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Stan, The Man - um tributo

Stan Lee se foi, mas seu Universo ficou. Neste singelo tributo destacamos parte da carreira e a importância dele para os quadrinhos e seus fãs.

5 anos atrás

Stan Lee não era perfeito, e ao passar suas imperfeições humanas para seus personagens, ele os tornou muito melhores que os heróis perfeitos da distinta concorrência. Agora Stan nos deixou, deixando-nos com um belo problema: Homenagear heróis é fácil, mas o quê dizer de um criador de heróis? Como se agradece a alguém que criou um Universo?

Primeiro, não com reverência ou medo. Stan não é um Criador malvado. Ele lembra mais Thor em Stargate SG-1, um alienígena confundido com um deus por humanos primitivos. Em um episódio um Goa'uld ordena que o humano se ajoelhe "diante de seu deus". O humano se recusa: "Meu deus é Thor, e ele nos ensinou a ficar de pé, como iguais!"

Stan Lee cresceu em Nova York durante a Grande Depressão, serviu no Exército na 2a Grande Guerra como escritor e criador, produzindo material de propaganda e treinamento. Ele viu o ser humano em sua condição mais frágil, lidou com a realidade de um mundo em guerra, mas nunca perdeu a esperança, nunca deixou de acreditar nas pessoas.

Eu não estou preocupado em fazer uma biografia detalhada de Stan Lee, nem listar todos os personagens que ele criou, a Wikipedia existe pra isso. Também não me preocupo com as polêmicas de quem criou o quê, se filho feio não tem pai quando a criança é bonita e rica, aparece um monte. Stan Lee é grande mas o que ele representa é maior ainda, seu impacto vai muito além do que ele criou, ele é responsável por inspirar muito mais.

Não estou dizendo que não gosto dos personagens da DC. Eu cresci com eles, Batman ainda é o maior de todos os heróis, e o Super-Homem é um arquétipo, praticamente um deus vivendo entre homens, representa tudo de bom e certo, perfeito e infalível, e por isso mesmo, por mais que eu o adore não consigo me identificar com o personagem.

Representatividade é importante, as crianças, todos os leitores precisam de personagens com que se identifiquem, e Stan Lee fez isso, mas não no sentido rasteiro da lacração, que considera toda mídia um espelho. A empatia gerada pelos personagens de Stan Lee vai muito além da cor da pele ou de uma fortuidade genética. Eu me identifico com os personagens por causa de seus defeitos. Eles são personagens imperfeitos, o que é perfeito para um mundo imperfeito.

Isso mesmo. Stan Lee quebrou o brinquedo e com isso fez com que milhões de leitores passassem a ver gibis como muito mais do que sujeitos usando cueca por cima da calça se pegando de porrada. E isso aconteceu quase por acaso. Ele já trabalhava para o editor Martin Goodman desde 1941, escrevendo para a Timely Comics, mas Goodman só queria saber do que estava na moda, era um seguidor de tendências, ao invés de criá-las.

Isso acabou cansando Stan, que não aguentava mais escrever romances açucarados, faroestes, histórias de gangsters. Quando veio a missão de aproveitar (mais uma vez) a onda e lançar vários títulos de super-heróis, Stan estava a ponto de mudar de carreira. Joan, sua esposa sugeriu que ele chutasse o pau da barraca e escrevesse as histórias que queria escrever, sem seguir o molde da DC e de todo mundo.

Ele escreveu sobre o que conhecia; a vida no Bronx, as dificuldades do dia-a-dia, o quanto por mais poderes que um herói pudesse ter, no final do dia ele era uma pessoa comum, com necessidades, problemas e dúvidas. ISSO bateu muito mais fundo do que se Stan Lee tivesse criado uma história sobre um super-herói que na identidade secreta fosse um nerd gordo da baixada fluminense.

Fredric Wertham acusava os gibis de serem perigosos e deturparem a mente das crianças. Ele acreditava tanto nisso que mentiu e falsificou pesquisas para provar sua crença. Pais que nunca se deram ao trabalho de abrir um gibi consideravam essas histórias escapistas, simplórias, descartáveis. Em grande parte é verdade, mas no meio delas há lições e uma moralidade igualmente simples. Grandes poderes trazem grandes responsabilidades, e pisar nos mais fracos é errado. Usar seus poderes para benefício próprio é errado. Destratar o diferente, é errado.

