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Tempestade num copo d'água: um Belo Monte de falácias?

Tio Laguna comenta sobre o bizarro vídeo feito por famosos artistas contra a usina hidrelétrica Belo Monte.

13 anos atrás

Uma ONG convenceu famosos a lerem um teleprompter para compor um belo vídeo (se puderem, assistam-no em Full HD) contra a construção da usina hidrelétrica “Belo Monte” na Bacia do Rio Xingu, atual estado do Pará.

Laguna_SutienDrop_22nov2011

Algum efeito edificante?

O conteúdo do vídeo é interessante: ele convoca todos os espectadores a arranjarem mais dez pessoas para divulgar a preocupação sobre a origem da eletricidade utilizada para recarregar a preciosa bateria dos gadgets importados, além das belas imagens de uma atriz de telenovelas aborrescentes fumando e outra bela loura fingindo que vai tirar a roupa em protesto contra os prováveis impactos ambientais naquela remota região.

O tio Laguna imagina que tais ‘personalidades de mídia’ devem ter estudado anos sobre demanda de energia elétrica na Região Norte do Brasil. Especialistas renomados no assunto, provavelmente: parece ser fácil protestar contra a construção de uma hidrelétrica num belo curta metragem quando, em casa, se toma banho de ducha quentinha (bem instalada, espero) e no calor é só ligar o aparelho de ar condicionado novinho… Certos estudantes universitários das Ciências Humanas que o digam.

Esses famosos doutores globais em demanda de energia elétrica tocaram em pontos interessantes e o tio Laguna gostaria de falar com vocês sobre alguns deles:

Um pouco de História

A empresa pública que administra diretamente o projeto da polêmica usina é a Eletronorte, subsidiária da Eletrobrás criada no dia 20 de junho de 1973. Integrante da ABRAGE, a Eletronorte tem como função gerar e fornecer energia elétrica aos nove estados da Amazônia Legal, que inclui a Região Norte do Brasil e os estados do Maranhão e Mato Grosso.

O tio Laguna imagina que desde antes da criação de tal empresa, haveriam profundos estudos sobre a exploração do potencial hidroelétrico na Região Norte do país, tanto que a Usina Hidrelétrica de Tucuruí (cuja construção terminou antes do fim da ditadura) é considerada uma das maiores do mundo (aproximadamente 8,1 GW instalados) e é a maior usina hidrelétrica totalmente brasileira até o momento: ela aproveita o potencial hidrelétrico do Rio Tocantins e, assim como a futura Belo Monte, situa-se no Pará.

A idéia inicial, por volta de 1975, era a de que o Rio Xingu teria cinco grandes usinas hidrelétricas durante seu curso e aproveitariam 19,4 GW: as represas alagariam 20 mil km² e desalojariam centenas de milhares de pessoas… A sorte daqueles paraenses foi que a ditadura brasileira não conseguiu juntar os recursos necessários para dar cabo à tal megaprojeto ecologicamente insano!

Em 1989, um projeto específico da represa da usina hidrelétrica Belo Monte (antiga Kararaô) alagaria por volta dos 1.220 quilômetros quadrados, o dobro do atual projeto (entre 500 a 640 km²) situado entre os municípios paraenses de Altamira, Vitória do Xingu e Brasil Novo.

Laguna_BeloMonteTuc_27nov2011

Onde é Belo Monte?

Um novo projeto foi apresentado ao Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (atual Aneel) em 1994: para agradar aos investidores estrangeiros e outros ecochatos da época, o polêmico reservatório da usina Belo Monte foi reduzido dos 1.225 km² para os 500 km² e evitaria assim a inundação da Área Indígena Paquiçamba, em situação normal de operação.

Nos anos seguintes, entre as décadas de 1990 e 2000, uma série de recursos judiciais interrompeu o desenvolvimento de novos estudos mais complexos sobre a viabilidade da usina hidrelétrica Belo Monte.

Em 2008, o CNPE decidiu que a polêmica Belo Monte seria o único potencial hidroelétrico a ser explorado na bacia do Xingu: a partir de então, uma série de irregularidades são apontadas e têm adiado constantemente o início da instalação da hidrelétrica de Belo Monte propriamente dita.

