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Akira Toriyama e seu legado para os videogames

Muito além de Dragon Ball: Akira Toriyama deixou uma marca profunda nos games, de Dragon Quest a Chrono Trigger e mais

08/03/2024 às 16:10

O mangaká Akira Toriyama, criador de Dragon Ball, Dr. Slump e diversas outras publicações, faleceu no dia 1.º de março de 2024, aos 68 anos. A notícia, divulgada oficialmente pelo Bird Studio nesta sexta-feira (8), pegou todo mundo de surpresa. Suas obras influenciaram inúmeros outros artistas e criadores, em diversas mídias, e sem ele, é seguro afirmar que o mangá e o anime não teriam o alcance global que tiveram.

Além dos quadrinhos e animações, Toriyama teve enorme influência na indústria de videogames, e é considerado um dos criadores dos JRPGs modernos, onde a franquia Dragon Quest é considerada a quintessência do gênero, além de ajudar a criar outros trabalhos importantes, como Chrono Trigger e Blue Dragon.

Dragon Quest III (Crédito: Divulgação/Square Enix/Bird Studio)

Dragon Quest III (Crédito: Divulgação/Square Enix/Bird Studio)

De Dragon Quest a Chrono Trigger

Em 1982, a Eidansha Boshu Service Centerm uma companhia criada em 1975 para promover imóveis em tabloides, mudou de ramo e se tornou uma desenvolvedora de games, e foi renomeada para Enix Corporation. Em busca de novos talentos, seu fundador Yasuhiro Fukushima promoveu um concurso cultural, mirando inicialmente em mangakás e roteiristas.

Os selecionados foram três: Kazuro Morita (1955-2012), desenvolvedor da série Morita's Shogi; Koichi Nakamura, criador de Door Door e posterior fundador da desenvolvedora Chunsoft (hoje Spike Chunsoft), da qual é presidente; e Yuji Horii, roteirista da Shonen Jump e o vencedor do concurso. Este desenvolveu Love Match Tennis, o primeiro game lançado pela Enix.

Em 1985, o processo de portar seu The Portopia Serial Murder Case do NEC PC-6001 para o NES, estimulou o desenvolvedor a investir no gênero de RPGs digitais, influenciado por títulos como Ultima e Wizardry. O primeiro Dragon Quest seria desenvolvido pelo time da Chunsoft e distribuído pela Enix, com elementos desses games (a batalha em primeira pessoa, por exemplo, veio de Ultima).

Porém, para que Dragon Quest fosse um game com forte apelo ao público japonês, era preciso um design conhecido e atraente. A Enix então recorreu a Akira Toriyama, na época, já famoso por Dr. Slump, uma comédia de nonsense com elementos escatológicos e absurdos, e o mangá de Dragon Ball, que estreou na Shonen Jump em 1984, já havia pegado tração.

A adição de Toriyama à equipe foi crucial para conferir personalidade ao game. Horii, que como desenhista é um ótimo roteirista, ainda imaginava um visual próximo de Ultima e Wizardry, como mostra sua versão para o slime, um monstro clássico dos RPGs, cuja versão do mangaká se tornou o mascote da franquia; é impossível não ver o monstro sorridente em forma de gota, e não pensar em Dragon Quest. A trilha sonora de Koichi Sugiyama (1931-2021) também foi um fator essencial.

O slime de Dragon Quest, nas versões de Yuji Horii e Akira Toriyama (Crédito: Reprodução/Square Enix)

O slime de Dragon Quest, nas versões de Yuji Horii e Akira Toriyama (Crédito: Reprodução/Square Enix)

Lançado em maio de 1986 no Japão, o primeiro Dragon Quest vendeu tão pouco no início, que a Enix arriscava fechar o ano no vermelho. Foram os editoriais de Yuji Horii, publicados na Shonen Jump sobre o game, que atraíram os leitores para o título e a arte de Akira Toriyama, e aqui ele foi favorecido pelo anime de Dragon Ball, que havia estreado três meses antes.

A versão para Famicom de Dragon Quest vendeu 1,5 milhão de cópias no Japão, 1 milhão nos primeiros seis meses; em 1989, o game chegou ao NES como Dragon Warrior (na época, existia um RPG de mesa chamado DragonQuest, a mudança foi feita para evitar processos), e embora ele tenha vendido muito mal, como ele foi dado aos assinantes da revista Nintendo Power, sua saída estimulou a Enix a localizar os três games seguintes. De fato, a Nintendo lucrou muito com a "caridade", pois vendeu assinaturas a rodo.

