Meio Bit » Ciência » Cientistas se rebelam contra ganância de periódicos

Cientistas se rebelam contra ganância de periódicos

Editores de periódico científico pediram demissão, após Elsevier se recusar a negociar taxa de US$ 3,4 mil por indexação de artigos

45 semanas atrás

Todo mundo sabia que os grandes periódicos científicos, como Nature e Elsevier, não engoliriam facilmente as determinações da União Europeia e dos Estados Unidos, que estabeleceram prazos para que pesquisas financiadas com dinheiro público passassem a ser de acesso aberto.

O modelo vigente, que cobra uma nota preta pelo acesso de pesquisadores e instituições acadêmicas, privilegia apenas as editoras, e mais ninguém. Para mitigar a perda de capital, a Elsevier passou a cobrar também pela publicação dos artigos, e as cifras são muito, muito altas.

Instalações da Elsevier em Maryland Heights, Missouri (Crédito: Kristoffer Tripplaar/Alamy)

Instalações da Elsevier em Maryland Heights, Missouri (Crédito: Kristoffer Tripplaar/Alamy)

Agora, todo o corpo editorial da revista NeuroImage, uma das publicações da Elsevier, pediu as contas, como protesto contra a cobrança. O grupo, de mais de 40 cientistas, inclui líderes de pesquisa de universidades renomadas do Reino Unido, como Oxford, Cardiff, e King's College.

A farra dos periódicos

Nós já explicamos várias vezes como funciona o processo de publicação de artigos científicos em grandes periódicos, mas não custa nada revisitar o assunto. O modelo tradicional consiste em um pesquisador ou um grupo realizar uma pesquisa científica, e submeter o artigo a revisão por pares, que confrontam os dados, repetem os experimentos, analisam os métodos, e por fim, decidem se ele é válido ou não; em caso positivo, o artigo é liberado para indexação e compartilhamento.

Existem diversos veículos e editoras que publicam artigos científicos, e cada um trabalha de uma maneira. O repositório PLOS One, por exemplo, mantido pela Biblioteca Científica Pública dos EUA (PLOS), indexa todas as pesquisas sob licenças Creative Commons CC-BY, em que o acesso é 100% aberto e gratuito, desde que os autores sejam citados. Já o arXiv, da Universidade de Cornell, permite a consulta livre de artigos pré-revisão por pares.

Grandes editoras, como Nature e Elsevier, usam o mesmo processo, mas fizeram dele um comércio onde só elas ganham dinheiro. Primeiro, a submissão dos artigos científicos não reverte um centavo ao pesquisador; segundo, os revisores trabalham de graça; terceiro, a pesquisa é colocada atrás de uma paywall, em que o acesso por leitores e outras instituições é feito mediante pagamento, e os valores, seja por consulta individual ou um modelo de assinatura, que dá acervo ao acervo completo, não são baixos.

No modelo tradicional, defendido pelas grandes editoras, não importa quem financiou a pesquisa, se uma instituição privada, ou o governo, com dinheiro público. No seu entendimento, apenas elas têm o direito de lucrar com os artigos.

Por que isso continua sendo considerado um modelo aceitável? Devido ao que chamamos Fator de Impacto: pesquisadores, revisores e institutos são humanos, e também são movidos por ego. Estes querem ser indexados por um grande veículo do meio acadêmico, como Nature e Science, e assim, acabam se sujeitando às condições das editoras.

Assim como ter sua pesquisa publicada em um periódico renomado é bom para o pesquisador e para o instituto, o mesmo vale para os revisores, citados na publicação final. No fim, todos querem ter mais visibilidade para si e sua pesquisa, no que há mais chances de serem lidos na Nature, do que na PLOS One ou arXiv.

O atual processo para publicação de artigos em grandes periódicos arranca (muito) dinheiro dos leitores, instituições, e também dos autores (Crédito: Reprodução/Jorge Cham/PHD Comics)

O atual processo para publicação de artigos em grandes periódicos arranca (muito) dinheiro dos leitores, instituições, e também dos autores (Crédito: Reprodução/Jorge Cham/PHD Comics)

Vale lembrar que é prática das editoras sondar pesquisas ainda na fase preliminar, quando identificam que seu conteúdo tem um forte fator de "buzz", e tentam garantir direitos sobre ela antes mesmo da submissão para revisão. Não é raro cientistas colocarem duas ou mais publicações para brigarem por seu artigo, mesmo que ele não ganhe nenhum centavo com isso, porque ser reconhecido entre seus pares vale mais do que dinheiro. No fim, é sempre ego.

