Meio Bit » Hardware » Framerate – o osso mais anacrônico que ninguém quer largar

Framerate – o osso mais anacrônico que ninguém quer largar

Algo que não mudou quase desde os primórdios do cinema é a framerate, a velocidade com que os quadros são exibidos. e por um bom motivo!

16 semanas atrás

Para falar de framerate, precisamos lembrar da TV nos anos 80/90, quando produções baratas em vídeo começaram a ganhar espaço, e havia uma nítida diferença entre conteúdo de “qualidade” e conteúdo produzido para consumo rápido, tipo programas vespertinos e novelinhas do SBT.

Só as vintages (Crédito: Editoria de Arte / Stable Diffusion)

O primeiro fator que afeta a qualidade é a tecnologia de filmagem. Um programa filmado usando câmera de vídeo tem resolução limitada e um alcance cromático bem limitado, por isso séries como Doctor Who, The Cosby Show, Saturday Night Live e Married With Children apresentam aquela clássica imagem chapada, com cores “mornas”.

A diferença é gritante para séries como Deep Space Nice, Sopranos, Friends, West Wing, que foram filmadas em película de 35mm, a mesma usada (até então) em cinema. Isso inclusive facilita muito a conversão para alta definição, uma película de 35mm pode ser escaneada para uma resolução de digital de até 8K, sem grandes problemas. Já com uma gravação em vídeo, é muito mais complicado e limitado ampliar a resolução da imagem.

Esse complicador impede que muitas séries sejam lançadas em Blu-Ray, Jornada nas Estrelas, por exemplo, não tem versões HD de Deep Space Nine ou Voyager.

Quando foi anunciada a versão remasterizada da Nova Geração, os produtores não tinham idéia do trabalho de corno envolvido. Resumidamente, eles tiveram que encontrar os rolos de filme originais com todo o material bruto dos episódios. Achar as anotações dos editores, repassar para uma nova equipe, que remontou cada episódio, do zero.

As cenas de efeitos visuais foram recuperadas também, o que não deu para ser reescaneado, foi refeito em CGI. O custo foi altíssimo, as vendas mal cobriram as despesas, e quando descobriram que boa parte dos efeitos visuais de Voyager e Deep Space Nine haviam se perdido, desistiram de lançar versões remasterizadas dessas séries.

Foi um trabalho épico, um trabalho hercúleo. Para os fãs, foi maravilhoso, veja a diferença:

Só que a qualidade da imagem era apenas parte do problema. A própria movimentação das séries gravas em vídeo era estranha, quando comparávamos filmes de cinema com filmes de TV. O cerne do problema era que os filmes para cinema eram filmados com uma framerate de 24 quadros por segundo, enquanto os programas de TV eram gravados a 30 quadros. Na hora de converter os filmes para vídeo, para exibição, em um processo chamado telecine, eram introduzidos frames extras, mas que não adicionavam realmente “informação”, já os programas filmados em 30 quadros por segundo eram mais “nítidos”.

Como chegamos aos 24 quadros por segundo?

Nos primórdios do cinema não havia um padrão, as câmeras eram totalmente manuais. Você já deve ter visto em filmes antigos os sujeitos girando uma manivela na câmera. O operador estava avançando o filme, manualmente, tentando manter uma taxa mais ou menos fixa de 16 quadros por segundo, pois valores acima de 14 quadros por segundo não são percebidos pelo cérebro humano como imagens individuais, criando a ilusão de movimento. O valor de 16 foi calculado e sugerido por Thomas Edison, mas ninguém respeitava.

Para economizar filme, muitos cineastas filmavam cenas mais calmas a até 12 quadros por segundo, e cenas de ação eles subiam em certos casos para 26. O projecionista precisava regular manualmente o projetor para exibir o filme na framerate adequada.

O que nem sempre acontecia, donos de cinemas aceleravam discretamente os filmes para 16, 18 quadros por segundo, para no final do dia ganhar mais uma sessão de exibição.

Complicando ainda mais, os quadros precisam ser exibidos parados, do contrário a gente só veria um borrão. Então o projetor tem que exibir um quadro do filme, fechar o obturador, avançar o filme, abrir o obturador e exibir o próximo quadro, repetindo até acabar o filme.

Isso gerava um efeito de pisca-pisca horrendo, era preciso exibir mais quadros por segundo, para evitar o defeito. Só que mais quadros por segundo significava mais filme, o que era caro. Uma solução extremamente inteligente foi encontrada: um obturador giratório exibia o mesmo quadro duas vezes antes de avançar o filme.

Um filme a 16 quadros por segundo, com o obturador sendo fechado a cada avanço de quadro, apareceria mais ou menos assim.

A solução: Um obturador giratório que exibe duas vezes o mesmo quadro antes de avançar para o próximo frame:

O problema das piscadas estava resolvido, mas a padronização do framerate no cinema só apareceu graças a algo que não tem nada a ver com imagem:  som.

No filme analógico, o áudio é gravado de forma eletro-óptica na lateral do filme, e para não ocorrerem distorções, o filme precisa ser exibido em uma velocidade constante. Mais ainda: Há uma velocidade mínima abaixo da qual o som fica ruim demais.

