Carlos Cardoso 6 anos atrás
Copa do Mundo e eventos similares costumam colocar o Gerador de Hipérboles da imprensa no 11, e essa não é exceção. Junte a isso a memória de peixe dourado dos leitores e a incapacidade quase religiosa de todo mundo de fazer pesquisas no Google e temos uma tempestade perfeita de bobagem, como a história de que a comemoração do gol do México contra a Alemanha desencadeou um TERREMOTO.
É sério. A alegação, claro, não o fato ocorrido.
Primeiro de tudo, vamos descartar o óbvio. Apesar de ter gente do telefone-sem-fio dizendo, não foi a torcida pulando NA RÚSSIA que desencadeou o tremor. Na verdade nada desencadeou tremor nenhum. Do mesmo jeito que fazer xixi pra cima não é chuva, provocar uma vibração detectável no solo não é um terremoto, é… uma vibração detectável no solo.
O que aconteceu: dois sismógrafos do Instituto de Investigações Geológicas e Atmosféricas do México detectaram um evento sísmico no momento do gol. Os dois sensores estavam bem próximos a um estádio lotado de gente assistindo ao jogo.
Veja a localização do sensor AM.R6FD1, em Benito Juarez, em relação ao estádio.
Como todo mundo que já se escondeu de dinossauros sabe, vibrações são ondas percorrendo um meio, e podem ser muito fortes ou muito fracas, a capacidade de detectar essas vibrações varia de equipamento pra equipamento. O app do seu celular (mais sobre isso depois) não é grande coisa, a maioria dos sismógrafos made in china são uma boa porcaria, e não seriam aprovados pelos padrões de qualquer bom laboratório.
O sismógrafo da foto por exemplo, é muito limitado, a única coisa que informa é a direção da onda sísmica.
A gente só deixa passar porque foi criado pelo grande cientista chinês Zhang Heng no ano 132, enquanto a Europa basicamente ainda comia estrume.
O tremor causado pelos torcedores pulando no estádio não foi nada inédito. Nos EUA começaram a prestar atenção nisso em 1988, quando um sismógrafo a menos de 200 metros do estádio captou a vibração da torcida em um jogo entre os LSU Tigers e os Auburn Tigers. Outros jogos da NFL também causaram tremores, incluindo dois em 2011, em em 2013, e em 2015, 2016 e 2017.
Em 2009 na final da Copa dos Campeões em Roma, outro “tremor”.
Um caso bem mais grandioso foi detectado com o Experimento Sísmico de Camarões, um projeto que durou entre 2005 e 2007, com 32 sismógrafos espalhados pelo país africano. Em 2006, durante a etapa de qualificação para a Copa das Nações Africanas, oito gols em quatro partidas apareceram nos sismógrafos.
As celebrações das cidades e aldeias variavam de acordo com a importância dos gols. Uma celebração de um gol na final contra a Costa do Marfim, na prorrogação foi detectada em ⅔ dos sismógrafos, chegando a ser percebida por equipamentos a 1.200 km de distância do estádio.
Em conclusão: a vibração de dezenas de milhares de pessoas pode sim ser captada por um sismógrafo, mas não é um terremoto. Eu sei que dá audiência, rende cliques, mas onde fica a responsabilidade jornalística? Se um fenômeno comum é alçado a algo incrível onde fica a credibilidade jornalística?
E não é só no futebol. Hoje pela milésima vez a mídia sensacionalizou algo corriqueiro:
É só um foguete sendo lançado no cair da noite ou nas primeiras horas da manhã, quando ainda está escuro no solo mas os raios do Sol já chegam nas altitudes mais elevadas. Mas Não, é preciso vender o mistééério.
Isso é coisa de gente preguiçosa, que não sabe que a realidade pode ser bem mais impressionante. Quer ver o que realmente causou um mini-terremoto? Isto:
No dia 15 de agosto de 1989 um sismógrafo da Caltech, em Pasadena, Califórnia detectou uma onda sísmica anormal. 12,5 segundos depois dois estrondos encheram o ar. O mistério durou poucos segundos, a direção da onda e os estrondos eram a chave.
Os estrondos eram o choque sônico duplo da Columbia, causados pela cauda e pelo bico. A relação com a onda sísmica? Simples, ou melhor, “simples”. Um choque sônico comum não tem energia pra gerar uma onda sísmica significativa, mas a Columbia sobrevoou Los Angeles a 2,6 vezes a velocidade do som.
Seus mais de 400 arranha-céus foram atingidos simultaneamente pela onda de choque, e começaram a ressoar como um sino. Isso afetou as fundações, que pressionaram o solo, a energia da pressão sonora foi amplificada e transformada em uma onda sísmica, e como a velocidade do “som” na terra é muito mais do que o ar, a onda ultrapassou a Columbia e chegou primeiro em Pasadena.
Só não é mais rápido do que a velocidade com que as mentiras se espalham na internet.