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Ossada de 31 mil anos revela primeira amputação da História

Esqueleto de jovem adulto encontrado em Bornéu mostra amputação bem-sucedida e sem complicações, 20 mil anos antes de referência mais antiga

1 ano e meio atrás

Um esqueleto encontrado em uma caverna na ilha de Bornéu, na Indonésia, está mudando radicalmente o que pensávamos saber sobre os povos que viveram antes do início da última Era do Gelo, há 31 mil anos: o achado revela que o indivíduo foi submetido a uma bem-sucedida amputação, esta a referência mais antiga do procedimento, antecedendo a anterior em mais de 200 séculos.

Representação artística de uma cena cotidiana na caverna em que o esqueleto de Tebo 1 foi encontrado, que pode ter ocorrido 31 mil anos atrás (Crédito: Tim Maloney)

Representação artística de uma cena cotidiana na caverna em que o esqueleto de Tebo 1 foi encontrado, que pode ter ocorrido 31 mil anos atrás (Crédito: Tim Maloney)

Os restos mortais do indivíduo foram encontrados em uma caverna chamada Liang Tebo, na província de Calimantã Oriental, hoje território da Indonésia, e por essa razão, ele foi chamado pelos arqueólogos de "Tebo 1". O estudo, conduzido por cientistas da Universidade de Griffith, de Queensland, Austrália, joga luz sobre vários dos costumes e procedimentos das tribos de caçadores-coletores, que muitos julgavam não ser mais que selvagens.

Os cirurgiões da floresta

31 mil anos atrás, os oceanos eram bem mais rasos do que hoje. A região da ilha de Bornéu, encobrindo quase todo o sudeste asiático, fazia parte de uma grande península chamada Sondalândia, no que os povos que lá habitavam, essencialmente caçadores-coletores, foram possivelmente os colonizadores originais da Austrália, ao cruzar o território essencialmente a pé.

A região de Liang Tebo era uma enorme floresta na época, e possui um terreno montanhoso bastante acidentado. Os povos originais viviam do que a natureza provia, e tinham que lidar com os perigos costumeiros, de animais selvagens a outros.

Não se sabe exatamente o que afligiu Tebo 1, mas o que ficou registrado no seu esqueleto está bem claro para os arqueólogos. Trata-se de um jovem adulto, que teria morrido por volta dos 19 anos, e que foi enterrado com extremo zelo por seus pares, junto a diversos utensílios. Fica evidente que ele não só era querido em sua comunidade, mas também tinha uma função.

O que surpreendeu todo mundo, conforme descrito no artigo (cuidado, PDF), foi que a ossada de Tebo 1 não incluía o pé esquerdo. A perna acabava pouco abaixo do joelho, em uma terminação abrupta da tíbia e da fíbula. Os pequenos ossos do pé direito, no entanto, estavam bem preservados.

Não é segredo para os cientistas que nossos ancestrais viviam se machucando enquanto caçavam ou coletavam comida, isso quando não acabavam virando refeição de predadores, mas os restos de Tebo 1 não demonstravam nenhum sinal de mordida de animais, ou de esmagamento causado por quedas, pedras, etc.

De fato, os ossos mostram que eles foram cortados de forma intencional, logo, trata-se do mais antigo procedimento de amputação já registrado. Até então, pensava-se que as primeiras evidências datavam de 10 mil a 11 mil anos atrás, em casos não completamente confirmados entre tribos de neandertais.

Esqueleto encontrado em Bornéu mostra procedimento de amputação, cicatrização e cura do osso, mas nenhum sinal de inflamação (Crédito: T. Malone et al/Griffith University/Nature Research/Springer Nature)

Esqueleto encontrado em Bornéu mostra procedimento de amputação, cicatrização e cura do osso, mas nenhum sinal de inflamação (Crédito: T. Malone et al/Griffith University/Nature Research/Springer Nature)

Uma análise detalhada revelou que o processo foi feito com bastante cuidado, e os mostram sinais de cura e regeneração. Segundo a pesquisa, Tebo 1 teve parte da perna esquerda removida quando tinha entre 9 e 10 anos, e sobreviveu mais 9-10 anos. Há sinais de atrofia, mostrando que o osso parou de crescer.

Amputação limpa: Coletores 1 X 0 Século XIX

Se hoje a vida já não é muito fácil para pessoas com deficiências físicas, imagine ter um pé a menos 31 mil anos atrás. No entanto, os ossos de Tebo 1 mostram que o processo de amputação foi muito bem conduzido, entre outras coisas.

Primeiro, não há sinais de inflamação na região dos cortes, que foram muito bem executados, o que demonstra que, caso o paciente tenha sofrido alguma infecção posterior, ela não foi grave o bastante para atingir os ossos. Isso mostra que não só o "cirurgião" sabia o que estava fazendo, como tinha conhecimentos sobre higiene para manter a lesão do paciente, bem como suas mãos e os utensílios usados no procedimento, sempre limpos.

O fato é que os caçadores-coletores de Bornéu tinham mais conhecimentos sobre limpeza e higienização do que a população e o corpo médico da Europa moderna, que só foram levar a sério questões triviais de saneamento lá para o fim do século XIX.

Considerando que Tebo 1 viveu quase uma década com apenas um pé, é preciso considerar que para sua tribo, ele era considerado um membro querido e essencial, mesmo quando criança. Após a amputação, ele teria requerido cuidados constantes e posto de repouso por longos períodos, com outras pessoas cuidando para trocar seus curativos e manter a ferida limpa, para não infeccionar.

Representação artística mostra como Tebo 1 deveria se parecer, na época em que morreu (Crédito: Jose Garcia/Griffith University)

Representação artística mostra como Tebo 1 deveria se parecer, na época em que morreu (Crédito: Jose Garcia/Griffith University)

Isso mostra que os povos da antiga Sondalândia podem ter conhecido ervas e elementos da selva adequados para diversos males; lembre-se que os antibióticos como conhecemos só surgiram no século XX, e até então, qualquer ferimento mal cuidado poderia ser fatal.

Mesmo como um PCD pré-Era do Gelo, Tebo 1 cresceu para ser um membro funcional de sua comunidade, ainda que não fosse adequado para participar de caçadas, e tivesse sua mobilidade reduzida. Pela análise do formato de sua clavícula direita, ele estaria envolto em uma atividade que exigia movimentos circulares constantes, no que talvez ele fosse um artista, possivelmente o responsável pelas pinturas rupestres de seu povo, inclusive as presentes na caverna onde foi encontrado, essencialmente negativos de mãos, como nas artes deste artigo.

O fato de ter sido enterrado com muito cuidado, com diversos utensílios, e ter sua cova devidamente marcada com três pedras, mostra que mesmo nos primórdios, a natureza humana nos leva a nos importarmos uns com os outros; a Dra. Charlotte Roberts, arqueóloga da Universidade de Durham, em seus comentários sobre o artigo, anota que "cuidarmos de nossos doentes é parte inerente do que nos torna humanos".

E ela sabe disso muito bem, pois já foi enfermeira.

Referências bibliográficas

MALONEY, T. R., DILKES-HALL, I. E., VLOK, M., et al. Surgical amputation of a limb 31,000 years ago in Borneo. Nature (2022), 21 páginas, 7 de setembro de 2022. Disponível aqui.

Fonte: Popular Science

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