Entre as situações que adiam a construção de Belo Monte, estão as obras condicionantes necessárias para o início da instalação da usina propriamente dita: tais pré-requisitos ainda não foram cumpridos até o momento e, de acordo com a Aneel, a UHE Belo Monte estaria prevista para entrar em operação somente em 2015. O tio Laguna aqui não duvidaria que os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro acontecerão sem Belo Monte.

De qualquer forma, foram no mínimo uns vinte anos de discussões oficiais sobre a usina e o longo histórico desmente a falácia de que Belo Monte era de “desconhecimento público”: se o assunto não tivesse sido tão discutido anteriormente, a polêmica usina já teria sido construída de qualquer jeito. Seria pior.

O número mágico é 33 (por cento)

Imaginemos uma máquina que trabalhe no horário comercial (das 8 h às 18 h, com direito à pausa de duas horas para o almoço da galera, claro!) todos os dias durante um ano. Matemagicamente falando, tal máquina possui então uma capacidade anual de trabalho a 33,3%; supondo que quando tal máquina trabalhe ela entregue 100% da potência nominal prometida e, além disso, nos outros 66,7% do tempo ela estaria em repouso ou manutenção que possibilitasse tal regime de funcionamento.

O vídeo dos atores supostamente preocupados com o rendimento de Belo Monte dá a falsa idéia de que uma usina hidrelétrica comum funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, e à toda potência ao colocar que Belo Monte só entregaria um terço (33,3%) do capacidade anual máxima de trabalho, o chamado fator de capacidade… Pelo o que o tio Laguna sabe sobre o assunto, para uma usina hidrelétrica funcionar 100% do tempo a 100% da capacidade teríamos uma situação teórica mais ou menos assim:

  1. Todas as turbinas da usina teriam de funcionar 100% do tempo durante todo o tempo de vida útil delas;
  2. A vazão do rio à montante teria de ser constante em todas as épocas do ano, todos os dias, todos os anos;
  3. Caso possua reservatório de água, a represa da usina hidrelétrica teria que controlar fortemente a vazão do rio à jusante e conseguir a façanha épica de manter um nível aceitável de água para a geração supostamente ininterrupta de energia elétrica.

 
Peguemos os três aspectos acima e os coloquemos em prática numa usina exemplar, a UHE Binacional Itaipu:

Laguna_ItaipuBiDam_23nov2011

Binacional Itaipu, a maior usina hidrelétrica do planeta em 2011, no quesito geração de energia elétrica.

  1. Duas das vinte turbinas Francis sempre estarão em manutenção: se não me engano, boa parte da manutenção consiste em retirar moluscos incrustados nas hélices;
  2. O Rio Paraná depende das chuvas na Bacia do Paraná e elas não caem todo o ano: há épocas bem “secas” e esta é basicamente a razão de o reservatório de Itaipu possuir 1.350 km² de área alagada;
  3. Embora ninguém se importe com a Argentina, mesmo num período de rígida estiagem a represa de Itaipu tem que liberar água suficiente para não comprometer o restante do Rio Paraná, exceto em caso de guerra declarada contra los hermanos.

 
Façamos algumas contas simples sobre tal exemplo de usina (só usar regra de três, nada de integrais e derivadas ainda), desconsiderando inúmeras variáveis somente interessantes para os engenheiros eletricistas:

O tio Laguna supõe que a usina hidrelétrica Binacional Itaipu forneça uma média de 90 TWh/ano (representariam pouco mais de 20% da demanda eletroenergética brasileira atual), sendo a maior do mundo nesse quesito. Em seguida, dividiremos esse número enorme pelo número de horas (8.766) existentes nos 365,25 dias do ano em que teoricamente a usina forneceria energia ao Paraguai e ao estado de São Paulo Brasil. Como resposta, obtemos algo em torno dos 10,27 GW. Se Itaipu possui base instalada de 14 GW, então podemos dizer que o fator de capacidade da usina é de 73% em teoria.

Agora temos de observar algumas cousas que complicam essa conta: pelas normas que regulamentaram a construção e operação da usina, duas turbinas de 700 MW estão sempre em manutenção (uma no lado brasileiro, outra no paraguaio) e isso confere à Binacional Itaipu uma potência funcional de 12,8 GW divididos igualmente entre os dois países, sendo que o Paraguai só precisa ser alimentado pela energia elétrica de uma das turbinas e a energia elétrica das outras oito turbinas paraguaias é vendida ao Brasil.

