Meio Bit » Hardware » Adeus Sir Clive Sinclair, obrigado por tudo

Adeus Sir Clive Sinclair, obrigado por tudo

Sir Clive Sinclair nos deixou. Um vazio no coração de milhões de crianças que descobriram o mundo da computação através de seus micrinhos

2 anos e meio atrás

Clive Sinclair faleceu dia 16 de Setembro de 2021, depois de uma batalha de dez anos contra um câncer. Ele tinha 81 anos, e se não era um nome conhecido entre os millenials, tocou a vida de toda uma geração mais velha. Inclusive a minha.

Sir Clive Sinclair e o ZX80 (Crédito: Reprodução Internet)

Sinclair não inventou o computador (Alan Turing também não mas vocês não estão prontos pra essa história), ele sequer inventou o microcomputador, seu grande mérito foi perceber que computadores não precisavam ser hobbies de ricos.

Um dos primeiros computadores vendidos para o grande público foi o Altair 8800, em 1974, e mesmo assim chamar de “computador” era forçar bastante a amizade. Ele não tinha teclado, monitor, disco, interface para K7, não tinha teto não tinha nada. Memória? 256 Bytes.

O preço do Altair 8800 montado equivalia a US$3 mil em 2021.

O famoso Apple 1? Era hobby de estudante rico. O equipamento era vendido a US$666,66 (Woz era cheio de graça), o equivalente a US$3032,00 em valores de 2020. O Apple 2 começou a ser vendido em 1977, era um equipamento bem mais completo e profissional, e a facada idem. Um Apple 2 custava o equivalente a US$5543,00 em valores de 2021.

Computadores eram brinquedo de rico. Nos EUA o mais em conta era o Commodore PET, lançado em 1977 por US$3395,00 (corrigidos).

Em sua defesa o Commodore PET era bem completo. (Crédito: Tomislav Medak / Wikimedia Commons)

Sir Clive Sinclair era um engenheiro autodidata, autor de livros de eletrônica e editor. Ele havia ganhado dinheiro vendendo kits de eletrônica e calculadoras. Ele viu o nascente, mas exclusivo mercado de computadores pessoais e decidiu que seria capaz de produzir um computador extremamente barato, simples mas funcional.

Junto com Jim Westwood, engenheiro-chefe da Sinclair Research (A firma tinha outro nome na época, mas vamos simplificar) Sir Clive Sinclair aproveitou o influxo de CPUs baratas, como o Z-80 e definiram a meta de um computador de £100. O concorrente mais próximo, o Commodore Pet custava £700.

Lançado em Janeiro de 1980, o Sinclair ZX80 custava o equivalente a US$551,00 em 2021. Tinha uma CPU Z-80 rodando a 3.55MHz, 1KB de RAM e 4KB de ROM. Vinha com interpretador BASIC, saída para TV e gravador K7, onde a gente armazenava os programas. No total o computador tinha 21 chips.

Mesmo pros padrões da época o ZX80 era primitivo. Ou ele executava programas ou exibia texto na tela. Não era possível rodar programas em loop. Ele também não tinha cor ou som. A memória era compartilhada com a memória de vídeo então se seu programa fosse comprido demais, ele “invadia” a memória de tela e a área disponível para exibir informações era reduzida.

O ZX80 era tão barato que nem tinha parafusos, era fechado por rebites de plástico. (Crédito: Daniel Ryde / Wikimedia Commons)

Foram vendidas mais de 100 mil unidades, hobbystas, curiosos e crianças bem-comportadas se deslumbravam tendo em suas mãos algo digno de ficção científica, um computador de verdade.

Em 1981 Sinclair lançou o ZX81, uma versão aprimorada do ZX80, com modo gráfico (64x48 pixels, não exatamente 4K) e aprimoramentos como uma ROM de 8KB, com BASIC em ponto flutuante, e um modo de operação duplo. Agora colocando o ZX81 em modo SLOW a CPU podia entrar em modo de multiplexação, dividindo-se entre processar o programa e exibir vídeo. Caso você precisasse de velocidade, podia acionar o modo FAST, com a tela saindo do ar durante a execução do programa.

Internamente toda a lógica TTL foi condensada em um único chip, a ULA, que eu aprendi ser “Unidade Lógica Aritmética” mas na verdade é uncommitted logic array. Assim o ZX81 se resumia a quatro chips: RAM, ROM, CPU e ULA.

A simplíssima placa-mãe do ZX-81. (Crédito: Journey234 /Wikimedia Commons)

Agora a parte mais surpreendente: O ZX81 era mais barato que o ZX80, custava o equivalente a US$345 em valores de 2021. Clive Sinclar vendeu mais de 1.5 milhões desses computadores, sem falar os clones, autorizados, como os da Timex nos EUA, ou copiadas na cara-dura, como no Brasil.

