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Telefone, disque-amizade e a Internet antes da Internet

Hoje o telefone é visto como pouco mais que um incômodo, mas antigamente toda nossa vida girava entorno dele, e servia até como Tinder

1 ano e meio atrás

Hoje a primeira geração que nunca conheceu o mundo sem internet, e que nunca dependeu de um telefone fixo está prestes a ela mesma passar a tocha para seus filhos, totalmente conectados e online 24/7, mas nem sempre foi assim.

Isso já foi o ápice da tecnologia. (Crédito: DogsRNice / Wikimedia Commons)

Já falamos mais de uma vez sobre o tempo dos BBS e os primórdios da computação online no Brasil, mas hoje voltaremos mais ainda no tempo, para a Aurora do Homem, quando dinossauros caminhavam pela Terra, e telefones eram tão primitivos que só serviam para falar (os da TELERJ nem isso). E -pasmem- nem dava para levar pra rua, você dependia de algo chamado “orelhão”, e graças à inflação galopante, eles não aceitavam moedas, como nos filmes. Tínhamos que comprar “fichas”, que, claro, nunca achávamos no bolso quando precisávamos fazer uma ligação.

O mundo civilizado girava em torno do telefone, que em sua simplicidade conseguia ser extremamente versátil. Com o surgimento de serviços automáticos, ele se tornou uma fonte de consulta de informações, independente da famigerada telefonista, figura odiada universalmente, exceto durante um certo fim de ano na década de 80.

Se você reconhece isso, mantenha sua vacina do COVID em dia (Crédito: Prppedro / Wikimedia Commons)

Alguém teve a brilhante idéia de criar um comercial cheio de emoção para a Embratel, no qual um sujeito liga pra família, com auxílio da telefonista. No final ele fica na linha, ela pergunta se está tudo bem, e o cara deseja Feliz Natal pra ela, que está trabalhando 25 de dezembro.

Centenas de milhares de pessoas acharam o comercial lindo e correram pra ligar pro serviço de interurbano pra desejar Feliz Natal pras telefonistas. O sistema, claro, não agüentou e colapsou.

Na falta de infra, a TELERJ instalava orelhões móveis em locais de muita demanda. Na Zona Sul, claro. (Crédito: Reprodução Internet)

O dia-a-dia não era tão dramático, mas usava-se telefone para tudo, de pedir uma pizza a reservar passagens aéreas, mas o divertido mesmo era quando os telefones não funcionavam direito, o que era bem comum.

Um fenômeno que basicamente ninguém experimentou nos últimos 20 anos é a chamada linha cruzada. Como as linhas telefônicas eram todas físicas e analógicas, para “espionar” uma linha você só precisava acessar os cabos, fisicamente. Algumas vezes, por falta de manutenção, os fios perdiam seu isolamento e duas linhas se tocavam, misturando os sinais.

Você ligava para um número, outro atendia. Ou tirava o telefone do gancho e pimba! Estava no meio da conversa entre dois outros telefones.

Quanto aos serviços, havia vários, alguns inconcebíveis, existindo apenas por pura preguiça dos usuários, como o Hora-Certa (130), que usei muito. Ou o 137, Disque-Piada, produto criado pelo empresário Luiz Carlos Bravo, usando talentos como Ary Toledo, Agildo Ribeiro e Jô Soares.

Era uma febre, todo mundo ligava para ouvir uma piadinha besta. E pagava.

Alguns serviços da TELESP, em dezembro de 1983 (Crédito: Telebrasil)

Havia serviços úteis, como o 134, despertador, o 102, auxílio à lista telefônica, e operadoras locais tinham disque-horóscopo, resultados de futebol e outras brincadeiras. Um número muito importante era o 109, que após alguns segundos ligava de volta para seu número, excelente para fugir de saias-justas.

Na época parecia alta tecnologia, mas telefones eram capazes de muito mais.

Imagine que você está no conforto de sua casa. Acomodado em seu sofá preferido, você coloca seu headphone de alta qualidade, conectado a seu sistema de som particular. A música começa, e você está apreciando a nova temporada da Ópera de Paris, em estéreo.

Ao vivo, cada sussurro, cada nota chega quase instantaneamente nos seus ouvidos e nos de quem mais esteja conectado ao sistema. Streaming? Não, esse é o Teatrofone, uma invenção de  Clément Ader, que em 1881 fez a primeira demonstração do sistema, tornado comercial em 1890, mas com uso restrito desde 1884.

Théâtrophone em uso (Crédito: Domínio Público)

Em essência, ele usava a rede telefônica para transmitir eventos para um grande número de assinantes, isso antes mesmo da invenção do Rádio. Inclusive podemos dizer que o Rádio matou a estrela do Teatrofone, e depois do Electrofone, sua versão britânica.

Voltando aos problemas da rede, havia um bug em especial, onde um número recebia uma ligação, mas não rejeitava as próximas chamadas. As linhas iam se pendurando, com um monte de gente falando ao mesmo tempo. Um dia alguém teve a idéia de monetizar isso e surgiu o... Disque-Amizade, uma espécie de Chat do UOL (mais) nefasto.

Propaganda do Théâtrophone. Note o fone com cabo pra não estragar o cabelo (Crédito: Domínio Público)

Cobrando por minuto, você ligava e caía em uma sala com um certo número de outros usuários. Reza a lenda que casamentos surgiram e acabaram por causa do Disque-Amizade (145). Muita gente pegou muita gente, e havia o que chamamos hoje de meme, com sujeitos de voz fina (provavelmente advogados) seduzindo machões incautos e se relevando na hora H, ou alguns segundos depois.

O serviço, claro, não era para tímidos, mas o pessoal que hoje não tem problemas em expor suas vergonhas, altas e cerradinhas ou não no Skype, com certeza se divertiriam nesses “chats de voz” coletivos.

A brincadeira acabou, claro, com o pessoal que gosta de quebrar o brinquedo. O disque-amizade foi invadido por adolescentes, depois crianças, e em 1999 surgiu a denúncia que havia uma rede de exploração sexual agindo usando o serviço.

Com a privatização das teles surgiram os serviços de 0900, onde moças dadivosas estavam dispostas a ir direto ao assunto, e o disque-amizade foi abandonado por todo mundo que não queria só amizade.

O pessoal mais ágil tecnologicamente migrou para o IRC, quem preferia telefone se dividiu entre as dezenas de serviços similares, mas o tempo da confraternização oral havia acabado. Em 2016 o STF jogou a pá de cal, proibindo telessexos e outros serviços 0900, mas nessa época o país já estava forte no online, já tínhamos passado até pela era do Orkut (2004-2014) e sites de pegação/amizade abundavam na Internet brasileira.

Há uma certa justiça histórica de, após tantos anos, esses serviços todos -despertador, hora-certa, músicas, pegação- voltarem para o telefone, mesmo ele sendo irreconhecível comparado com o que tínhamos nos Anos 80. Talvez os boatos da morte do telefone tenham sido um tanto ao quanto exagerados.

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