Porém, só porque duas das vinte turbinas de Itaipu estão sempre em manutenção não quer dizer que outras não possam deixar de gerar energia, isso por diversos outros motivos. De qualquer forma, refaçamos as contas de Itaipu, desta vez para uma outra situação teórica: supondo que todas as 18 turbinas funcionais estão a fornecer eletricidade ininterrupta, quantas horas elas trabalhariam por ano para alcançar tal fator de capacidade?

Ao dividir aquele enorme número anual (90 TWh/ano) pela potência funcional (12,8 GW) da principal usina hidrelétrica do Rio Paraná obteremos aproximadamente 7 mil horas funcionais por ano. Ou seja, teríamos Itaipu funcionando durante 292 dias por ano (ou 80% do tempo total) para atingir tal patamar de fornecimento elétrico, em teoria: se não me falha a memória, Itaipu só possui a obrigação de entregar 60% da potência instalada na forma de energia elétrica (lado brasileiro). Acima disso, é lucro até porque a média brasileira das usinas hidrelétricas no quesito fator de capacidade é normalmente pouco mais de 50%: como o fator de capacidade depende da disponibilidade de água e do próprio projeto da hidrelétrica, somente as usinas de países como os Estados Unidos e China conseguem chegar perto do patamar brasileiro nesse quesito.

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O vilão virou herói?

O fator de capacidade a trinta e três por cento (33%) seria algo normal para uma hidrelétrica em início de operação como a futura Belo Monte. Seria, se o número mágico do vídeo estivesse correcto: Belo Monte terá fator de capacidade na casa dos 40%.

Enfim, se o povo da novela quer alguma usina que entregue um fator de capacidade de mais de 90%, a única outra alternativa viável para a Região Norte é uma central termonuclear…

Simples assim: para substituir apenas uma turbina hidroelétrica, são necessárias dezenas de aerogeradores (uma usina eólica chega a uns 40 a 50% no fator de capacidade e cada turbina eólica não chega a gerar nem 10 MW) e vários hectares de placas solares eletrotérmicas ou fotovoltaicas (fator de capacidade abaixo dos 20%, luz solar aparece apenas durante metade do dia).

Água é vital; eletricidade, também

Graças aos maiores fatores de capacidade, as usinas hidrelétricas e termelétricas são consideradas centrais elétricas de base, ou seja, podem ser utilizadas como matriz energética.

Laguna_JoeFission_20mar2011

Alguém precisa me dar energia, também!

Mesmo as eficientes usinas termonucleares precisam ser alimentadas por uma hidrelétrica e/ou termelétrica externa próxima para “dar a partida” e arrefecer o núcleo dos reatores quando “desligados”.

A Região Norte do Brasil carece de centrais elétricas de base e isso faz com que a região seja recordista nacional nos blecautes, situações em que o fornecimento de energia elétrica é interrompido.

O tio Laguna reforça que energia elétrica é algo essencial na civilização, afinal o que seriam das pessoas que dependem de aparelhos nos hospitais no caso de um blecaute? Como funcionariam os serviços de meteorologia que prevêem as cheias de todos aqueles rios amazônicos?

Convenhamos que iluminação pública é requisito mínimo para a segurança da população e se o tráfego aéreo das pessoas e mercadorias da Região Norte, da Zona Franca do Pólo Industrial de Manaus, já é estressante para os controladores de vôo com energia, imaginem sem eletricidade!

Para atender à todas essas necessidades vitais daqueles brasileiros, a Região Norte do Brasil conta com várias pequenas usinas termelétricas. Só para termos uma idéia da situação precária: à época do “apagão”, 2001, esses 45% do território brasileiro eram atendidos por mais de 1.200 unidades geradoras que compunham uns 300 sistemas isolados de fornecimento de energia elétrica. Todos esses sistemas isolados reuniam uma potência total instalada de 2,6 GW; dos quais 2,1 GW eram providos por termelétricas, algumas a gás natural… Bom lembrar que, há dez anos, o consumo daquela região era de míseros 8 TWh/ano. Hoje consome o triplo.

