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Transplantes com órgãos de animais: ainda é cedo?

Fracassos em transplantes de coração experimentais, usando órgãos de porcos, mostram que ainda há um longo caminho pela frente

25 semanas atrás

Xenotransplantes, ou transplantes de órgãos em humanos tendo animais como doadores, vêm sendo cogitados como a última opção para casos onde pacientes terminais são considerados inelegíveis para o procedimento normal, por diversos motivos. Dois específicos, usando corações de porco geneticamente modificados, ganharam destaque pelo que pareciam ser cases de sucesso.

Cirurgiões exibem coração suíno antes dele ser implantado em David Bennett, o primeiro transplantado, que faleceu dois meses depois (Crédito: University of Maryland School of Medicine)

Cirurgiões exibem coração suíno antes dele ser implantado em David Bennett, o primeiro transplantado, que faleceu dois meses depois (Crédito: University of Maryland School of Medicine)

Infelizmente, a Realidade não perdoou: ambas cirurgias foram consideradas fracassos completos, por quadros de rejeição e complicações não previstas, no que os pacientes vieram a óbito pouco tempo depois dos procedimentos.

Fato: transplantes são complicados

A técnica de xenotransplante de coração, desenvolvida pela Escola de Medicina da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, envolve manipulação genética dos porcos que serão usados como doadores, para a remoção de marcadores, hormônios e vírus, em especial o retrovírus endógeno suíno (PERV-C), um "vírus de fábrica" presente em 90% dos espécimes em cativeiro, no que eles são herdados da mãe.

Em situações normais, o PERV-C e outros da mesma família são inofensivos, mas não sabemos qual seria o potencial destrutivo desses elementos no organismo humano, e já tivemos experiências ruins o suficiente com aqueles que pularam de uma espécie para outra, do SIV/HIV à mpox, ambos herdados de macacos.

A eliminação do PERV-C e outros vírus, além de outras modificações ao nível genético, visam reduzir os índices de rejeição dos órgãos suínos, e resultados promissores foram constatados em experimentos envolvendo pacientes com morte cerebral comprovada, sempre com aprovação dos familiares. Em dezembro de 2021, entretanto, a Universidade de Maryland realizou o primeiro procedimento em um paciente vivo, divulgado publicamente em janeiro de 2022.

O paciente em questão, um homem de 57 anos chamado David Bennett, sofria de arritmia crônica e foi considerado inelegível para um transplante normal, no que especialistas realizam triagens para determinar quem possui mais chances de sobreviver. Ele fora rejeitado quatro vezes, quando doadores em potencial foram identificados, sendo preterido em favor de pacientes em geral mais jovens, com quadros clínicos menos críticos.

O xenotransplante de coração suíno, autorizado por Bennett e sua família, é considerado pelos pesquisadores a "última opção", em casos onde todas as alternativas foram esgotadas, e ele se torna a única alternativa a uma morte certa. Os órgãos suínos nunca foram sequer cogitados como a norma, é um procedimento para situações desesperadas.

Bennett recebeu o coração de porco e vinha sendo monitorado de perto, e os primeiros exames não mostraram sinais de rejeição, ou da presença do PERV-C em seu organismo. Porém, semanas após o procedimento, os pulmões do paciente começaram a acumular líquido, e sua pressão arterial despencou, o levando a períodos constantes de inconsciência. Os capilares do coração começaram a vazar, fazendo com que ele inchasse, e assim, sua família decidiu desligar o sistema de suporte à vida, no início de março de 2022.

Na autópsia, os pesquisadores descobriram a presença de outro vírus, o citomegalovírus suíno (PCMV), que causa rinite em leitões recém-nascidos e está presente em 90% da população, no que ele é herdado da mãe. O órgão havia dobrado de tamanho antes do óbito, e foram identificados sinais de necrose generalizada da fibra muscular. O estado do órgão não condizia com um quadro geral de rejeição, e a culpa foi preliminarmente atribuída ao PCMV, que os médicos deixaram passar.

Lawrence Faucette e sua esposa, em foto tirada antes da cirurgia; coração transplantado foi rejeitado, e paciente faleceu 40 dias depois (Crédito: University of Maryland School of Medicine)

Lawrence Faucette e sua esposa, em foto tirada antes da cirurgia; coração transplantado foi rejeitado, e paciente faleceu 40 dias depois (Crédito: University of Maryland School of Medicine)

Com o procedimento de Bennett considerado um fracasso, os pesquisadores de Maryland voltaram para a prancheta, a fim de refinar o processo de preparo dos órgãos de porco e garantir a segurança do procedimento. Uma nova oportunidade surgiu recentemente, com o caso de Lawrence Faucette, que sofria de insuficiência cardíaca terminal e, assim como Bennett, foi considerado inapto para transplante com órgãos humanos, por também sofrer de doença vascular periférica.

Faucette recebeu um coração suíno em 20 de setembro de 2023, e as primeiras semanas do pós-operatório foram animadoras, com o paciente não demonstrando um quadro de rejeição. Porém, os primeiros sinais começaram a surgir após um tempo, e o quadro se deteriorou rapidamente. O paciente faleceu no dia 30 de outubro, 40 dias após a cirurgia.

Os médicos da Universidade de Maryland apontaram para o óbvio, rejeição é um problema sério em transplantes desde sempre, mesmo usando órgãos humanos, e há a possibilidade ainda maior do mesmo ocorrer em xenotransplantes, apesar dos esforços dos pesquisadores para reduzir sua ocorrência, e aumentar a compatibilidade entre porcos geneticamente modificados e humanos.

De novo, o procedimento não é, nem nunca foi planejado para ser uma opção de transplante alternativa a casos em que haja pouca oferta de órgãos humanos, e seria apenas considerado em quadros com pacientes terminais inaptos para serem incluídos na fila de espera, por um ou outro fator. Mesmo assim, os dois fracassos apontam para duas possibilidades: ou ainda não temos o necessário para viabilizar o processo, ou ele não é possível de ser realizado at all.

Há cerca de 40 anos, muito se comentou a respeito do coração artificial, uma pesquisa que data dos anos 1960, evoluir para um modelo autônomo permanente, mas mesmo os mais avançados disponíveis hoje são idealmente usados como substitutos temporários de transplantes tradicionais; pesquisas com o cultivo de células-tronco, para o desenvolvimento de órgãos compatíveis com o paciente, avançam, ainda que lentamente.

Talvez transplantes com órgãos de animais não sejam uma opção, ou ainda demore para se tornar algo realmente possível em um quadro de última opção que resta a pacientes terminais, mas por enquanto, será preciso refinar muito mais o processo, para garantir que ele seja minimamente seguro.

Fonte: ExtremeTech

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