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O sistema de escape que salvou o foguete de Jeff Bezos

O foguete de Bezos deu chabu, mas o sistema de escape funcionou perfeitamente, vamos conhecer mais dessa tecnologia que vem do tempo de Gagarin

1 ano e meio atrás

Blue Origin, a empresa aeroespacial de Jeff Bezos fracassou al lançar seu foguete New Shepard, em uma missão de pesquisa, mas seu sistema de escape funcionou excepcionalmente bem.

Um New Shepard decolando. (Crédito: Blue Origin)

Era a missão NS-23, 23ª da Blue Origin, e deveria levar 23 cargas úteis ao limiar do Espaço em 12 de Setembro de 2022, ultrapassando a Linha de Karman por uns 3 minutos, antes de retornar para a Terra em queda livre. Entre as cargas, milhares de cartões postais que seriam vendidos para caridade, experimentos de escolas primárias, um teste para estudar a força da superfície de asteróides, algumas missões da NASA, um projeto de seis estudantes para testar o efeito da gravidade em ondas ultrassônicas, e muito mais. A lista parcial está aqui.

O lançamento foi perfeitamente nominal, com o New Shepard iniciando seu 23º lançamento (não do mesmo foguete, a Blue Origin tem (ou melhor, tinha) 4). Tudo correu bem até 1’02” de vôo, quando o foguete atingiu o ponto chamado Max-Q, o ponto de máxima pressão aerodinâmica.

O que é Max-Q

O conceito é deliciosamente simples: Quando você acelera, enfrenta resistência do ar, todo mundo já brincou com a mão fora da janela do carro, variando o ângulo e sentindo a força do ar, lembra? Com qualquer veículo é a mesma coisa, exceto que no caso de foguetes, você está subindo para cima (ênfase), então a densidade do ar tende a diminuir com a altitude, correto?

Quanto mais alto, menor a resistência do ar, exceto que você está acelerando, então mesmo com a densidade da atmosfera diminuindo, você está cada vez mais rápido, empurrando mais ar.

Essa corrida entre a velocidade crescente e a pressão decrescente atinge um ponto em que o ar perde por WO, não há mais ar o suficiente para exercer resistência, e ela começa a cair. Nesse ponto a pressão aerodinâmica do ar contra o foguete atingiu seu grau máximo, Max-Q. Passou disso, não há mais chances de o foguete falhar por pressão aerodinâmica.

Como você pode ver, é bem simples. (Crédito: NASA)

No caso do New Shepard, Max-Q não teve nada a ver com o problema. O motor BE-3 do New Shepard deu uma engasgada, como se tivesse sujeira no platinado (pergunte a seus pais). Momentos depois outro engasgo, e então a chama limpa, quase transparente da queima do Hidrogênio deu lugar a uma labareda amarela, típica da queima de fragmentos do motor.

O foguete deu uma guinada para o lado, e um computador muito mais inteligente do que eu e você juntos entendeu que o foguete havia saído de seu envelope de vôo, e era hora de ativar a 1ª Lei da Robótica:

“Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.”

O computador não tinha como saber que a cápsula RSS H. G. Wells não levava passageiros, e isso não importava. O procedimento era o mesmo: Acionar o sistema de escape, essencialmente um enorme motor de combustível sólido, ele se estende para dentro da cápsula, é aquele console cilíndrico no meio da cápsula, que parece uma mesinha de centro futurista.

Lançada para longe do foguete em processo de autodestruição, a cápsula atingiu seu apogeu, depois começou a cair em direção à Terra. Como planejado, seus pára-quedas foram automaticamente acionados, reduzindo a velocidade de descida. Momentos antes de tocar no solo, retrofoguetes garantiram um contato suave.

Enquanto o foguete se esfarelava em uma linda explosão, o sistema de escape do New Shepard havia funcionado perfeitamente, e nem foi a primeira vez.

Em 2018 a Blue Origin testou seu sistema de escape, e foi um teste tão bem-sucedido que até o foguete conseguiu pousar, algo que não era esperado.

Sistema de Escape - História

Foguetes com sistema de escape não são novidade. Dado o risco envolvido, astronautas preferiam ter uma chance de sobreviver a um desastre, por menor que fosse.

Em abril de 1961 Yuri Gagarin se tornou o primeiro homem no espaço, a bordo da Vostok 1. Seu sistema de escape era primitivo, um assento ejetor. Em caso de emergência uma escotilha seria explodida, seu assento ejetado da cápsula por um foguete, e ele cairia de pára-quedas.

