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Mendel 200 anos: das ervilhas ao CRISPR

Nos 200 anos de Gregor Mendel, conheça a história do frade agostiniano que assentou a pedra angular da Ciência Genética

2 anos atrás

Fato: há um preconceito perene, intensificado nas últimas décadas, de que não apenas Ciência e Religião não podem se misturar, como é impossível que religiosos possam ser cientistas. Richard Dawkins, em sua eterna cruzada anti-crenças de todo tipo, até hoje têm problemas para endossar o trabalho do também biólogo evolucionista Kenneth R. Miller, um dos mais renomados profissionais na pesquisa de membranas celulares e cloroplastos, e católico praticante, embora seja anti-criacionista e anti-design inteligente convicto.

A verdade é que mesmo as religiões podem abrigar mentes que seguem o Método Científico e o colocam à frente de seus dogmas, desde os inúmeros estudiosos islâmicos e chineses que mantiveram a chama acesa, enquanto a Europa estava no escuro, a casos recentes como o do irmão jesuíta Guy Consolmagno, diretor do Observatório do Vaticano e detentor da Medalha Carl Sagan, por suas contribuições à Astronomia e à Ciência.

Observações de Mendel estabeleceram os parâmetros do que seria a Ciência Genética (Crédito: Ronaldo Gogoni/Meio Bit)

Observações de Mendel estabeleceram os parâmetros do que seria a Ciência Genética (Crédito: Ronaldo Gogoni/Meio Bit)

Porém, mesmo Dawkins não é louco o bastante para falar um "a" de Gregor Johann Mendel, frade da Ordem de Santo Agostinho (O.S.A.), mas também meteorologista e biólogo. Foi seu trabalho ao observar gerações de ervilhas, que estabeleceu postumamente todo um novo ramo científico, a Genética.

Mendel e a Ciência através da Igreja

Nascido em 20 de julho de 1822, na vila de Heinzendorf no Império Austro-Húngaro, hoje Hynčice, na República Tcheca, Johann Mendel (o "Gregor" foi-lhe dado ao entrar para a ordem agostiniana) foi criado entre uma família de fazendeiros humildes, na região de Morávia-Silésia, com os pais e duas irmãs (ele era o do meio). Ele sempre teve afinidade com o cultivo e especialmente a criação de abelhas, e quando jovem, buscou aprofundar seus estudos nessas áreas, e também Filosofia e Física.

O problema: os Mendels eram bem pobres, e para piorar, o jovem Johann tinha uma saúde frágil, tendo perdido 4 meses de estudo na escola secundária, e um ano na Faculdade de Filosofia da Universidade de Olmütz (hoje Olomut), ambos por doença.

Theresia, a irmã mais nova, chegou a repassar seu dote para que Johann o usasse para estudar, visto que a grana era curta, no que ele retribuiu anos depois dando suporte aos seus três sobrihos, que se formaram médicos.

Logo, Johann chegou à mesma conclusão de muitos outros jovens pobres de sua época: o único meio de perseguir uma carreira acadêmica sem ter que se preocupar com dinheiro, e com a miséria em geral, era entrando para o Clero. E ele assim o fez, ao ingressar na O.S.A.

Mosteiro de São Tomé em Brno, República Tcheca; Mendel foi seu abade mais ilustre (Crédito: Gareth Simkins/Wikimedia Commons)

Mosteiro de São Tomé em Brno, República Tcheca; Mendel foi seu abade mais ilustre (Crédito: Gareth Simkins/Wikimedia Commons)

Sobre ser filho de um fazendeiro que passou por dificuldades financeiras pelo curso de sua vida, Gregor Mendel escreveu:

A vida monástica me poupou da ansiedade perpétua que vem de procurar os meios para sobreviver.

Mendel teve como orientadores Friedrich Franz, professor de Física de Olmütz a quem é atribuída o primeiro registro fotojornalístico da região Tcheca, e na Universidade de Viena, para onde foi mandado por seu abade para ter uma educação mais formal, chegou a estudar com Física com Christian Doppler. Embora culto, Mendel teve dificuldades nos exames para conseguir a certificação de professor, falhando sempre na parte oral.

Os trabalhos científicos mais importantes de Mendel foram desenvolvidos durante 7 anos, entre 1856 e 1863.

Habemus ervilhas

O mosteiro possuía um jardim de 2 hectares, que Mendel estabeleceu como seu "laboratório experimental", conduzindo testes de hibridização de cultivares, especificamente ervilhas. Não é segredo para ninguém que a humanidade usa a Seleção Artificial há milênios, cruzamentos entre variantes de plantas e animais reforçam características desejadas nas proles; foi assim que desenvolvemos os cães e gatos domésticos, bem como quase tudo o que plantamos e comemos.

Porém, Mendel notou mudanças mais imediatas ao cruzar cultivares diferentes de ervilhas, no espaço de apenas uma geração. Ele analisou sete características diferentes, cada uma com duas variações possíveis.

  • Cor da semente: amarela e verde;
  • Textura da semente: lisa e rugosa;
  • Cor da vagem: amarela e verde;
  • Formato da vagem: inflada e comprimida;
  • Cor da flor: branca e púrpura;
  • Posição da flor: axial e terminal;
  • Altura da planta: alta e baixa.

Mendel percebeu que, ao realizar o cruzamento entre cultivares de sementes amarelas e verdes, a geração imediata era toda composta de sementes amarelas. Porém, na seguinte as verdes voltavam a aparecer, em uma proporção de 1:4, ou 25% do total.

