Carlos Cardoso 9 anos atrás
“Para um idiota qualquer tecnologia, não importa o quão atrasada, é indistinguível de mágica.”
1ª Lei Cardoso-Clarke A internet é fonte de diversos fenômenos culturais, um dos mais curiosos é permitir que analfabetismo científico deixe de ser algo indesejado e se torne digno de mérito. Se uma pessoa não sabe como algo funciona, é vergonha. Se várias se juntam e inventam explicações fantasiosas, vira um movimento religioso. A mídia, ciente disso percebeu que explicar um fenômeno não é bom para o IBOPE. As pessoas não gostam de estar erradas. Pirâmides místicas? Tudo bem. Mostrar que é um imã? Você é um estraga-prazeres, não respeita as crenças das pessoas, é mal-humorado. Isso dá espaço para que editorias de ciências amplifiquem qualquer bobagem, e nem estou falando de astrologia. Um bom exemplo foi o da menina russa que “projetou uma espaçonave”. Quando vi a primeira manchete imaginei que fosse um exagero em cima de uma pequena cientista nos moldes de Homer Hicman, lindamente contada em O Céu de Outubro. Não. A tal menina fez o que todo mundo com 13 anos e tendências nerds já fez: desenhou uma espaçonave como gostaria que ela fosse. A matéria d'O Globo é vergonhosa: “Aluna russa de 13 anos cria projeto de nave que permite viagem rápida pelo espaço”. No texto entende-se que foi um projeto de feira de ciências, em grupo, o que é muito legal mas está tão distante quanto eu desejar dois bonecos de palito de mãos dadas, escrever “Lu e Eu” e correr pra mudar status de relacionamento no Facebook. Aí, claro, entra o History Channel e xaga mais ainda: “Garota russa de 13 anos inventa a primeira nave capaz de viajar para outra galáxia” afinal de contas uma nave espacial normal é pouco, tem que ser intergaláctica. Well, Andrômeda fica a 2 milhões de anos-luz de distância, tomara que tenham Netflix nessa nave. A menos que… “Cientistas da NASA revelam o protótipo de uma nave mais rápida que a luz, inspirados na Enterprise, de Star Trek” UAU, como assim, Bial? A NASA está penando pra tirar a Orion do papel, uma cápsula que mal e porcamente se iguala à Apollo, vivem de comprar lugar nas Soyuz russas. Em 2014 a NASA não tem NADA capaz sequer de colocar um homem em órbita, estão cancelando missões por falta de verba. De onde surgiu esse protótipo? Como sempre o History Channel não consegue lidar direito com essa coisa chamada REALIDADE. A tal nave? Ela tem um belo pedigree, mas em essência é idêntico ao projeto da menina russa. A ISS Enterprise foi desenhada por um sujeito chamado Mark Rademaker. Ele é um artista que produz material em computação gráfica muito bom. Em suas imagens Rademaker deixar claro: é um CONCEITO de uma nave estelar com propulsão FTL — Faster Than Light (neutrinos?). Daí, claro, os sites começaram a divulgar como “projeto da NASA”. Qual a ligação da agência com essas belas e fantasiosas imagens? Elas são usadas por Harold White, chefe do Grupo de Propulsão Avançada da NASA. Sim, a NASA tem um grupo que se dedica a sonhar com propulsão de dobra, o que é admirável, seria o mesmo que Alexandre, o Grande (ok, ou a Dilma) sonhar com um programa espacial. As tecnologias necessárias para a construção de uma nave interestelar estão Séculos no futuro. Não sabemos sequer se os conceitos primários necessários para a viagem em velocidade acima da luz é possível. O principal trabalho do grupo de White é a criação de um equipamento que detectará, se existirem, campos de dobra. Em suas palestras ele fala do futuro, mostra imagens como a nave de Rademaker, que foi desenhada com auxílio de Michael Okuda, designer de Star Trek — TNG e outros. A semelhança com uma nave vulcana classe Surak é bem grande, além de lembrar a USS Enterprise XCV 330, mostrada de relance no Star Trek I. Essa semelhança de designs foi retconeada como exigência do sistema de propulsão, o motor de dobra Alcubierre, que tem “bases” na “realidade”. Segundo as “matérias” do History e de uns 3.247.328.432 outros sites, a NASA está com o motor Alcubierre praticamente pronto, só falta mandar pro Top Gear UK testar. Na prática o modelo de dobra espacial de Miguel Alcubierre equivale a dizer que algo foi upgradeado de “absolutamente impossível” para “inimaginavelmente improvável”. Proposto por Miguel Alcubierre no ano 2000, em um paper chamado The warp drive: hyper-fast travel within general relativity, o motor de dobra Alcubierre utiliza o mecanismo clássico de Star Trek: distorce o espaço-tempo, aproximando dois pontos e permitindo que uma nave percorra aquela distância em uma velocidade aparente maior que a da luz, mesmo não tendo excedido c do ponto de vista da nave. A energia necessária para uma viagem inicialmente foi calculada como o equivalente à massa de Júpiter. Outras variações conseguiram reduzir para meros 350 kg de antimatéria. Pouco, né? Só que até hoje produzimos alguns picogramas, estima-se que em termos de custo 1 g de antimatéria hoje custaria, usando o LHC e outros equipamentos, US$ 100 trilhões. O problema piora, pois a solução matemática de Alcubierre exige coisas como matéria exótica e energia negativa, conceitos que mal existem no papel, não descrevem mais um motor de dobra do que E = m·c² descreve um reator de fissão. Em 1907. E se NADA da teoria atômica fosse conhecido. Chuto uns 300 ou 400 anos antes de sabermos se o paper de Alcubierre é uma obra seminal que abriu nosso caminho para as estrelas ou só mais um trabalho equivocado, como as teorias alquimistas e o Éter. Claro, “Artista que faz frila pra cientista que de vez em quando dá consultoria pra NASA desenha nave bonitinha” não dá manchete, e a gente até perdoa O Globo e outros por não terem uma editoria de ciências decente (fugiram todos pra GloboNews, não deixem o Fantástico saber que o Navegador existe). Já o History Channel, que deveria saber mais? OK, eu entendo que o objetivo seja caçar cliques, mas custa pelo menos não mentir muito? Ou querem que a gente acredite que ninguém no History entende o significado da palavra “protótipo”? Quem faz divulgação científica, mesmo capenga como eu já tem que lidar o tempo todo com homeopatas, astrólogos, vendedores de florais, tarólogos, exorcistas, ufeiros e caça-fantasmas. Além disso tudo ainda ter que lidar com desinformação do que seriam fontes confiáveis é dose. Eu amo Star Trek, acredito na mensagem humanista da série, e pela imagem acima você vê que não estou sozinho, mas sei que ninguém sobe uma montanha aos saltos. Precisamos aprender a andar antes de aprender a correr, que dirá a voar. Mostrar naves espaciais como uma meta, como uma visão do futuro, sou plenamente a favor. Enganar deliberadamente pessoas com renderizações bonitinhas que não passam de sonhos de ficção científica, aí é errado. É uma pena que divulgação científica tenha que depender desses truques, mas é mais grave ainda quando a ciência em si deixa de ser o objetivo, e se torna apenas uma ferramenta para propiciar mais visitas e consequentemente mais lucros. Isso é uma postura limitada, de gente sem capacidade de mostrar o universo real com a grandiosidade que Ele* merece. *Sim, com maiúscula, se alguém merece essa deferência, é o Universo. É o melhor que conheço.