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Fotografia, memória e outros pensamentos

A banalização da fotografia e a fragilidade de nossa memória fotográfica são algumas considerações desse texto.

14 anos atrás

Nessa semana, por conta de mais uma oficina de fotografia que estou ministrando aqui na cidade, entrei em algumas pesquisas e leituras que só fizeram piorar uma crise que venho tento há alguns anos. Gostaria de compartilhar essas idéias com os leitores aqui do Meio Bit e já vou avisando que esse é um texto muito mais filosófico do que técnico.

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Estou tratando de um tema muito estudado na fotografia que é a ligação da imagem com a capacidade de evocar memórias. Todos nós temos aquelas fotos familiares que nos pegam mais pela emoção do que pela técnica fotográfica. Lembrar momentos e pessoas que se foram é uma das funções da imagem fotográfica que mais prezo. Segundo a professora Valéria da Silva não há duvida que uma fonte sem par de memória habita na fotografia. Estas retém os momentos significativos da vida individual e coletiva, despertam os laços emocionais e afetivos, estabelece o nexo entre o presente e o passado e guardam cuidadosamente as imagens que o tempo e a distância encarregaram-se de ausentar.” Dentro dessa perspectiva se encontra minha primeira crise existencial ligada a fotografia.

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As imagens que produzimos estão cada vez mais banalizadas. Isso mesmo, cada vez mais o que produzimos está desprovido de significado e memória. Muitos culpam a revolução digital por isso, e até que surja outra explicação, estou inclinado a aceitar esses argumentos. Mas, não estou decretando que a tecnologia seja maligna, longe disso, estou culpando o fato de aceitarmos a ferramenta sem o devido conhecimento de como usá-la. Como disse Arnold Newmann a máquina fotográfica é um espelho dotado de memória, porém incapaz de pensar.” Isso também nos leva a outro pensamento, dessa vez de Matt Hardy, que afirma que “a beleza pode ser vista em todas as coisas, ver e compor a beleza é o que separa a simples imagem da fotografia”. Hoje temos uma grande ferramenta de preservação da memória a nossa disposição e, simplesmente, não estamos sabendo como utilizá-la.

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O que vejo são pessoas abarrotando álbuns virtuais e redes sociais com imagens mal feitas, com pouco significado e que serão esquecidas mais rápido do que o tempo necessário para fazê-las. Realizamos centenas de cliques em pouco tempo sem a preocupação de pensar o que estamos fazendo e a importância daquela imagem para a representação de quem somos. Paulo Brasil, amigo e fotógrafo com anos de experiência, me afirmou certa vez que é mais fácil ensinar violino do que fotografia para o cidadão comum. A afirmação pode parecer maluquice, pois o violino pode parecer uma ferramenta complexa de se manusear (pelo menos para mim que nunca pegou um nas mãos). Mas, ao analisar seus argumentos temos que dar o braço a torcer. O cidadão comum nunca teve contato com o violino, então tudo que eu ensinar vai ser novo e absorvido facilmente se o mesmo demonstrar interesse. Já com a fotografia é diferente. A maioria pensa que sabe alguma coisa de fotografia, e eu como professor, passo 80% do tempo mostrando para ele que suas concepções podem estar equivocadas. Nesse aspecto, eu tenho menos tempo livre para ensinar do que o professor de violino.

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Mas, nem tudo está perdido. Vejo isso analisando os ótimos trabalhos disponíveis no nosso grupo do flickr. Pessoas desenvolvendo fotografia e pensando sobre o que vai produzir. Essa é a grande diferença entre simples imagens e fotografia. Seu cérebro é seu principal equipamento fotográfico. Pense antes, fotografe depois. Aliás, esse é o grande objetivo de sites como o Meio Bit Fotografia e trabalhos desenvolvidos em Secretarias de Cultura e nos Fotoclubes. Não deixar a fotografia como registro e fonte de memória desaparecer. Mais um trabalho de formiguinha que estou envolvido.

Isso vai de encontro a minha segunda crise existencial, essa voltada mais para o que estou produzindo. Essa crise é bem demonstrada pelo pensamento de Paulo Straub: “para todos aqueles capazes de ver, a fotografia tirada por você, representa o testemunho de sua existência”.

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Vejo muitos fotógrafos preocupados em se preparar para a fotografia profissional. Como fotografar casamento, como fazer um book, como cobrar pelo trabalho realizado (tudo isso bem demonstrado pela grande procura que esses cursos possuem nas escolas de fotografia de São Paulo), mas vejo poucos preocupados em usar essa ferramenta para o registro de seu pensamento, de suas experiências. Assim como outras formas de arte, a fotografia é a sua mensagem para as gerações futuras sobre quem você era. A existência do ser humano é muito curta. Podemos chegar a um século de vida e seremos lembrados por nossos filhos, netos e talvez os bisnetos. Depois seremos mais um dado estatístico do que realmente um ser que teve sentimentos e experiências.

Para quem é fã de cinema, podemos ter uma noção disso no final de Blade Runner. O replicante, interpretado magistralmente por Rutger Hauer, enumerou suas grandes experiências e as coisas fantásticas que viu,mas que simplesmente não vão existir mais, pois ninguém vai se lembrar delas (também podemos ver um pouco disso no excelente curta metragem The Last 3 minutes).

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Fotografia para mim sempre foi paixão e um desejo de expressão. A profissão veio com o tempo, mas não tenho mais a alegria que tinha alguns anos atrás. Por esse motivo que hoje não aceito mais trabalhos que não me trazem satisfação profissional e artística. O dinheiro é bom, mas o ato fotográfico se tornou mecânico e penoso. E como a fotografia reflete o estado de espírito do fotógrafo, acabei por me manter apenas com as atividades que ainda me trazem prazer (no meu caso, o retrato). Não penso em desistir, claro, mas apenas em redirecionar o que estou fazendo. Pois, assim como Ansel Adams quando as fotografias se tornarem inadequadas, me contentarei com o silêncio.”

Espero que daqui a 100 anos, se meu trabalho for digno de ser relembrado ou analisado, eu seja classificado como um fotógrafo, alguém que amava o que fazia e que deixou algo de relevante.

P.S. 01 – esse texto foi escrito ao som de The Commitments.

P.S. 02 – todas as fotos que ilustram esse texto são de Massuo Aoki, mecânico de profissão e fotógrafo de paixão, que passou décadas registrando a cidade de Presidente Prudente com suas pequenas câmeras e seu filme preto e branco. Seu trabalho é um marco histórico, e nunca será esquecido.

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