No auge da Reserva de Mercado de informática, havia toda uma barreira legal e política impedindo empresas estrangeiras de vender seus produtos no Brasil, eles não conseguiam nem protestar quando seus computadores eram copiados.

A Microsoft não conseguia vender MS-DOS no Brasil, havia a figura do “similar nacional”, que coincidentemente lançavam atualizações poucas semanas após a Microsoft lançar updates do DOS. Um dos “similares nacionais”, e isso não é ouvi dizer, eu VI acontecer, apresentava a mensagem “Deseja continuar? (S/N)”.  Você apertava S, nada acontecia. Apertava Y, continuava.

Nesse cenário tivemos duas empresas principais produzindo clones dos computadores de Sir Clive Sinclair: A Prológica e a Microdigital. Essa foi a mais prolixa, lançando cópias de tudo que a Sinclair produzia.

Sendo justo eles não copiavam só da Sinclair. A Microdigital lançou um selo para distribuir software (piratex, claro) e batizou de... Microsoft. Alguns dizem que havia uma leve semelhança com a logo de uma certa empresa de Seattle. (Crédito: Reprodução Internet)

Curiosamente a Microdigital era famosa por vender vapor, ninguém nunca viu um TK80 nas lojas, o TK82 também nunca deu as caras. A TK Printer, cópia da impressorinha térmica da Sinclair só existia nos anúncios. Já a Prológica conseguiu algo até simples, mas raro entre copiadores: Eles melhoraram o ZX81.

O CP-200, que foi meu primeiro computador vinha com um teclado de calculadora que era horrendo, mas milhares de vezes melhor que o teclado de membrana do ZX81. O CP-200 também vinha já com 16KB de RAM, 8KB de ROM com BASIC em ponto flutuante e, bem, era mais bonito que o ZX81.

Olha, FEIO ele não era. (Crédito: Judcosta / Wikimedia Commons)

16KB era uma quantidade imensa de memória, era a RAM de um Apple II original.

No Reino Unido surgia todo um ecossistema de acessórios para os computadores Sinclair, que vinham com um conector na traseira dando acesso direto a um monte de pinos da CPU. Pequenas empresas, e muitos hobbystas de eletrônica começaram a projetar e vender interfaces de joystick, expansões de memória, interfaces de impressora e muito mais.

Em 1982 a Sinclair lançou o ZX Spectrum, computador que seria produzido por longos dez anos, vendendo mais de 5 milhões de unidades. Ele era bem mais caro, equivalente a US$964,00 em valores atuais, mas ainda várias vezes mais barato que a concorrência.

Qualquer semelhança... (Crédito: Reprodução Internet)

O Spectrum tinha cor, som, 48KB de RAM e gráficos de alta resolução, 256 x 192 pixels. Tínhamos recursos de computadores bem mais caros, a uma fração do preço. Logo todo garoto na Inglaterra tinha um Speccy ligado na TV do quarto, e nos finais de semana implorava pra usar a TV colorida da sala.

Um monte desses garotos aprendeu a programar por conta própria, lendo revistas, comprando livros e trocando experiências com os amigos. A indústria britânica de videogames basicamente estourou com o ZX Spectrum, ele era poderoso o suficiente para rodar jogos complexos, jogos que existem até hoje se popularizaram com ele, incluindo o venerado Elite.

A Sinclair supria o mercado com periféricos, como o Microdrive, um mini-cartucho de fita em loop, capaz de armazenar 85KB. Era possível encadear vários Microdrives, separando cartuchos entre dados e programas.

No Brasil a Microdigital estava on fire. Uma versão atualizada do ZX81 foi lançada em 1983 com um gabinete copiado do ZX Spectrum, o TK85. Em 1984 foi a vez do TK90X, um clone do Spectrum quase 100% compatível.

Na época minha avó gastou boa parte da pensão para pagar a entrada e comprar um TK90X para mim, em 12 vezes sem juros. Em tempos de hiperinflação, a primeira prestação equivalia a uns 70% do preço do produto. As últimas, eu paguei com troco da mesada.

O Spectrum (nunca pensei nele como TK) era maravilhoso. Podia jogar wargames, jogos de corrida, adventures como The Hobbit, jogos isométricos como Tir Na Nog, explorar uma galáxia impossivelmente grande em Elite.

Eu comprava revistas gringas com listagens de jogos, e visitava as “softhouses” no Centro do Rio, que eram basicamente lojas que copiavam programas de fora e vendiam fitas K7 com capas xerocadas.

Amigos se reuniam para trocar softwares, em geral na casa de quem tivesse o melhor equipamento de som. Era uma tortura esperar até dez minutos para um jogo carregar, e dar erro no final. Nessa época todos nos tornamos especialistas em ajustar o Azimute dos cabeçotes dos gravadores K7.

