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Spiritfarer: uma bela história sobre o fim da jornada — Review

Da mesma desenvolvedora de Jotun e Sundered, Spiritfarer é um belo jogo de gerenciamento sobre dizer adeus a entes queridos

3 anos e meio atrás

Spiritfarer é um caso clássico de "a terceira vez é que conta": depois dos excelentes Jotun e Sundered, a desenvolvedora indie Thunder Lotus Games entrega um jogo com mecânica completamente diferente, indo da ação ao gerenciamento de recursos, com uma singela narrativa sobre a vida, a morte e o pós-vida.

O resultado é uma obra-prima, um dos mais sensíveis e belos jogos dos últimos anos.

Spiritfarer (Crédito: Divulgação/Thunder Lotus Games)

Spiritfarer (Crédito: Divulgação/Thunder Lotus Games)

O óbolo de Stella

A história de Spiritfarer se passa no pós-vida, em que a protagonista Stella desperta na presença de Caronte, o barqueiro do submundo. Ele incumbe a jovem (e seu gato Daffodil) da tarefa mais árdua e honrada que existe, a de sucedê-lo como a nova condutora dos espíritos.

Ela recebe uma ferramenta mágica, a Luz Eterna, um globo capaz de assumir qualquer forma e que age como o símbolo de seu status como barqueira dos mortos, e lhe permite cumprir o trabalho como a "segunda Caronte": levar os mortos através do rio Estige, na mitologia grega a fronteira entre o submundo e o mundo dos vivos.

A partir daqui, Stella e Daffodil têm um vasto mundo para explorar com seu barco, onde sua missão é encontrar almas errantes e ajudá-las a resolver as pendências que deixaram quando morreram, para só então serem capazes de seguir em frente, rumo ao descanso dos justos.

Dizendo dessa forma, a impressão que Spiritfarer passa é a de ser um jogo triste, já que todos os personagens, incluindo Stella, estão mortos (é o pós-vida, afinal); no entanto, a narrativa se concentra não em reconhecer que os passageiros deixaram o mundo dos vivos, e sim em conciliar suas narrativas e resolver seus problemas.

E por incrível que pareça, você nunca viu um grupo com espíritos tão... vivos.

Em Spiritfarer, cuide bem do barco e passageiros

Spiritfarer é um jogo de gerenciamento de recursos e pessoas. No papel de Stella, você terá que administrar seu barco e cuidar do bem-estar de seus passageiros, já que a embarcação será a casa temporária deles.

Você tem a opção de construir diversas estruturas no deque, desde uma casa de hóspedes a uma cozinha (para fazer as refeições favoritas de cada espírito), uma marcenaria (para trabalhar com madeira e outros recursos), um arado e um jardim (para plantar ingredientes), um tear (para trançar tecidos) e por aí vai.

Um pouco abarrotado, não? (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

Um pouco abarrotado, não? (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

O barco em si não precisa ser conduzido: ele se move graças à Luz Eterna de Stella e você só precisa marcar um ponto no mapa, que ele se dirigirá até lá enquanto for dia. À noite ele para, até para permitir que os espíritos durmam sem o barulho do motor.

Você pode conseguir recursos de diversas maneiras: pescando, coletando madeira em ilhas, comprando no mercado e etc. Alguns itens e materiais podem ser coletados em pontos específicos, como centelhas (a moeda corrente do pós-vida), sementes e raios, que você guarda em garrafas.

Exatamente por isso, é preciso pensar bem onde colocar cada nova estrutura, pois a coleta de glims e raios é feia não apenas se movendo horizontalmente, mas também verticalmente. Assim, cômodos bem posicionados permitem que você se mova melhor.

Conforme você faz upgrades no navio, o deque ficará maior e permitirá que você crie mais construções, algumas pedidas pelos passageiros, que gostam de ter seu cantinho particular; outras permitirão que eles usem suas habilidades particulares, como Atul, um marceneiro, e Gwen, uma tecelã.

Um réquiem para os amigos

Spiritfarer (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

Spiritfarer (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

Cada passageiro que Stella acolhe em seu barco é único: a Thunder Lotus Games decidiu caracteriza-los como animais antropomórficos e cada um possui uma personalidade única, com desejos, necessidades e humores distintos.

A alce Gwen, por exemplo é uma mulher esnobe, pedante e possui uma língua bem afiada, traço este que vem a calhar em uma parte específica; o sapo Atul é extrovertido e comilão; a cobra Summer é espiritualizada e ensina Stella a tocar música para as plantas (o que é bem útil), e assim vai.

Cada espírito possui uma comida favorita, aquelas que gosta e que não gosta, hobbies e etc., e Stella deve deixar seu nível de satisfação no máximo, seja com as refeições, com construções personalizadas ou com abraços.

Existe alegria no pós-vida (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

Existe alegria no pós-vida (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

Embora essencialmente um jogo de gerenciamento, Spiritfarer também possui elementos de plataforma, que você fará uso para coletar recursos pelo mapa e pelo barco, ou resolver quebra-cabeças. Com o tempo, a personagem ganhará novas habilidades ao compra-las com óbolos.