O assento ejetor da Vostok de Yuri Gagarin (Crédito: Roscosmos)

O sistema funcionou perfeitamente, mas não houve nenhum acidente. Os russos não tinham conseguido fazer a cápsula desacelerar o suficiente, mesmo com pára-quedas, então o procedimento-padrão da Vostok era, quando do retorno para a Terra, a cápsula acionar pára-quedas, e a uma altitude de 7Km, o cosmonauta seria ejetado, caindo até 2.5Km de altitude, acionando seu próprio pára-quedas, e pousando em segurança.

Quando subiu ao espaço no Mercury-Redstone 3 em maio do mesmo ano, Alan Shepard tinha acoplada à sua cápsula uma torre de escape, um sistema usado em caso de emergência, composto de uma extensão no nariz da cápsula, contendo quatro motores de combustível sólido que puxam a mesma para longe do foguete.

Em Moscou, Sergei Korolev coçou a cabeça, pensou “é uma ótima idéia, vamos kibá-la”.

Os russos abandonaram a idéia do assento ejetor, e adotaram a torre de escape. Essa decisão seria fundamental para a saúde dos cosmonautas Vladimir Titov e Gennadi Strekalov. Eles eram a tripulação da Soyuz T-10A-1, que seria lançada em 26 de setembro de 1983.

Exceto que Murphy decidiu que não iria subir ninguém. Uma válvula com defeito fez com que nitrogênio pressurizasse uma turbo-bomba de combustível, que girou a seco. Com isso ela superaqueceu, pegou jogo, danificou linhas de RP-1 e tudo pegou fogo, com querosene se espalhando pelo chão à volta do foguete.

Sem entrar em detalhes muito técnicos, não é uma coisa boa quando seu foguete está em chamas, e ao mesmo tempo contém mais de 300 toneladas de combustível e oxidante.

Quando perceberam a gravidade da situação, os técnicos no controle da missão acionaram o sistema de escape... e nada aconteceu. O fogo havia derretido os cabos de comunicação. Na cabine, os cosmonautas não faziam idéia do que estava acontecendo, então não tinham como acionar o sistema também.

Havia um backup, um acionamento por rádio, mas ele precisava ser acionado por dois técnicos apertando botões ao mesmo tempo, com intervalo máximo de 5 segundos, e eles só fariam se recebessem uma palavra-chave.

A clássica burocracia russa conseguiu atrasar o acionamento, mas ele finalmente aconteceu. Como num bom filme de ação, a cápsula Soyuz foi ejetada do foguete dois segundos antes que ele explodisse.

A cápsula pousou, com ajuda de pára-quedas, a 4Km de distância da plataforma, com dois cosmonautas assustados, mas inteiros.

Em 2018 o sistema de escape da Soyuz foi mais uma vez usado, dessa vez ao extremo.

Dia 11 de outubro, um lançamento levaria o cosmonauta Aleksey Ovchinin e o astronauta T. Nicklaus Hague para a Estação Espacial Internacional, e o lançamento na missão Soyuz MS-10 correu bem até a hora de alijar os quatro propulsores auxiliares, manobra que forma a famosa Cruz de Korolev, com os quatro boosters girando enquanto se afastam do foguete.

Exceto que uma das cargas pirotécnicas responsáveis pelo empurrão lateral dos boosters falhou. O enorme foguete de 19.2m de comprimento girou perto demais e rasgou a lateral do Soyuz, atingindo o tanque de combustível. O foguete começou imediatamente a girar sem controle.

Ovchinin e Hague, antes do susto. (Crédito: Roscosmos)

Era hora de acionar a torre de escape, exceto que isso não era mais possível. O acidente ocorreu aos 118 segundos de vôo. Aos 114.16 a torre de escape havia sido ejetada, como de rotina.

Só que os engenheiros espaciais russos adoram um plano. Russos não vão ao banheiro sem um plano. No período em que a torre de escape já havia sido ejetada (por volta de 42Km de altitude) até uns 78Km de altitude, a tarefa de salvar a cápsula cabia a quatro motores de escape, instalados na carenagem que protege e envolve a cápsula, durante o lançamento.

Torre de escape da Soyuz, embaixo, os motores de escape na carenagem. (Crédito: Roscosmos)

As conexões físicas prendendo a cápsula ao resto do foguete foram cortadas com dispositivos explosivos. Dois motores de escape foram acionados, de um lado da carenagem. 0.24s depois, os do outro lado também foram acionados, a diferença é para forçar a cápsula a uma trajetória lateral, não colidindo com o resto do foguete.