Mesmo com meros 48KB, o Spectrum tinha várias linguagens, como Forth, Logo, Pascal. Havia compiladores para BASIC, e Assembler Z80 nem era tão difícil. Quando as curvas fractais se popularizaram, eu me juntei a um grupo de amigos da UFRJ, pesquisei os algoritmos pra gerar o conjunto de Mandelbrot, e escrevi o primeiro programa de fractal no Spectrum. Levou mais de um dia para rodar, eu deixei o bichinho com o gabinete aberto e um ventilador em cima.

Era também a era de ouro das Revistas de Informática: A Info, pra adultos sérios, e a Micro Sistemas, pra molecada. Eles publicavam pequenos programas e truques enviados pelos leitores, e até artigos. Meu primeiro artigo publicado foi uma crônica de página inteira, e óbvio que me tornei um Deus para os amigos nerds. As amigas, nem tanto.

Eu continuei com o Spectrum por muito tempo, até migrar para seu sucessor espiritual, o Commodore Amiga. Não, os dois não tinham nenhuma relação em termos de hardware ou entre as empresas, mas eram almas irmãs. O Amiga foi o último computador a ter alma. Depois dele todos eram só amontados de peças.

No Brasil a Microdigital ainda lançou o TK95, uma versão do TK90X com um teclado decente, mas preferiu seguir copiando computadores mais caros e lucrativos. Na Europa Sir Clive Sinclair lançava atualizações como o Sinclair QL, Spectrum 128 e tantos outros, mas não vendiam tão bem.

Um Sinclair com teclado decente! Se bem que nessa época eu tinha arrumado uma case de Commodore 64. Refiz a matriz de teclado e transplantei o Spectrum pra ela. (Crédito: Spectreman78 / Wikimedia Commons)

A plataforma já estava ficando bem defasada. O Amiga, lançado em 1987 era uma máquina extremamente poderosa, que não faz feio nem hoje em dia. Um micrinho humilde de 1982 custando £175 não tinha mais condição de competir. Mesmo assim o último Spectrum, o Amstrad ZX Spectrum 3B só foi descontinuado em 1992.

Nessa época Sir Clive Sinclair não era mais dono da companhia (daí o Amstrad, a firma que comprou a Sinclair). Ele não conseguir repetir o sucesso do Spectrum com seus outros projetos, muito dinheiro foi perdido, incluindo no Sinclair C5, um carro de um passageiro, elétrico. Sinclair era obcecado em miniaturização e transporte alternativo.

O C5 era um triciclo com autonomia de 32Km e velocidade máxima de 24Km/h. O preço de US1690,00 (corrigidos) era atraente, mas o C5 sofria do mesmo problema dos carros projetados por estudantes millenials de design: Não é prático pra quem vive no mundo real.

Primeiro, ele era muito pequeno. E leve, apenas 45Kg. Não oferecia proteção nenhuma ao motorista.

Sir Clive Sinclair projetou um “veículo” sem teto ou portas, em um país onde chove 437 dias por ano. A posição do guidão é horrenda, fica debaixo dos joelhos, e para suprir propulsão extra, o C5 tem... pedais. Isso mesmo, você tem que pedalar se pegar uma ladeira mais íngreme.

As autoridades de trânsito ficaram horrorizadas, o C5 deixava o motorista completamente exposto, tanto ao escapamento de ônibus e caminhões, como a qualquer veículo maior que... bem... um C5. O bicho fazia o Reliant Robin parecer um carro decente.

Dos 14 mil produzidos, a Sinclair Veículos só conseguiu vender 5000. No total amargaram um prejuízo de 10 milhões de Libras, em valores da época.

Sinclair continuou insistindo em projetos de veículos minimalistas, como a bicicleta elétrica Zike, mas foi outro fracasso. Parece mais uma bicicleta para andar na cozinha do que algo pra usar numa rua de verdade.

Apesar de nunca ter conseguido realizar seus sonhos automobilísticos, Sir Clive Sinclair teve muito o que celebrar. Sua contribuição foi reconhecida, ele foi eleito homem de negócios do ano, em 1983 foi sagrado Cavaleiro do Império Britânico, tornando-se Sir Clive Sinclair.

Ele viu gerações de crianças descobrindo o mundo da computação graças a seus micrinhos. Tio Clive mais que influenciou, ele tornou possível que qualquer um tivesse acesso a essas máquinas maravilhosas e misteriosas. Sir Clive deixou sua marca em crianças de todos os lugares, do Brasil à África do Sul:

Eu também, Elon. Eu também.

Leia mais sobre: , , .

relacionados


Comentários