Ronaldo Gogoni 1 ano e meio atrás
Já comentamos antes que o transplante de órgãos precisa obedecer uma série de critérios, que complicam a disponibilidade e contribuem para o alongamento das filas de espera. Um deles, absolutamente técnico, é o da compatibilidade sanguínea entre doador e receptor.
Pesquisas recentes vêm buscando o que está sendo chamado de "órgãos universais": um processo de conversão de tecidos doados para o tipo O, o doador universal. Após pesquisadores do Canadá demonstrarem bons resultados com pulmões, um time da Universidade de Cambridge conseguiu o mesmo com rins.
Vamos recapitular as aulas de Biologia: o sistema ABO, que identifica os 4 tipos de sangue (A, B, AB e O), e o Sistema Rh (positivo e negativo) são determinados pela presença, ou não, dos antígenos correspondentes.
Por exemplo, pessoas com sangue O- são considerados os doadores universais; seu sangue serve em qualquer pessoa, devido à ausência dos antígenos A, B, e Rh. Já quem tem sangue AB+ tem todos os três antígenos, sendo considerado o receptor universal.
Por outro lado, pessoas com sangue tipo A não podem receber sangue B ou AB, o mesmo valendo para o B em relação ao A e AB, e, ao mesmo tempo, é importante observar o fator Rh. Quem tem sangue O- só pode receber O-, e exatamente por este ser o mais versátil para outros tipos, é o mais desejável por bancos de sangue, embora ele responda por apenas 2,69% da população mundial. No Brasil, a porcentagem mais alta do mundo por país, eles são 9%.
Tudo o que vale na transfusão de sangue vale para o transplante e doação de órgãos, sob o risco de rejeição dos organismos considerados estranhos pelo receptor, e nem estou falando dos complicadores tradicionais.
Estudos para contornar a limitação da tipagem sanguínea existem há tempos, e os primeiros resultados apareceram em 2021, quando pesquisadores canadenses e brasileiros desenvolveram uma técnica de "lavagem" de antígenos dos órgãos, a princípio, pulmões.
Usando uma técnica chamada Perfusão Pulmonar Ex Vivo (PPEV) para emular um organismo vivo, foram usadas duas enzimas para remover os antígenos do sangue tipo A de 8 amostras. Ao fim do processo, eles se tornaram pulmões, por assim dizer, de tipo sanguíneo O.
O procedimento usado pelos pesquisadores de Cambridge é similar, mas usou, ao invés de pulmões inviáveis, três rins de doadores em condições ideais, de sangue tipo B. Primeiro, o teste foi conduzido em amostras de tecido, usando enzimas para também remover os marcadores, o que foi atingido com sucesso.
A seguir, o procedimento foi aplicado aos rins inteiros, usando uma máquina de perfusão, que mantém a oxigenação via circulação sanguínea extracorpórea, e as condições de um organismo vivo, para manter os órgãos viáveis por mais tempo. O sangue usado continha a enzima "limpadora" de antígenos.
Ao fim do processo, os três rins estavam livres de antígenos anti-A, e poderiam ser transplantados em receptores, independente do tipo de sangue. Segundo a doutoranda Serena MacMillan, uma das participantes da experiência, o procedimento de remoção é rápido, e pode ser escalado para procedimentos de conversão de órgãos em números maiores.
Assim como acontece com a pesquisa canadense, ainda é cedo para comemorar. Não é possível prever os resultados de transplantar um órgão convertido em um paciente cujo tipo sanguíneo não seja compatível com o original "removido" do tecido doado, nem se haverão novas complicações em conjunto com as tradicionais do processo.
A pesquisa ainda está no início, mas desde já mostra resultados interessantes. Os pesquisadores acreditam que o procedimento de conversão não é apenas escalável, mas aplicável a qualquer órgão que pode ser doado, como coração, fígado, etc.
Segundo a Universidade de Cambridge, o artigo completo será publicado na British Journal of Surgery nos próximos meses, sem definir datas.
Fonte: The Guardian