Meio Bit » Games » Nintendo, RIP Yuzu (e Citra), e a Queda de Ícaro

Nintendo, RIP Yuzu (e Citra), e a Queda de Ícaro

Devs do Yuzu e Citra atraíram a ira da Nintendo por emularem sistemas atuais, lucrarem com ambos softwares, e estimularem a pirataria

05/03/2024 às 10:59

A Nintendo conseguiu o que queria: a Tropic Haze, empresa responsável pelos emuladores Yuzu (Switch) e Citra (3DS), fechou um acordo extrajudicial com a gigante japonesa, se comprometendo a encerrar o desenvolvimento e distribuição de ambos.

Não obstante, os devs terão que remover da internet e destruir códigos e hardware usados no processo de criação do Yuzu e Citra, além de pagar US$ 2,4 milhões em danos à Big N, e repassar à casa do Mario o domínio yuzu-emu.org, já offline.

Yuzu teria chamado atenção da Nintendo por manter um Patreon, e não coibir a pirataria em seu servidor do Discord (Crédito: Ronaldo Gogoni/Meio Bit)

Yuzu teria chamado atenção da Nintendo por manter um Patreon, e não coibir a pirataria em seu servidor do Discord (Crédito: Ronaldo Gogoni/Meio Bit)

O caso está sendo visto como as consequências da Tropical Haze "voar perto demais do Sol": ao viabilizar a emulação de sistemas correntes, que vai ao encontro do argumento de preservação de games antigos e/ou indisponíveis, e receber doações colocando versões prévias do Yuzu atrás de paywalls, a empresa atraiu os olhares furiosos da Nintendo.

Porém, o maior motivo para a ruína do Yuzu, foi o vazamento de The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom dias antes do lançamento oficial, e sua perfeita emulação (na verdade, rodando ainda melhor) no software.

Money, so they say...

Os pormenores por trás do acordo extrajudicial entre a Tropical Haze e a Nintendo, você encontra pela internet em todo canto. O que podemos dizer é que, por ser fechado fora dos tribunais, ainda que o juiz tenha que dar seu aval, ele não cria uma jurisprudência, assim, os demais emuladores de videogames continuam sendo considerados softwares legais.

Dessa forma, não será iniciada uma caça às bruxas contra todos os emuladores de consoles, antigos e recentes, de mesa e portáteis; a situação envolvendo a Tropical Haze afeta tão somente o Yuzu e o Citra, e nenhum outro. Dito isso, é fato que a Nintendo preferia que o caso fosse a julgamento, mas não reclamou de embolsar alguns milhões, e destruir dois emuladores, de maneira até bem rápida.

A grande questão era "por que a Nintendo se deu ao trabalho só agora?" A companhia odeia desde sempre a emulação, pois na sua visão, seus games só são autorizados a rodar em seu próprio hardware. Ninguém, nem mesmo os usuários, têm permissão para quebrar as defesas do hardware e criar emuladores baseados nele, ou fazer dumping dos jogos e criar ROMs, mesmo para fins de backup e preservação.

Um dos fatores foi, sem surpresa alguma, dinheiro. Em geral, desenvolvedores de emuladores no passado distribuíam seus softwares livremente, deixando para a comunidade usar e melhorar seus códigos como bem entendessem. Existem inclusive iniciativas de código aberto, com forte presença da comunidade de desenvolvedores.

Esse não foi o caso da Tropical Haze, que desenvolvia o Citra e o Yuzu em um sistema fechado, com acesso antecipado às versões mais novas mediante "doações" financeiras, em sua campanha (já encerrada, claro) no site Patreon.

O ato de pedir doações não é ilegal, mas coloca um alvo nas suas costas mesmo assim (Crédito: Divulgação/Nintendo)

O ato de pedir doações não é ilegal, mas coloca um alvo nas suas costas mesmo assim (Crédito: Divulgação/Nintendo)

Claro que todos os recursos desenvolvidos para o Yuzu e o Citra eram disponibilizados posteriormente para todos os usuários, pagantes e não-pagantes, e a contribuição era voluntária, não compulsória, mas não muda que a Tropical Haze estava, sim, fazendo dinheiro com seus emuladores.

No passado, a Nintendo conseguiu fechar inúmeros sites que distribuíam ROMs usando o mesmo argumento, pois tais portais veiculavam anúncios, o que se revertia em receita; para a Big N, só ela tem direito de lucrar com suas marcas, entendimento alinhado com as leis de direitos autorais, como a DMCA, e endossado pelo sistema judiciário.

Assim, embora não curta, a Nintendo prefere não levantar a mão contra emuladores distribuídos sem conteúdos protegidos (ROMs e BIOS), e sem fins lucrativos, pois dificilmente os venceria na corte; os devs do Yuzu, por outro lado, se complicaram sozinhos.