Akira Toriyama acabou conquistando uma cadeira cativa na franquia Dragon Quest, tendo ficado responsável pelos designs de monstros e personagens em todas as instâncias da série, até sua morte. Ele também assinou adaptações para outras mídias, como mangás e animes, no que a mais famosa é Dragon Quest: Dai no Daibōken, cuja primeira versão ficou conhecida no Brasil como Fly, o Pequeno Guerreiro; já o remake de 2020 está disponível no Max.

O lançamento de Dragon Quest é considerado um "ponto de virada" da indústria, no que o game estabeleceu todas as convenções do gênero que hoje conhecemos como JRPG. A franquia é uma das mais populares do mundo e uma instituição cultural no Japão, mais querida pelos nipônicos do que Final Fantasy e Ys, duas outras marcas populares, que surgiram em 1987 em resposta ao game da Enix, e nunca foi desbancada por elas, quer dizer, enquanto o estúdio de Horii e Toriyama e a Squaresoft estavam separados.

Exatamente por essa suposta rivalidade entre Dragon Quest e Final Fantasy, que muita gente não acreditou quando Horii e Toriyama revelaram em 1994 o Dream Project, ao lado de Hironobu Sakaguchi, "pai" da franquia rival, já com seu nome final: Chrono Trigger.

Anunciado de forma oficial na V-Jump Festival daquele ano, os primeiros esboços do game que chegaria em 1995 ao Super NES, e que quase foi um capítulo da série Mana/Seiken Densetsu, foram traçados pelos três com uma explicação: embora tivessem lugares fixos na franquia Dragon Quest, Horii e Toriyama eram profissionais freelancers, e nunca foram empregados formais da Enix, até porque ambos tinham contratos com a Shueisha, editora da Shonen Jump, onde Dragon Ball foi publicado até 1995.

Chrono Trigger (Crédito: Divulgação/Square Enix/Bird Studio)

Chrono Trigger (Crédito: Divulgação/Square Enix/Bird Studio)

Aqui, o prestígio de Akira Toriyama como autor, e o de Yuji Horii como roteirista dos Dragon Quest principais, foram unidos à curiosidade deles estarem colaborando com a casa do "inimigo" e criador de Final Fantasy, mas Chrono Trigger, beneficiado por um roteiro digno de um mangá shōnen, assinado por Horii, Masato Kato (Final Fantasy VII), Yoshinori Kitase (FFIV) e Takashi Tokita (Parasite Eve), e sujeito aos maneirismos do mangaká, com tiradas dramáticas e situações cômicas, se provou merecedor da atenção do público por mérito próprio.

Sakaguchi, Horii e Toriyama acabaram por ficarem conhecidos como o "Dream Team" dos JRPGs, embora nunca mais tenham trabalhado todos juntos novamente; nenhum dos três esteve envolvido com o desenvolvimento da sequência espiritual Chrono Cross, lançada em 1999 para o PSOne no Japão, e em 2000 no ocidente.

Hironobu Sakaguchi, Yuji Horii e Akira Toriyama, na arte do próprio (Crédito: Reprodução/Square Enix/Bird Studio)

Hironobu Sakaguchi, Yuji Horii e Akira Toriyama, na arte do próprio (Crédito: Reprodução/Square Enix/Bird Studio)

Tobal, Blue Dragon e Sand Land

Em 1996, um novo game de luta em 3D, com personagens desenhados por Toriyama chegou ao PlayStation, mas não era outro Dragon Ball. Tobal No. 1, desenvolvido pela quase desconhecida DreamFactory, foi a primeira empreitada da Squaresoft, como distribuidora, no gênero.

Ele permitia movimentação livre aos jogadores e era bem similar a Tekken na mecânica, mas tinha texturas inferiores, o que o aproximava mais do primeiro Virtua Fighter; ironicamente, a baixa qualidade gráfica permitia que ele rodasse em fluidos 60 quadros por segundo, o que não era muito comum na época, e ele contava inclusive com um Quest Mode, de exploração.

De qualquer forma, Tobal No. 1 ficou mais conhecido por vir com uma demo de Final Fantasy VII, que seria lançado no ano seguinte; sua sequência, Tobal 2, nunca foi lançada no ocidente.

Tobal No. 1 era... curioso (Crédito: Divulgação/DreamFactory/Square Enix)

Tobal No. 1 era... curioso (Crédito: Divulgação/DreamFactory/Square Enix)

Akira Toriyama voltaria a trabalhar com Hironobu Sakaguchi quando este deixou a Square Enix, para fundar sua desenvolvedora Mistwalker. Seu jogo de estreia, lançado em 2006 para o Xbox 360, Blue Dragon, contava com os designs de personagens e monstros do artista, o roteiro de Sakaguchi, e a trilha sonora de Nobuo Uematsu, que havia composto alguns dos temas de Chrono Trigger.

O game foi recebido com críticas mornas, dizendo que ele carecia de momentos impactantes, e as mecânicas não traziam nada de relativamente novo aos RPGs, de fato, as batalhas em turno usavam uma implementação similar à da Active Time Battle, introduzida em Final Fantasy IV.

Ainda assim, Blue Dragon rendeu dois spin-offs lançados para o Nintendo DS, também com arte de Toriyama.

Blue Dragon (Crédito: Reprodução/Mistwalker/Marvelous)

Blue Dragon (Crédito: Reprodução/Mistwalker/Marvelous)

Com exceção dos games baseados em Dragon Ball, Akira Toriyama teve poucas chances de adaptar suas obras para os videogames, no que sua mais recente empreitada do tipo foi Sand Land, que chegará em abril de 2024 ao PS5, PS4, Xbox Series X|S e Windows, sendo agora uma obra póstuma.

O título, baseado em um mangá de volume único publicado em 2000, acompanha as aventuras do príncipe dos demônios Beelzebub, e do xerife Rao, que formam uma aliança para encontrar uma "Fonte Fantasma", em um mundo desértico e cheio de perigos. O game desenvolvido pela ILCA (One Piece Odyssey) é um RPG de ação, com movimentação aberta e grandes cenários para explorar.

Sand Land não é considerado um dos mangás mais populares de Akira Toriyama, mas a curiosidade em torno do game tem sido grande.

Só é uma pena que seu criador não tenha vivido peara ver o lançamento do game.

Akira Toriyama, Dragon Ball e os games

Seria injusto falar da influência de Akira Toriyama nos games, sem mencionar Dragon Ball. Efetivamente o mangá e anime mais populares de todos os tempos, a obra rendeu uma infinidade de adaptações para as mais diversas plataformas, desde as mais conhecidas às obscuras.

Por exemplo, a Bandai já teve um console chamado Playdia, que ficou conhecido por distribuir games baseados nas diversas franquias baseadas em animes e outros personagens controlados pela desenvolvedora, de Sailor Moon a Gundam, passando por Ultraman e Hello Kitty. No caso, é deste sistema o raro e curioso card game Dragon Ball Z Side Story: Plan To Eradicate The Saiyans (1993), que foi relançado em 2010 como um OVA.

Os games baseados em Goku e cia. variam entre os mais diversos gêneros; os primeiros, lançados para o Famicom, eram RPGs de ação tal qual The Legend of Zelda, ou card games. Apenas quando a franquia migrou para os 16 bits, e graças à óbvia influência de Street Fighter II, os jogos de luta começaram a aparecer.

Pelo menos uma vez o Vegeta tinha que ganhar do Goku (Crédito: Reprodução/Bird Studio/Shueisha)

Pelo menos uma vez o Vegeta tinha que ganhar do Goku (Crédito: Reprodução/Bird Studio/Shueisha)

Os consoles de 4.ª e 5.ª gerações receberam vários desses games, com destaque para a trilogia Super Butoden e o Hyper Dimension do Super NES, o Buyū Retsuden do Mega Drive, e o Ultimatle Battle 22 e o GT: Final Bout do PSOne. A série Budokai, para consoles da 6.ª geração, foi bastante popular no início dos anos 2000, enquanto portáteis como o Game Boy Advance receberam o Advanced Adventure e a série Legacy, que recontavam os acontecimentos dos vários arcos do mangá e anime, em RPGs de ação.

Entre 2010 e 2013, jogadores na Coreia do Sul, Taiwan e Hong Kong tiveram a oportunidade de jogar um MMORPG baseado na franquia, Dragon Ball Online, que se passava no futuro distante e contava com diversos elementos familiares, mas não durou muito.

As mais recentes e bem-sucedidas versões de Dragon Ball em videogames são Dragon Ball Z: Kakarot, a série Xenoverse, e o de luta Dragon Ball FighterZ, em que toda a perícia da Arc System Works com as séries Guilty Gear e BlazBlue foi posta à disposição de Son Goku e seus amigos, em um título que é considerado um dos melhores do gênero baseado nos personagens de Akira Toriyama, além de expandir a história com alguns newcomers, como a Androide N.º 21.

Como nem tudo é perfeito, seu netcode baseado em delay só está sendo substituído por um de rollback agora, 6 anos depois do lançamento original.

No mais, Akira Toriyama deixa uma marca inegável nos quadrinhos e animação, por influenciar gerações de artistas ao longo de mais de 40 anos de carreira, com histórias e personagens que viverão para sempre em suas obras e no coração e mente de seus fãs, mas também na indústria de games, ao inspirar vários profissionais da área.

Um desses foi Naoto Ohshima, criador do design do Sonic, no que sua transformação Super é totalmente inspirada na forma super saiyajin de Goku. Sem Toriyama, as coisas poderiam ter sido bem diferentes.

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