Ao estudar duas características juntas, como a cor e a textura das sementes, Mendel observou que a ocorrência de sementes verdes rugosas era a mais rara de todas, contra as amarelas lisas, as mais comuns. Interessante, até então as sementes amarelas eram apenas lisas, e as verdes, apenas rugosas.

Diagrama da observação de Mendel, sobre a hereditariedade de múltiplas características em ervilhas, em três gerações de cultivares híbridos (Crédito: Reprodução/The University of Waitako)

Diagrama da observação de Mendel, sobre a hereditariedade de múltiplas características em ervilhas, em três gerações de cultivares híbridos (Crédito: Reprodução/The University of Waitako)

 

Com isso, Mendel estabeleceu duas leis, sendo a Lei da Segregação de Fatores (a Primeira Lei de Mendel), que diz:

Cada característica é determinada por um par de fatores que se separam na formação dos gametas, indo um fator do par para cada gameta, que é, portanto, puro.

Em resumo, cada característica (no caso um fenótipo, observável) que um filho, uma cria ou um cultivar híbrido recebe dos pais/progenitores, é definido por dois fatores distintos, que se separam na formação dos gametas. Estes fatores são separados em dominantes e recessivos (Lei da Dominância), no que um indivíduo que possua apenas o fator dominante, considerado "puro", só pode expressar estes para a geração seguinte, o mesmo valendo para um puro recessivo.

Quando a geração recebe fatores combinados, o dominante se expressa, visto que o recessivo só se manifesta na ausência do outro. No caso das ervilhas, os fatores de cor amarela e textura lisa das sementes são dominantes, e os de cor verde e textura rugosa, os recessivos.

Já a Lei da Segregação Independente dos Fatores (Segunda Lei de Mendel) diz o seguinte:

As diferenças de uma característica são herdadas independentemente das diferenças em outras características.

Basicamente, uma característica não sofre influência dos fatores de outros fenótipos, e se expressa (ou não) com base no que diz a Primeira Lei e a Lei da Dominância, que estabelece os fatores dominante e recessivo para cada traço.

O que Mendel identificou como "fator" é o que hoje chamamos de alelo, formas alternativas de um gene, geradas por mutação. De fato, Mendel sequer tinha a noção do que eram genes, cromossomos, DNA e por aí vai, mas sua pesquisa se mostraria muito importante posteriormente.

Mendel foi nomeado abade do mosteiro de São Tomé em 1866, e basicamente seu trabalho científico acabou. Dali em diante, ele ficou atolado em obrigações burocráticas e funções do clero, especialmente uma disputa com o governo austro-húngaro, sobre obrigar a Igreja Católica a recolher impostos no país.

Mendel faleceu no dia 6 de janeiro de 1884 aos 61 anos, de nefrite crônica.

O reconhecimento e a Genética

Gregor Mendel publicou o artigo Experimentos em Hibridização de Plantas (cuidado, PDF) em 1865, apenas para ser sumariamente ignorado pela comunidade científica, durante seu tempo de vida. Na época, o conceito dominante sobre hereditariedade era o da herança misturada ou Pangênese, no que as características dos pais se mesclavam para se expressar nos filhos, enquanto experiências de vida também influenciariam a formação dos gametas, e como as informações seriam repassadas.

Agradeça às ervilhas (Crédito: piviso/Pixabay)

Agradeça às ervilhas (Crédito: piviso/Pixabay)

A Pângenese chegou a ser considerada por Charles Darwin como uma explicação plausível em seu A Origem das Espécies, o que lhe rendeu ataques sobre a validade de seu trabalho.

A pesquisa com as ervilhas foi redescoberta apenas em 1900, pelo botânico Hugo de Vries, que estabeleceu o conceito de genes, os "fatores" mencionados por Mendel. Vries e outros pesquisadores confirmaram os estudos apresentados, que sepultaram de vez a Pangênese, substituindo-a pela Hereditariedade Individual, baseada no mendelismo.

O termo "Genética", cunhado por William Bateson, foi usado pela primeira vez em 1905 para identificar o estudo da hereditariedade; em 1911, Thomas Hunt Morgan se baseou no experimento das ervilhas para desenvolver o que envolve a Drosophila melanogaster, uma espécie de mosca-da-fruta, que foi crucial para a identificação do cromossomo como veículo que carrega os genes.

Em 1930, o polímata Ronald Fisher publicou o livro obrigatório The Genetical Theory of Natural Selection, onde defendeu, com provas, que "o Mendelismo valida o Darwinismo", ajudando a definir a Síntese Moderna Evolutiva, com base nos conceitos de Mendel e Darwin, e a estabelecer os ramos de estudos da Genética de Populações e da Biologia Evolutiva.

Claro, os estudos de Mendel não abrangem todas as situações de hereditariedade. Temos vários casos de herança não-mendeliana, como expressão genética que vem só da mãe, via mitocôndrias,  ou de herança epigenética, entre outros.

Mendel acreditava que "sua hora chegaria", mas infelizmente ele não pôde observar a aceitação de seu trabalho em vida. Por outro lado, sua pesquisa foi essencial para o estabelecimento da genética moderna, incluindo pesquisas avançadas como a que envolve o CRISPR, que permite a edição de genes de modo a desligar a expressão dos que podem ser prejudiciais, ou mesmo no futuro evitar doenças e mitigar a manifestação de anomalias.

Tudo isso graças a um frade, uma plantação de ervilhas, e muito Método Científico.

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