Nintendo vs. "preservação antecipada"

O principal argumento em defesa da emulação é o da preservação de jogos antigos, quando eles se tornam indisponíveis legalmente, por um motivo ou outro. A Lei brasileira diz que você pode armazenar ROMs e ISOs de jogos que você possua física ou digitalmente, mas apenas para fins de backup, e emuladores podem ser distribuídos sem códigos proprietários, como os jogos e as BIOS.

Além disso, você não pode legalmente rodar um game em outro hardware que não o console para qual ele foi desenvolvido, a menos que a licença de uso assim permita, e a Nintendo não o faz. E não importa se é um console atual ou antigo, a Lei vale para todos os casos, mas defensores da emulação para preservação argumentam que a legislação só protege as marcas (o que é óbvio, mesmo a Nintendo admite isso), não os games.

Geralmente, a emulação de consoles mais antigos costuma passar ao largo, com base no argumento da preservação, mas o que acontece quando o emulador reproduz o funcionamento de um sistema corrente? O Yuzu e o Citra nem são os primeiros casos, o ZSNES e o Snes9X, ambos do Super NES, foram lançados respectivamente em 1997 e 1998, e o console de 16 bits da Big N só foi descontinuado em 1999 nos EUA, em 2003 no Japão e Brasil, e em 2005 no Reino Unido.

O Gens, do Mega Drive, também surgiu quando o console ainda era comercializado lá fora (Brasil e Tec Toy não servem de parâmetro neste cenário); sobre o Citra, o emulador original da Tropical Haze, a primeira versão foi disponibilizada em 2014, o 3DS foi descontinuado em 2020, e sua eShop fechou apenas em março de 2023.

A emulação de The Legend of Zelda: Tears of Kingdom, antes mesmo do game chegar às lojas, teria sido a gota d'água para a Nintendo (Crédito: Divulgação/Nintendo)

A emulação de The Legend of Zelda: Tears of Kingdom, antes mesmo do game chegar às lojas, teria sido a gota d'água para a Nintendo (Crédito: Divulgação/Nintendo)

Diversos consoles tiveram emuladores contemporâneos a seus ciclos de vida, do Game Boy e Game Gear ao Game Boy Advance e DS, não por acaso, a Nintendo combate ferozmente a comercialização dos cartuchos R4, que leem ROMs em cartões microSD. E não existe "preservação" de jogos correntes, de um sistema que continua recebendo novos títulos e é atualmente, no caso do Switch, o único comercializado pelos japoneses.

Por mais que os pró-emulação usem essa carta, mesmo para consoles mais velhos, ninguém é ingênuo a ponto de não considerar, nem por um momento, que sua mola motriz é a pirataria, seja para jogar sem pagar nada a estúdios e desenvolvedores, ou para acessar games com restrições regionais.

A Nintendo fazia vista grossa aos emuladores, pelos motivos já discutidos (não haver um argumento legal forte contra eles), e preferia combater o R4 e as ROMs, até o vazamento de The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom, dias antes do lançamento oficial. A Big N calcula que o título foi baixado ilegalmente mais de 1 milhão de vezes no período, e o emulador recomendado era sempre o Yuzu.

De fato, postagens dos responsáveis pelo emulador no Discord oficial (que também foi desligado) mostravam que eles estavam muito felizes com o aumento de contribuintes em sua campanha no Patreon, na época do vazamento; certas discussões ali dentro ensinavam os pormenores de como fazer dumping nas ROMs e extrair a BIOS e as chaves únicas do Switch, o que a Nintendo não permite em nenhum cenário, e outras listavam os jogos já compatíveis, muitos deles lançamentos recentes.

O processo da Nintendo, apoiado na DMCA (Digital Millenium Copyright Act), a Lei de combate à pirataria que vale em diversos países, Brasil incluso, buscava tornar ilegal o ato de quebrar as defesas de consoles para criar emuladores, o que caso fosse julgado e se tornasse jurisprudência, seria uma sentença de morte para os demais softwares similares, pois passaria a ser entendido que a criptografia dos sistemas é parte fundamental do esforço anti-piratas.

Há quem diga que a Tropical Haze tenha preferido o acordo a permitir que a DMCA passasse a caçar outros emuladores, mas é provável que preferiram a alternativa menos pior visando o mal menor a eles próprios, o que poderia levar às mesmas consequências, mas agravadas, como uma maior indenização a ser paga à Nintendo, e seus responsáveis indo parar atrás das grades.

De qualquer forma, a morte do Yuzu e Citra já está estimulando o surgimento de forks de ambos emuladores, seguindo o velho dogma da Hidra de Lerna, "corte uma cabeça, e duas surgirão no lugar". Porém, muita gente vai pensar duas vezes em atrair atenção indesejada da Nintendo, seja movimentando dinheiro ou compartilhando conteúdos protegidos, ou mesmo ensinando o Caminho das Pedras, para não levar marteladas do Mario no futuro.

Leia mais sobre: , , .

relacionados


Comentários