Ronaldo Gogoni 5 anos atrás
GRIS vem causando burburinho na indústria de games desde seu anúncio. O título de estreia da desenvolvedora espanhola Nomada Studio é um jogo de plataforma inteligente e acessível, que conta a história de uma jovem reunindo os cacos de sua psique despedaçada, em um cenário bucólico e desolado.
Afinal, GRIS é ou não tudo aquilo que o público esperava? Descubra em nossa análise a seguir.
A trama de GRIS é totalmente aberta a interpretações, mas revela ideias claras sobre seu tema. A protagonista, que dá nome ao game (que significa "cinza" em espanhol e francês) está passando por um momento conturbado de sua vida, tendo que lidar com um trauma e a depressão. Gris, uma cantora, perde sua voz e se vê forçada a fazer uma escolha: mergulhar nas trevas, ou seguir adiante e lidar com o problema.
O início do jogo deixa claro o quão fraturada está sua mente: a paisagem é vazia, melancólica, sem vida ou cor. Gradualmente, conforme o jogador avança o mundo, sendo uma representação da psique de Gris, vai tomando forma, se reconstruindo à medida que a personagem ultrapassa vários testes, adquire novas habilidades e vai recuperando sua confiança e auto-estima.
Uma das partes mais interessantes de GRIS é a total ausência do HUD. A ajuda é dada em momentos muito específicos, com o game apenas informando qual botão você deve pressionar para acionar um novo poder, e só. Tudo o mais depende da sua capacidade de entender o cenário e seus elementos, para fazer uso dele da melhor maneira. Tal decisão foi tomada até para permitir que o jogador aprecie a arte do jogo em toda a sua plenitude.
As mecânicas são bem simples. No começo Gris só pula, mas vai ganhando poderes que se conectam diretamente a seu vestido. A medida que você progride, a personagem conseguirá transformá-lo em um bloco sólido para resistir a ventos fortes ou abrir passagens, usá-lo como uma capa para atingir novas alturas, e para nadar, alcançando águas profundas com facilidade.
O jogo te impele a sempre ir em frente, e esse é seu maior defeito: GRIS é absolutamente linear, com quase zero fator de exploração. Você terá que resolver quebra-cabeças para adquirir pequenos orbes, as chaves para abrir algumas passagens e desbloquear novos poderes, e tirando alguns poucos itens mais escondidos (mas não muito), há pouco o que explorar.
No geral, GRIS é um jogo de plataforma bastante inteligente, que pode ser curtido por jogadores veteranos e novatos, principalmente pelos quebra-cabeças muito bem desenvolvidos, mas não intransponíveis. Basta que o jogador se permita pensar um pouco, que a solução logo aparece.
A comparação com o título de 2012 da thatgamecompany, hoje um clássico é inevitável. Assim como em Journey, o mundo de GRIS é vasto e solitário, com pouquíssimos habitantes. Em um momento, você fará amizade com uma criaturinha, que te ajudará a resolver alguns quebra-cabeças e a abrir passagens, e o modo como você o "recruta" é bastante inteligente.
Ele é um dos poucos seres que interagem diretamente com Gris, além na entidade sombria capaz de assumir diversas formas. No entanto, mesmo esta fornece meios para que a personagem continue avançando, e é importante salientar que de modo a contar sua história, a Nomada Studio decidiu que o jogador não pode morrer. Isso foi feito para permitir que o máximo de pessoas possam jogar GRIS, mesmo os menos experientes.
Já a arte bebe direto da fonte do ilustrador francês Jean Giraud (1938 – 2012), mais conhecido como Mœbius. Adrian Cuevas e Roger Mendoza, fundadores da Nomada Studio admitem que o artista, responsável por obras seminais como O Incal e Surfista Prateado: Parábola (um dos melhores roteiros de Stan Lee) foi, desde o início, uma de suas maiores inspirações para GRIS. Ele também possui toques de Valerian et Laureline, de Pierre Christin e Jean-Claude Mézières (cujo filme baseado na HQ gerou uma das mais belas cenas da história do cinema), em alguns aspectos.
O mérito é do artista catalão Conrad Roset, responsável direto pela existência tanto de GRIS, quanto da própria Nomada Studio. Cuevas e Mendoza, que até 2016 eram programadores da Ubisoft, deixaram seus empregos e formaram a desenvolvedora sediada em Barcelona, com o único propósito de dar vida à sua arte.
Curiosamente, o game acertou também onde não mirou: o design de GRIS é bem similar ao de Belladonna of Sadness, longa animado de 1973 produzido pela Mushi Production, o estúdio do mestre Osamu Tezuka, originalmente desenvolvido como o terceiro filme da série Animerama, de temas mais adultos, centrada no erotismo e poder feminino.
Lançado na sequência de As Mil e Uma Noites (1969) e Cleópatra (1970, o primeiro anime pr0n da história), quando o estúdio já estava falindo, e sem o envolvimento de Tezuka (segundo Mauricio de Sousa, o autor japonês se arrependeu de ter introduzido sexo e violência nos mangás e animes), a obra foi ignorada pelo grande circuito, se tornando ainda mais cult que os demais. O filme chegou aos Estados Unidos apenas em 2016, restaurado em 4K.
Caso o "Red Band" não tenha deixado claro, o trailer a seguir contém cenas pesadas, NSFW e tudo o mais.
Claro que a temática de GRIS não chega nem perto da de Belladonna of Sadness, o game tem zero erotismo e violência gráfica, mas seu estilo experimental, com paisagens aquareladas, e as brincadeiras com tons e pinceladas de tinta, que mudam o ambiente conforme Gris avança, lembram muito as decisões artísticas do filme.
O design é provido pela Unity Engine, que vem se mostrando uma ferramenta extremamente versátil nas mãos de desenvolvedoras pequenas, vide o estilo vintage apresentado pela Studio MDHR Entertainment em Cuphead. Outros exemplos recentes são a série Ori, Subnautica, Fe, e o belíssimo Hollow Knight.
Na parte do som, o destaque vai para a trilha sonora composta pela banda de chamber pop Berlinist, de Barcelona; a trilha foi composta tendo como base os designs de Roset e o desenrolar da trama, permitindo que as músicas se integrem de forma orgânica ao que acontece na tela.
Eis um fato interessante: o ano de 2018 começou e terminou com dois jogos independentes bastante curiosos, ambos protagonizados por mulheres. No entanto, Dandara e GRIS estão em polos totalmente opostos.
O game da desenvolvedora mineira Long Hat House é um Metroidvania com elementos inovadores, capitaneado por uma personagem forte e destemida; já o título da Nomada Studio é um passeio pela mente em frangalhos da protagonista, que está em uma jornada de reavaliação e aceitação.
Um não é melhor ou pior que o outro, ambos possuem seu apelo e satisfazem o jogador de maneiras diferentes.
No entanto, GRIS é único em sua forma. Seja na estética ou no tema, ele difere de tudo o que já se viu em games e proporcionou uma das duas melhores experiências que já tive, em todos esses anos nessa indústria vital, com um desafio adequado, músicas belíssimas e um visual estonteante. Acima dele, só Journey.
O game tem seus defeitos, claro. As poucas opções de exploração o tornam mais vazio e contemplativo do que precisava ser, e uma vez terminado, dificilmente você se sentirá impelido a retornar. Ainda assim, GRIS é uma experiência única, que merece a chance de ser degustado por todos os que apreciam games como uma forma de expressão artística.
Pontos Fortes:
Pontos Fracos: