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Pluto — sonhos, desejos, e mentiras de robô

Pluto é uma reimaginação adulta do mais famoso arco do mangá Astro Boy, de Osamu Tezuka, agora finalmente adaptado para o formato anime

11 semanas atrás

Pluto, a minissérie animada que chegou em outubro de 2023 à Netflix, é uma história que adapta um dos arcos mais famosos de Astro Boy, a obra do mestre Osamu Tezuka que definiu o gênero mangá e anime, em uma linguagem mais adulta e pé no chão.

Pelas mãos do mangaká Naoki Urasawa, criador de dois clássicos modernos, Monster e 20th Century Boys, uma aventura com tons cômicos para crianças e adolescentes foi convertida em um thriller de mistério para adultos, com momentos tensos e dramáticos, enquanto levanta importantes questões sobre humanidade, evolução, e vingança.

Pluto (Crédito: Divulgação/Shogakukan/Viz Media/Tezuka Productions)

Pluto (Crédito: Divulgação/Shogakukan/Viz Media/Tezuka Productions)

O Maior Robô da Terra

A trama de Pluto começa como todo mistério, com duas mortes. Nos alpes suíços, o robô Montblanc é atacado e destruído por uma força misteriosa, ao mesmo tempo que na Europa, um ativista dos direitos dos robôs é assassinado. Em comum, ambas vítimas tiveram chifres colocados em suas cabeças.

A Europol desloca Gesicht, um avançado robô detetive, para investigar os assassinatos, que apontam para uma trama contra humanos que advogam em prol dos robôs, e os 7 autômatos mais avançados do mundo, no que Montblanc e o próprio Gesicht são alvos. Outro na mira do assassino é Atom, o robô que se parece com um garotinho mas é extremamente poderoso, e tido como a IA mais evoluída de todas.

Embora Gesicht e os envolvidos no caso acreditem que só um robô extremamente poderoso seria capaz de destruir qualquer um dos sete, as coisas se complicam quando as evidências para o assassino dos humanos apontam também para um robô, algo que não acontece há anos. Todos são programados para serem incapazes de ferir pessoas (oi, Asimov), mas o que acontece quando os robôs começam a ficar cada vez mais parecidos com seus criadores?

A investigação de Gesicht aponta para a existência de um novo robô conhecido como Pluto, uma alusão ao deus romano do submundo e senhor da morte, que não busca se provar como o robô mais poderoso, destruindo os demais; ao invés disso, ele é usado como uma arma de vingança e maquinações políticas.

Pluto (Crédito: Reprodução/Tezuka Productions/Genco/Studio M2/Netflix)

Pluto (Crédito: Reprodução/Tezuka Productions/Genco/Studio M2/Netflix)

Do que uma IA "perfeita" é capaz?

A gestação de Pluto foi extremamente complicada, desde o início. Naoki Urasawa teve a ideia em 2003, enquanto ainda publicava 20th Century Boys, e a princípio, a Tezuka Productions não estava disposta a liberar uma adaptação do arco O Maior Robô da Terra, de Tetsuwan Atom/Astro Boy, para adultos. Macoto Tezuka, herdeiro de Osamu (1928 - 1989), estava comprometido com a nova versão em anime (a 3.ª, depois das adaptações de 1963 e 1980) que sairia no mesmo ano, para comemorar o aniversário de Atom/Astro; segundo o mangá original, publicado entre 1952 e 1968, ele foi ativado em 2003.

Macoto não queria uma obra alternativa eclipsando a empreitada principal, mas foi convencido por Urasawa ao ver os rascunhos iniciais. O mangaká foi orientado, então, a não imitar o estilo de Osamu Tezuka, e a criar uma história com sua própria pegada, incluindo também a autorização para mexer nos designs dos personagens principais. Isso explica por que Gesicht, Brando, Hércules, Épsilon e Atom, e outros como Uran, são visualmente indistinguíveis de humanos comuns.

Publicado em 8 volumes entre 2003 e 2009, Pluto vendeu mais de 8,5 milhões de edições em todo o mundo e recebeu diversos prêmios, e indicações aos Eisner (Urasawa também recebeu) e Harvey. Uma adaptação para anime era cotada há tempos, mas permaneceu no development hell por anos, até a Netflix despejar um caminhão de grana nas mãos de Urasawa e Macoto Tezuka.

A versão animada conta com 8 episódios de aproximadamente 1 hora, com cada um cobrindo os eventos de um volume do mangá, mas algumas mudanças foram feitas, para focar mais no mistério e nos personagens principais. A subtrama que inclui o presidente dos Estados Unidos da Trácia, por exemplo, foi colocada quase que totalmente de lado, com exceção de uma cena no final, mas a referência que liga o conflito na Pérsia, em que seu país invadiu outro sob o pretexto da existência de robôs de destruição em massa, que não existiam (inclua o meme do Capitão América aqui), continua em seu lugar.

Pluto (Crédito: Reprodução/Tezuka Productions/Genco/Studio M2/Netflix)

Pluto (Crédito: Reprodução/Tezuka Productions/Genco/Studio M2/Netflix)

Pluto, tanto o mangá quanto o anime, aborda a questão do racismo e discriminação de maneira clara, com grupos que odeiam robôs e uma resistência de indivíduos, nos mais diversos setores, ao maior espaço que as máquinas estão conquistando na sociedade. Similar ao que Jack Kirby e Stan Lee fizeram com os X-Men, aqui são os robôs que, assim como os mutantes da Marvel, estão trilhando um caminho rumo ao "próximo passo" da Evolução. Os autômatos são mais competentes e analíticos, enquanto os humanos são irascíveis e violentos.