O que pouca gente sabe, é que em alguns raros casos, a editora pode cobrar uma taxa também do pesquisador ou instituto responsável, para que a pesquisa seja indexada, mas esta não era uma prática considerada lugar-comum... até recentemente.

Em 2016, a UE determinou que todos os artigos científicos financiados com dinheiro público, independente de onde fossem publicados, se tornassem de acesso aberto até 2020; em 2022, os Estados Unidos implementaram a mesma regra, fixando a data limite para 2026. Em ambos os casos a Springer Nature e a Elsevier, os dois maiores conglomerados privados de publicações científicas, ficaram fulos nas calças, porque iriam perder muito dinheiro.

Todo mundo paga, só nós lucramos

Quando as novas regras entraram em vigor na Europa, as editoras foram obrigadas a ajustar seu formato, enquanto buscavam formas de justificar a cobrança contínua. A solução encontrada, permitida por ambas legislações da UE e EUA, é conceder o acesso ao artigo pré-revisão por pares, enquanto a pesquisa finalizada permanece trancada.

Ainda assim, o acesso à versão gratuita deve ser simultâneo à paga, sendo proibido o uso de um período de embargo; este, aliás, é o método que a Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), que publica a Science, usa desde 2016, e que não mais poderá implementar em breve.

A pegadinha? As editoras privadas implementaram como regra vigente a cobrança de uma taxa por publicação, e os valores são MUITO altos. A Nature, por exemplo, fixou o valor em assustadores US$ 9,5 mil por artigo. A Elsevier, através de seus vários periódicos, também passou a cobrar pela indexação, o que no caso da NeuroImage, uma das principais publicações do ramo da neurociência, esse valor é de £2.700, ou US$ 3.377.

Nature e Elsevier ganham duas vezes, ao cobrar pela indexação e pelo acesso (Crédito: Reprodução/acervo internet)

Nature e Elsevier ganham duas vezes, ao cobrar pela indexação e pelo acesso (Crédito: Reprodução/acervo internet)

O que nos traz à presente situação, o rolo com o corpo editorial do periódico. Segundo o prof. Dr. Chris Chambers, chefe do departamento de Estimulação Cerebral da Universidade de Cardiff, que fazia parte do grupo de editores da revista, a Elsevier se recusou a rever a cobrança da taxa de indexação, notando que a margem de lucro da companhia é alta, em torno de 40%, considerando todos os custos.

O grupo de saída da NeuroImage anunciou que irá abrir um repositório público próprio, e alertam a comunidade científica de que passou da hora de ser conivente com a ganância dos grandes periódicos; sob seu ponto de vista, é imperativo que institutos e pesquisadores priorizem repositórios e publicações de acesso aberto, que não cobram os olhos da cara ou tentam lucrar em cima de pesquisas financiadas com dinheiro público.

Enquanto isso, a Elsevier parece ter se adequado muito bem ao novo modelo de publicação: a editora reportou em 2022 um aumento de 10% em sua receita, atingindo a marca de US$ 3,6 bilhões; a empresa afirma ser responsável por 18% de todo o conteúdo científico indexado anualmente. Ao que parece, a preferência pelo acesso sempre será pelo artigo finalizado, ao invés da versão pré-revisão de pares, mesmo sendo gratuita, e pesquisadores aceitarão pagar caro pela indexação, apenas para serem lidos.

Em nota, um porta-voz da Elsevier disse que a companhia "valoriza nossos (seus) editores, e estamos desapontados (com os pedidos de demissão), especialmente porque trabalhamos com eles de forma construtiva nos últimos anos". E completou, dizendo que a empresa "está comprometida em evoluir a pesquisa científica de acesso aberto", e que as taxas praticadas "estão abaixo da média do mercado em relação à qualidade (dos artigos)". Falando especificamente da cobrada pela NeuroImage, o valor "está abaixo do cobrado pelo periódico concorrente no mesmo acampo acadêmico".

Claro que US$ 3,4 mil é um valor menor que os quase US$ 10 mil por artigo que a Springer Nature anda cobrando, mas ainda não são dois tostões.

Fonte: The Guardian, Electronic Frontier Foundation

Leia mais sobre: , , , .

relacionados


Comentários