que viciam os jovens e os incentivam a gastar muito dinheiro.

Devido designs sugestivos e mecânicas viciantes, Blue Archive e Fate/Grand Order foram reclassificados como 18+ na Coreia do Sul (Crédito: Divulgação/Nexon/Yostar Games) / gacha

Devido designs sugestivos e mecânicas viciantes, Blue Archive e Fate/Grand Order foram reclassificados como 18+ na Coreia do Sul (Crédito: Divulgação/Nexon/Yostar Games)

Desnecessário dizer que os jogadores de Blue Archive na Coreia do Sul ficaram possessos com o GRAC, sem contar que a distribuição mais restrita da versão original, e o desinteresse pela mais comedida presente nas lojas oficiais, derrubou violentamente a receita que a Nexon tinha com o game em casa. Mesmo assim, ninguém previu o que viria a seguir.

Os fãs de Blue Archive abriram uma petição formal, organizada por Lee Sang-heon, advogado e membro do Partido Democrático da Coreia, e ele próprio também jogador do game da Nexon, exigindo que o GRAC reavaliasse a classificação do game, e o retornasse à faixa original.

O número de assinaturas foi tão grande, que coreanos sendo gente que leva reclamações do público a sério, o documento levou à instauração de uma auditoria e investigação pública contra o GRAC, para verificar se o órgão estava cumprindo seu dever conforme a Lei, ou estava promovendo uma caça às bruxas a certos games, com base em interesses de terceiros.

Pois bem: a auditoria revelou que três funcionários do GRAC cometeram peculato, ao se apropriarem indevidamente de ₩ 700 milhões (~R$ 2,6 milhões, cotação de 10/07/2023) de dinheiro público, recolhido via impostos, que deveria ter sido direcionado a projetos e programas do órgão. O destino da grana? Minerar bitcoins, segundo a investigação.

Os três funcionários, cujos nomes não foram revelados, respondiam pelos departamentos internos de Planejamento, Gerenciamento de Conteúdos em Games, e Suporte à Auto-Regulação. Todos renunciaram a seus cargos, e mais: o governo coreano deu indícios de que todo o GRAC será remodelado, de alto a baixo, por "não estar fazendo seu trabalho".

Em nota, Lee Sang-heon disse que o caso "não significa o fim da corrupção, mas o início de uma mudança", embora Blue Archive continue, ao menos por enquanto, classificado como 18+; embora o jogo seja "prata da casa", alguns apontam que o órgão preferia pressionar mudanças em gacha games externos, principalmente da China e Japão, no que alguns locais eram pegos no fogo cruzado. O título da Nexon virou alvo muito provavelmente devido sua popularidade, o que no fim, se revelou um passo errado para os membros do GRAC.

Claro, como todo gacha com visual anime que mira em jovens do sexo masculino, Blue Archive é bem apelativo, o que em parte explica por que governos estejam pesando a mão com games do tipo; na China ele também será bem mais comportado que a versão original, no que o órgão regulador de Pequim já encrencou com outros gachas devido visuais sugestivos e sexualizados, como Azur Lane (que chegou a perder personagens na versão chinesa) e Genshin Impact.

De qualquer forma, fica a Moral da História: não irrite os monstros marinhos.

Fonte: Game Developer

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