Por medo e conveniência, os robôs são limitados a seguir ordens de humanos e não lhes fazer mal, mas o que acontece quando um deles não é só idêntico a uma pessoa na aparência, mas começa a expressar emoções? Seus criadores, por uma série de motivos, perseguem o dogma da Inteligência Artificial "perfeita", ou seja, igual a tudo em um ser humano.

E se uma IA é perfeita, ela também pode cometer atos terríveis, mesmo sendo programada para não fazê-lo, assim como humanos escolhem ignorar as leis. Nesse sentido, Pluto traça o mesmo paralelo do filme Ex Machina, sobre consciência e livre arbítrio.

Pluto, uma "Graphic Tezuka" arrastada

A comparação entre Pluto e a linha Graphic MSP, da Mauricio de Sousa Produções, não é gratuita. Descontado que Mauricio e Osamu Tezuka eram amigos, a proposta das graphic novels nacionais é a mesma, pegar personagens infantis e inseri-los em histórias e situações mais sérias, em publicações volatadas para jovens adultos que cresceram com as HQs originais.

Ainda que o mangá original de Astro Boy seja bem antigo, o personagem principal é uma instituição e embaixador do mangá e anime por excelência, e conta a seu favor com dois remakes animados, além de outras obras em diversas mídias. Infelizmente, o brasileiro só teve contato direto com Astro, Uran e cia. em meados dos anos 2000, quando a série de 2003 foi exibida na TV Globo e Cartoon Network.

Por que estou escrevendo isso? Porque Pluto exige conhecimento prévio de Astro Boy para ser melhor entendido. Ainda que a história seja fechada em si, a série e o mangá posicionam Atom como o robô mais famoso do mundo, sem nunca explicar por que ele é conhecido nos quatro cantos do planeta. Com episódios extensos, há uma grande quantidade de informação passada de uma vez, o que deixa a série um pouco arrastada, enquanto alguns arcos, como o da organização antirrobôs, foram mal desenvolvidos.

Pluto (Crédito: Reprodução/Tezuka Productions/Genco/Studio M2/Netflix)

Pluto (Crédito: Reprodução/Tezuka Productions/Genco/Studio M2/Netflix)

Por outro lado, o desenvolvimento dos personagens robôs é muito bem feito, especialmente no que tange à busca por sua própria humanidade. Brando, por exemplo, adotou cinco crianças humanas; Épsilon cuida de uma creche para órfãos da guerra; North N.º 2 busca na música esquecer os horrores do conflito, o único entre os sete criado desde o início como uma arma; a série dá a entender que ele sofre de estresse pós-traumático.

O contraste entre Atom e Gesicht, que trabalham em conjunto algumas vezes, é bem interessante. O investigador-robô é o adulto na sala, com a aparência de um homem de meia-idade, calvo e de personalidade séria, que mesmo sendo uma máquina avançadíssima, admite ser inferior ao menino à sua frente, que ele não consegue distinguir com clareza como robô ou humano, capaz de demonstrar emoções genuínas, e não demonstra estar emulando atitudes humanas, como outros robôs, no que ele não está fingindo se comportar como uma criança real.

Em Pluto, Gesicht é trabalhado como o protagonista inicial da trama, que passa a centrar em Atom perto do fim. O investigador também detém um segredo terrível sobre seu passado, que ele próprio não faz ideia do que seja, embora seus pesadelos recorrentes sejam um indicativo; esse plot, essencialmente o mesmo do mangá, é importante para entender o que pode motivar uma máquina a ir contra sua programação.

Já Uran, a irmã mais nova de Atom, rouba a cena sempre que aparece, e desempenha um papel importante para um melhor entendimento das motivações do vilão, que não são o que parecem ser.

Tecnicamente, Pluto tem uma animação de qualidade, provida pela Genco (Sword Art Online) e Studio M2, o traço de Naoki Urasawa impossibilita não relacionar a obra à outra animação do autor, Monster, que embora um tanto antiga (2004-2005), ainda é referenciado como um dos melhores animes de temática adulta das últimas décadas. A trilha sonora conta com temas de qualidade, com destaque para os usados durante o arco de North N.º 2, no primeiro episódio.

Pluto (Crédito: Reprodução/Tezuka Productions/Genco/Studio M2/Netflix)

Conclusão

Pluto é um bom anime, mas o autor se preocupou mais em discorrer sobre os simbolismos e metáforas envolvendo humanidade, inteligência, emoções, etc., o que recheou a obra de conteúdo, ao mesmo tempo, a narrativa ficou pesada e arrastada. Maratonar a minissérie chega a ser cansativo, é informação demais para digerir em 8 horas.

Por outro lado, a atração tem importância por abordar, direta ou indiretamente, temas atuais como as discussões sobre IA e consciência, os horrores da guerra, ódio e intolerância.

Como obra de ficção, Pluto é uma ótima série para assistir e pensar, mas é mais recomendado consumi-la devagar e com parcimônia, ao invés de tratá-la como o Big Mac da vez; no mais, é uma abordagem interessante para uma história e personagens criados há mais de 60 anos, que continuam atuais.

Nota:

Crédito: Tezuka Productions

4/5 Urans de Astro Boy (2003); não importa a versão, a irmãzinha do Atom continua uma adorável encrenqueira.

Onde assistir e ler:

Pluto, a minissérie anime, está disponível na Netflix; já o mangá foi relançado no Brasil pela Editora Panini, em uma nova edição de luxo.

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