Mais uma vez, o sistema funcionou perfeitamente.

Enquanto isso, nos EUA...

No lado dos americanos, também havia idéias para melhorar a segurança dos astronautas. A maioria não muito eficientes. Gus Grissom voou na Liberty Bell 7, no Projeto Mercury, e como medida de emergência caso o pára-quedas da cápsula falhasse, perto da escotilha havia um pára-quedas pessoal.

Alguém na NASA realmente achou que durante uma queda descontrolada ele teria tempo de ejetar a escotilha, vestir o pára-quedas e saltar. Grissom respondeu de forma bem-humorada:

“Bem, ao menos vai me dar algo pra fazer até eu atingir a água”.

Alguém na NASA resolveu seguir a filosofia russa, as cápsulas do Programa Gemini não tinham além da torre de escape, mas assentos ejetores, como Gagarin. Os astronautas não botavam muita fé neles, John Young descreveu o sistema como:

“Uma morte provável pra escapar de uma morte certa”

Terem visto um teste onde a escotilha falhou em ser alijada, mas o assento ejetor disparou não ajudou muito na moral, e para o programa Apollo a NASA voltou para a boa e velha torre de escape.

Testada nos foguetes Little Joe, foram 5 lançamentos aperfeiçoando o sistema, mas o melhor de todos foi o que deu errado.

Um estagiário instalou errado os giroscópios, e logo após o lançamento o Little Joe começou a girar, a força centrífuga despedaçou o foguete, rompendo um dos três fios que percorriam todo seu comprimento. Romper esses fios acionava o sistema de escape, e a cápsula de demonstração foi arrastada para a segurança pelos poderosos motores da torre de escape.

Houston, temos um problema

A era dos Ônibus Espaciais foi um problema. O Enterprise e o Colúmbia tinham assentos ejetores, mas somente para o piloto e co-piloto. Quando a espaçonave foi declarada operacional e passou a levar até 8 tripulantes, se tornou inviável, não havia como instalar assentos ejetores no convés inferior, onde a maioria dos tripulantes viajava.

O Shuttle tinha um monte de planos de contingência, pistas de pouso alternativas, etc, mas nas fases iniciais da decolagem, era ou vai ou racha. Havia zero a ser feito se um dos motores de combustível sólido explodisse, por exemplo.

Depois do desastre da Challenger, a NASA criou vários planos fantasiosos, incluindo um sistema de escape onde a nave seria colocada em vôo planado estável, e os astronautas saltariam de pára-quedas usando um tubo-guia. Essa técnica é demonstrada no delicioso Space Cowboys.

Foi cogitada a idéia de transformar a cabine inteira em uma cápsula de escape, mas isso deixaria a nave pesada demais, e acidentes com o ônibus espacial envolvem forças muito grandes e frações de segundo, as chances de escapar, com ou sem cápsula são mínimas.

Hoje em dia a NASA continua confiando na torre de escape, o foguete SLS conta com uma boa e velha torre, e o teste, em 2019 foi danado de bonito:

Seguindo o caminho oposto, SpaceX e Boeing aboliram as torres. Seus sistemas de escape utilizam motores incorporados às cápsulas. O sistema da SpaceX foi testado em 2015:

O grande desafio agora é a Starship, a nave gigante da SpaceX. Ela é grande demais para sistemas de escape convencionais. Em teoria ela poderia usar seus motores para escapar em caso de algum problema no lançamento, mas seria muito, muito lento, impossível fugir de uma explosão.

A alternativa proposta pela SpaceX é investir em redundância e confiabilidade. Eles querem tornar seus foguetes tão confiáveis quanto aviões, o que soa impossível, mas se pesquisarmos, vamos descobrir que a versão Full Thrust do Falcon 9, colocada em operação em 2015 já realizou 155 lançamentos, todos bem-sucedidos. Em todas as suas versões o Falcon 9 já voou 178 vezes, tendo sofrido um acidente e um sucesso parcial. A versão mais recente coleciona 119 sucessos.

Óbvio que foguetes sempre serão mais perigosos do que aviões, mas é preciso que a indústria persiga essas metas de tornar os equipamentos mais seguros e confiáveis. O ônibus espacial tinha uma taxa de mortalidade de 2%. Se o 737 Max tivesse esse nível de periculosidade, o resultado seriam 26 acidentes por dia.

Esperemos que a SpaceX tenha isso em mente, enquanto testa a Starship, descobre seus limites e a torna blindada, segura e confiável como a Millenium Falcon, ou pelo menos a Planet Express.

Fontes:

 

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