Na imagem acima, um frame de um filme sonoro de 35mm. Percebe, Evair, na lateral esquerda a trilha sonora, com os dois canais estéreo. Há versões mais sofisticadas que usam o espaço entre as perfurações para incluir os sinais digitais codificados para Sony DTS ou Dolby (Crédito: Us National Archives)

Experimentos chegaram a um valor ideal para manter qualidade sonora sem gastar filme demais: 24 quadros por segundo, e isso se espalhou pelo mundo inteiro. Foi um raro caso de padrão universalmente aceito.

Mesmo com o fim do filme em película, até hoje cinema é sinônimo de 24 quadros por segundo. As mais modernas câmeras digitais filmam a 24 quadros, exceto em cenas de ação, que usam framerates maiores, mas no final é tudo convertido para o bom e velho 24 fps, que nós, o público, acostumamos a entender como “cara de cinema”.

Mas e a TV?

Aqui tivemos problemas. A TV nos EUA foi projetada para usar a frequência de 60Hz da rede de energia como base. Cada frame é dividido em dois campos, primeiro a TV desenhava as linhas pares, depois as linhas ímpares, cada campo levava 1/30 de segundo para ser desenhado na tela, em um processo chamado interlacing.

Isso dava à TV um framerate de teóricos 30 quadros por segundo, mas descobriram que esse valor fazia com que a banda de vídeo interferisse com a banda de áudio, e para resolver isso alguém teve a idéia de reduzir a framerate em 0,1%, o suficiente para os dois sinais ficarem fora de fase, sem interferirem um com o outro. O framerate final, familiar para todo mundo que transa vídeo, foi de 29,97 quadros por segundo.

Exceto que quando o movimento é muito rápido, mesmo a diferença de 1/30 de segundo entre um campo e outro é suficiente para fazer com que a imagem final fique borrada. Aqui o mesmo vídeo, em formato interlaced e progressivo:

Vários truques matemáticos são usados para fazer a telecinagem de um filme em 24fps e transferi-lo para um formato televisivo de 29.97fps, mas basta dizer que quando o processo não é bem-feito, o resultado é ó... um lixo.

Evoluir é preciso

Ao contrário do cinema, a TV não se prendeu ao seu framerate tradicional, taxas maiores trazem inúmeras vantagens, programas como esportes se beneficiam enormemente de um framerate elevado, carros não são mais borrões, as pernas dos jogadores de futebol não se resumem mais a manchas, e a trajetória da bola chutada é muito mais nítida.

Um jogo de futebol a 60fps:

No caso dos gamers, altas framerates são essenciais, fortunas são gastas em placas parrudas e monitores insanos com taxa de atualização de 500Hz. Eu e meus 60Hz não somos nem considerados gente por esse povo.

Vídeos com framerates altas são muito mais nítidos, cenas com efeitos visuais, cenas de ação ficam mais fáceis de entender, não há motion Blur, um defeito que ocorre quando um objeto está se movendo rápido demais e a câmera só consegue captar um borrão.

Motion Blur está tão associado a velocidade que uma versão fake foi usada em Matrix para ressaltar a velocidade de Neo.

Na cabeça dos diretores e especialistas em efeitos visuais, fazia todo o sentido biológico usar framerates mais altas; as imagens seriam nítidas, detalhadas, os efeitos não seriam obscurecidos pela baixa taxa de quadros. Era questão de filmar uma história em HFR (High Frame Rate) e receber a gratidão de milhões.

Foi o que Peter Jackson imaginou quando filmou a trilogia d'O Hobbit em 48 quadros por segundo. O resultado?

O povo ODIOU. A movimentação é errada, a profundidade de campo é errada, a percepção é que aquilo é tudo, menos cinema.

A lista de filmes HFR é mínima, a maioria fica nos 48 fps, mas o insano do Ang Lee fez dois filmes em 120 fps, nem adianta linkar, o YouTube não suporta nada acima de 60fps.

Uma conversão não-oficial da batalha final de Avengers: Endgame para 60fps resolve o mistério, assista:

Sabe o que incomoda profundamente? É que essas versões em HFR passam toda a sensação de que estamos vendo um videogame. Não há textura de filme, por mais nítidas que sejam as imagens, elas parecem falsas, carecem das imperfeições dos 24 quadros por segundo.

E o melhor, essas imperfeições estão se espalhando. As plataformas de streaming não estão mais presas aos limites impostos pelas mídias físicas, podem usar a resolução e framerate que quiserem, mas boa parte do conteúdo está sendo produzido e veiculado na boa e velha taxa de 24 quadros por segundos. Ou melhor, 23,976216 fps.

Claro que há quem goste de filmes em HFR, mas felizmente essas abominações foram mais rejeitadas do que o 3D, e pelo menos por enquanto, não serão adotadas.

Que o HFR fique restrito aos games e esportes, onde funciona muito bem!

Leia mais sobre: , , , .

relacionados


Comentários