Na mitologia grega, o morto devia pagar um óbolo, uma moeda mortuária a Caronte, para que este pudesse levá-lo para o reino dos mortos; assim, era costume na Grécia e Roma antigas os falecidos serem enterrados com um óbolo, para custear a travessia. Quem não tivesse a moeda (morreu sem ser sepultado, ou sem o óbolo) era condenado a vagar pelas margens do rio Aqueronte, um dos afluentes do Estige por 100 anos, até que lhe fosse permitido seguir viagem.

A mecânica pode parecer cansativa e repetitiva, mas Spiritfarer faz um bom trabalho ao dar significado à jogabilidade, amarrando-a de forma intrínseca à narrativa. No fim, a experiência é divertida e o leque de customizações permite extensa experimentação, sem nenhum tipo de punição.

Um fato interessante é Stella ser o clássico protagonista mudo; na verdade ela mal possui uma personalidade, o pouco que sabemos de seu background vem dos espíritos que a conheceram em vida.

Spiritfarer (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

Spiritfarer (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

Os verdadeiros protagonistas do jogo são os passageiros, com sua bagagem de histórias, conflitos pessoais e assuntos a resolver, onde Stella deve fazer o possível para que sejam concluídos. A localização fez um excelente trabalho de tradução e adaptação do texto para o português brasileiro, mantendo o sentido e peso emocional de cada momento.

Os gráficos são lindos, uma excelente arte desenhada à mão similar a de Sundered, mas mais limpa, dada a temática do jogo. As músicas, por sua vez dão o tom em momentos divertidos, tristes e de suspense.

Porém, a força de Spiritfarer está não em agir, mas em ouvir. Por não falar, Stella é a espectadora da trajetória de seus passageiros, que deverão encerrar seus problemas pendentes para só então serem capazes de ir para outro lado, o descanso eterno.

É aqui que o jogo ensina o desapego, pois cada um daqueles únicos personagens dirá adeus a Stella em algum momento.

Spiritfarer (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

Spiritfarer (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

Muitas vezes a hora chega sem aviso nenhum, uma lembrança de que a morte não marca hora na vida real; resta ao jogador respeitar o momento de cada espírito e permitir que eles sigam em frente.

Normalmente tratada como um momento triste da vida, ou alegre em algumas culturas, a Thunder Lotus Games escolheu abordar a morte em Spiritfarer de modo equilibrado, onde ela não deve ser temida ou celebrada, mas respeitada como parte natural da vida e da jornada individual de cada um de nós, a aventura final que todos teremos que encarar, sozinhos, no fim de nossos dias.

A importância dos que se foram em Spiritfarer repousa nos ensinamentos que cada espírito passará adiante, que Stella usará em sua missão como barqueira e guia de seus próximos passageiros.

Assim como na vida real, é isto que permite às pessoas continuarem vivas para aqueles que ficam: o que elas deixam para trás.

Conclusão

Poucos foram os jogos que conseguiram atingir o estado de arte completa, equilibrando história, apresentação e jogabilidade. Da última década podemos citar dois casos, Journey e GRIS (curiosamente, ambos também de estúdios independentes), que são bem similares entre si, embora suas narrativas sejam completamente diferentes.

Spiritfarer entra para esse seleto grupo como um game completamente ímpar: mesmo sendo de um gênero que muitos não curtem, a criação da Thunder Lotus Games consegue amarrar suas mecânicas à história organicamente, de modo a não se tornar maçante ou repetitivo.

Spiritfarer (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

Spiritfarer (Crédito: Reprodução/Thunder Lotus Games)

No fim, Spiritfarer é uma experiência sobre ouvir. Stella atua como o fio condutor da história de seus passageiros, os verdadeiros protagonistas do jogo, e oferece os meios para que eles resolvam suas pendências e possam seguir em frente, rumo ao descanso eterno.

Mais do que um jogo sobre a importância da vida e aprender a lidar com a partida daqueles que amamos, Spiritfarer é um game sobre se doar, ajudar, apoiar, confortar e reconhecer o valor daqueles que nos cercam.

Spiritfarer — Ficha Técnica

  • Plataformas — PS4, Xbox One, Nintendo Switch, Windows, macOS e Linux (analisado no Windows, com cópia fornecida pela Thunder Lotus Games);
  • Desenvolvedora — Thunder Lotus Games;
  • Distribuidora — Thunder Lotus Games;
  • Classificação Indicativa — 10 anos.

Pontos Fortes

  • Excelente direção artística, com desenhos feitos à mão;
  • Jogabilidade estimula a experimentação e não é punitiva;
  • Cada passageiro é único, com história, personalidade e necessidades diferentes;
  • Grande quantidade de recursos e ferramentas, que permitem customização quase sem limites;
  • Narrativa conduzida de forma excelente, abordando um tema sensível de forma singela.

Pontos Fracos

  • Nenhum. Sério, não encontrei nenhum defeito, por mais que eu me esforçasse em procurar.

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