O tio Laguna pode simplesmente concluir que o crescimento da demanda eletroenergética do Brasil é muito mais rápido que as pesquisas sobre as tais fontes alternativas e “limpas” de energia. Aliás, pesquisas tecnológicas desse tipo demoram muito tempo para fornecer resultados práticos, que possam ser utilizados em novas instalações. Na boa, o conceito de consciência ecológica só é interessante quando deixa de ser mero modismo politicamente correcto: perguntem sobre consciência ecológica a certos “coronéis” dessas regiões eletricamente isoladas do país, pois especulo que algumas daquelas termelétricas da Região Norte podem “parar de funcionar” caso determinados candidatos bem apadrinhados percam em determinadas eleições municipais.

Seja como for, ainda é bastante caro ligar todas essas localidades isoladas ao sistema nacional: a energia da UHE Belo Monte será transmitida por cinco linhas de 17 km, em 500 kV, até a Subestação Seccionadora Xingu, outro projeto que será construído no Pará. Tal subestação integrará o projeto do “linhãoTucuruí-Manaus e a polêmica Belo Monte poderia exercer posição privilegiada no SIN ao representar uma espécie de alicerce para aumentar a confiabilidade do futuro sistema interligado da Região Norte e baratear bastante o custo de transmissão da energia elétrica naquela região.

Que nações indígenas estariam em perigo?

Laguna_Indigenas_04dez2011

Indígenas esquecidos pelo poder público paulista.

O tio Laguna acha possível que culturas evoluam com o uso de diversas tecnologias sem perder a identidade: um bom exemplo é o Japão, que, embora tenha se tornado uma espécie de colônia norte-americana na Ásia durante a Guerra Fria, mantém intactas muitas de suas tradições milenares.

De qualquer forma, voltando ao Brasil, tenho consciência de que é algo cruel o facto de que alguns indivíduos, acostumados com determinado modo de vida há décadas, tenham de deixar seus lares conquistados no meio da densa Floresta Amazônica.

O problema que o tio Laguna viu em inúmeras matérias, reportagens e entrevistas com os supostos índios afetados diretamente pela hidrelétrica Belo Monte: é um tanto estranho que tais povos reclamem de um meio ambiente supostamente ameaçado quando usam calças, relógios e possuem internet banda larga nas habitações… Antes que alguém me dê flechada por continuar tal raciocínio, tenho que esclarecer uma coisa: os 18 mil moradores da região que serão removidos por causa da UHE Belo Monte não são índios, são populações ribeirinhas que moram em casebres sem qualquer saneamento básico.

Aliás, o tio Laguna tenta entender como o Parque Nacional do Xingu (citado no vídeo) seria afetado pela construção de Belo Monte: ele fica no Mato Grosso, num ponto do Rio Xingu que dista mais de mil quilômetros à montante da hidrelétrica. Somente a Cólera do Dragão do Shiryu poderia afetar os índios daquele Parque Nacional, pois o curso do rio teria de ser ao contrário: do mar para a atual nascente.

Considerações finais

Pode até “pegar bem” para a imagem pública ser “verde”, mas devemos ter em mente que consciência ecológica deve ter motivações concretas, com factos e dados reais fornecidos por quem entende do assunto: uma usina hidrelétrica não consegue ser construída em qualquer lugar, ela somente pode ser projetada em local onde tenhamos potencial energético e seria ideal que fosse construída próxima ao centro consumidor.

Como cidadãos conscientes, claro que devemos nos manter atentos para evitar desvios de verba na obra: esse projeto enorme que é a UHE Belo Monte tem que ser pesadamente fiscalizado pois mexe com muitas vidas e boa parte dele parece ser financiado com o dinheiro de nossos impostos (não deixa de ser uma obra de infraestrutura cujo crédito foi oferecido pelo BNDES).

Só é bom lembrar que tecnologia é um conforto transportado pela energia elétrica e me parece que ninguém quer dar nada em troca disso, nem mesmo um minuto de atenção para o que pode estar escrito nas entrelinhas de um bizarro vídeo feito por uma ONG da qual eu nunca ouvi falar antes (e que conseguiu elenco bem interessante!).

O “humorista” Rafinha Bastos e alguns estudantes da Unicamp conseguiram fazer vídeos menos bizarros sobre o assunto… Só digo isso.

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