Stan Lee não tinha medo de mostrar esse lado errado. Na primeira página da primeira aparição do Homem-Aranha, em Amazing Fantasy #15 de 1962 Peter Parker é ridicularizado por ser um nerd:

Peter é mostrado como um aluno excelente, com uma família amorosa, mas um nerd de ciências, tímido e rejeitado. O grande diferencial é que assim como na vida real, ele se ressentia com essa rejeição, todos os nerds na mesma condição leram o último quadrinho e algo clicou em suas mentes "essa história é diferente, eles me entendem."

Aqui a história poderia se desenrolar seguindo o caminho da vingança, Parker participa de um evento de Luta Livre, depois que ganha seus poderes de aranha, rapidamente tem sucesso, dinheiro, um futuro mas sua timidez e isolamento social o transformaram em um egoísta, e ele comete o erro fatal: Diz "não é problema meu" e deixa fugir um assaltante, que mais tarde irá matar o Tio Ben.

Stan jogou com as expectativas do leitor, ele fez com que a gente se identificasse com o Parker, apenas para termos noção de nosso próprio egoísmo.

Stan adorava fazer isso, transformar quadrinhos em histórias com lições de moral, como os velhos mitos e contos de fadas. Só que não era algo simplório como os desenhos do He-Man. No maniqueísta mundo dos quadrinhos, os personagens de Stan Lee eram cinza. O Homem-Aranha era visto como ameaça por boa parte da cidade, e a cruzada de JJ Jameson contra vigilantes mascarados não deixa de ter seu mérito, afinal como pode alguém que diz defender a Lei ignorá-la agindo por conta própria, sem supervisão, controle ou responsabilidade?

Em tempos onde ativismo social social se resume a culpar os outros por ter nascido, chega a ser impensável um Stan Lee, que traduziu tão bem os problemas de sua época para a linguagem de seus leitores. Muitos anos antes de saber quem foram Martin Luther King, Jr e Malcolm X, eu já sabia quem eram o Professor X e Magneto, Os X-Men ampliaram a discussão racial para uma metáfora sobre preconceito de todo tipo.

O leitor era (provavelmente) humano, mas ao ver a história sob o ponto de vista dos mutantes, entendia a desconfiança deles, e Magneto, por mais vilão que fosse, tinha seus motivos e seus objetivos eram nobres. Por décadas os personagens foram adotados por populações marginalizadas e abraçados por leitores que entendiam a lição.

Quando Stan Lee decidiu criar um super-herói negro, quebrou todas as expectativas. OK, tecnicamente o Pantera-Negra Não seja o primeiro super-herói afro-americano, ele é o primeiro afro-africano, apareceu em Julho de 1966 na capa do Fantastic Four #52, em uma história onde ele quase derrota o Quarteto, tem tecnologia que impressiona Reed Richard e é o homem mais rico do mundo.

Isso mesmo, a mídia infantil escapista de histórias bobas colocava um negro como super-herói, trilionário, REI em 1966, mesma época em que o simples ato de um negro casar com uma branca era ILEGAL em mais da metade dos Estados Unidos.

Curiosidade: em 1967 surgiu o partido dos Panteras Negras, grupo violento que causou bastante problema durante o movimento dos Direitos Civis. Por um tempo para evitar confusões e acusações políticas, o personagem mudou de nome para Leopardo Negro, e isso foi devidamente explicado no próprio gibi.

Nem todo mundo gostava dessa abordagem, claro, e Stan Lee em seus editoriais nos gibis chegou a tocar nesse tema:

"De tempos em tempos recebemos cartas de leitores imaginando por quê temos tantas mensagens morais em nossas revistas. Eles apontam que gibis deveriam ser uma leitura escapista, e nada  mais.

Mas, de alguma forma, eu não consigo enxergar desse jeito. Para mim uma história sem mensagem, mesmo que subliminar, é como um homem sem uma alma. De fato, mesmo a literatura mais escapista de todas - velhos contos de fadas e lendas heroicas- contêm pontos de vista morais e filosóficos.

Stan Lee também era zoeira!

Em toda faculdade em que eu faço um discurso, há tanta discussão sobre guerra e paz, direitos civis e a chamada revolução jovem, quanto em nossas revistas.

Ninguém vive em um vácuo. -nenhum de nós permanece intocado pelos eventos à nossa volta - Eventos que dão forma às nossas histórias da mesma forma com  que moldam nossas vidas. Claro que nossas histórias podem ser chamadas de escapistas, mas só porque algo é divertido, não quer dizer que tenhamos que cobrir nossos cérebros com um cobertor quando estamos lendo!

Excelsior!

Stan Lee"

Mais que um contador de histórias, Stan Lee era um moldador de mentes, com pequenas lições ajudando a forjar caráter.

Há Controvérsias

Stan Lee foi acusado de aparecer mais do que deveria, de capitalizar em cima do trabalho dos outros, mas em verdade ele era um showman, ele era a figura pública de uma indústria de introvertidos. Stan adorava quadrinhos, adorava a Marvel, o que tinha de entusiasmado tinha de péssimo gerente, claro, e por isso tantos de seus empreendimentos deram errado, mas ele nunca desanimou.

Mesmo podendo se aposentar, Stan Lee nunca parou de trabalhar, ele era obcecado, todo dia 9 da manhã estava no escritório ajudando a produzir filmes e séries, emprestando sua imagem e prestígio para produtos bons, e alguns não tão bons...

Ele era uma presença constante em um mundo de anônimos famosos. A maioria dos leitores é incapaz de reconhecer mesmo os autores mais famosos. pouquíssimos nomes são associados a rostos, Neil Gaiman todo mundo reconhece, assim como é simples para qualquer fã olhar e identificar na hora Alan Moore:

EU SEI.

Stan Lee não, ele era o rosto dos quadrinhos para o resto do mundo, fosse um apresentador de talk show em rede nacional, fosse um garotinho com um gibi na mão, tímido com medo de pedir um autógrafo. Todos eram tratados igual, todos eram "true believers", mesmo os fãs da Distinta Concorrência, como Stan chamava a DC Comics.

Ele não era a Marvel, ele representava toda uma mídia, toda uma forma de arte, era um criador responsável por um Universo e embaixador de inúmeros outros, e respeitado a ponto da DC deixar que ele brincasse com suas propriedades mais valiosas:

Esse velhinho que criava mitos já estava cansado, sua visão falhando, e com a morte de Joan, sua esposa por 65 anos em 2017, ele perdeu muita da alegria de viver, também foi achacado por abutres atrás de seu dinheiro, mas mesmo assim não dá pra dizer que Stan Lee teve uma vida ruim.

Ele foi reconhecido amado e homenageado em vida, tanto por seus pares quanto por seus fãs. Onde ele colocasse o pé, era recebido com sorrisos. Vejam esta foto durante sua participação em Big Bang Theory. Só há sinceridade e carinho nesse beijo da Kaley Cuoco:

Stan escrevia histórias que eram desprezadas pro professores, pais e adultos em geral, eram vendidas em postos de gasolina e farmácias, consideradas uma forma de arte menor mesmo entre os que a apreciavam -estou olhando pra você, Europa- Suas idéias e aventuras épicas migraram para a TV sofrendo horríveis reduções em escala, em nome do orçamento. Quadrinhos eram um gueto cuja fronteira aquele judeu magrinho do Bronx sonhava ultrapassar, e ele conseguiu!

Aos poucos Hollywood percebeu que era possível contar grandes histórias baseadas em quadrinhos, a Marvel, que chegou às portas da falência e teve que fatiar seus personagens e alugá-los para diversos estúdios se tornou uma potência cinematográfica. Nada mais era impossível, tudo que Stan Lee havia sonhado era realidade no mundo de fantasia do cinema. Sem gambiarras, sem limitações orçamentárias.

Tony Stark, Thor, até mesmo o Hulk estavam lá. E sabe quando a ficha caiu, quando eu percebi isso? Somente nesta cena de Guerra Civil:

O ciclo se fechou, a Marvel do cinema voltou pra casa. Levou anos, custou uma fortuna mas felizmente eles tinham as duas coisas. Na hora certa, no tempo certo, depois de tantos altos e baixos, agora que já sabiam como fazer um bom filme de super-herói, podiam consertar o Homem-Aranha. E crianças, eles consertaram.

O maior presente que Stan Lee poderia receber do Universo, ele recebeu: Viu todas as suas criações se tornarem carne e osso na tela do cinema, poderosos em toda sua glória. Incontáveis pessoas trabalharam para levar essas histórias para a grande tela, mas elas não existiriam se Stanley Martin Lieber não criasse, com sua fiel máquina de escrever aqueles personagens.

Se ver o Universo Marvel no cinema foi um presente para os fãs, imagine para seu criador. Depois de Guerra Infinita, é justo imaginar que Stan Lee, depois de ver sua Criação e constatar que ela era boa, tenha finalmente descansado.

Vá em paz, obrigado por tudo, Stan.

Excelsior!

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