Ronaldo Gogoni 2 anos e meio atrás
A Rússia vem a um bom tempo buscando meios de aumentar o controle sobre a internet, de uma forma ligeiramente diferente do método usado pela vizinha China. Enquanto Pequim ergueu o Grande Firewall e barrou muitos sites, apps e serviços externos, e focando em desenvolver versões próprias, a administração de Vladimir Putin é um pouco mais permissiva a quem é de fora, desde que dancem conforme a música.
Um exemplo disso ocorreu em setembro, quando Apple e Google removeram de suas lojas de dispositivos móveis o app de votação do líder da oposição Alexei Navalny, preso desde janeiro de 2021, após pressão do Kremlin.
Não é segredo que Putin, assim como Xi Jinping, busca exercer total controle sobre a internet em suas fronteiras, mas os métodos adotados por ambos líderes diferem. A política exercida pelo Partido Comunista da China, do qual o presidente do país também é secretário-geral, visa um quase que total isolacionismo em prol de apps, sites e serviços internos, em que tudo é controlado e monitorado pelo Estado.
Nesse modelo, poucas são as companhias externas que conseguem prosperar. A Apple é uma delas, embora tenha feito concessões diversas para garantir seu espaço, de forma a lucrar com as vendas de seus gadgets no mercado chinês, mesmo que tal atitude fosse de encontro aos valores que tanto preza. Money talks afinal, e o dinheiro chinês é tão verde quanto o de qualquer outro lugar do mundo.
O Google, sendo uma empresa essencialmente de serviços, sofre bem mais na China. A maior parte de seus produtos, do YouTube ao Gmail, o Search e a Play Store foram completamente banidos, e a companhia tenta comer pelas beiradas até hoje.
Na Rússia, as coisas são um pouco diferentes. O governo monitora e autoriza o que pode ser publicado, e já comprou briga com diversos detratores, como Pavel Durov, fundador e CEO do Telegram, ferramenta que foi oficialmente banida mas que ainda é usada no país via VPN, inclusive por membros do governo.
O governo Putin entendeu que melhor do que fechar, é jogar junto para atrair companhias externas, porque de dinheiro todos gostam. A Apple, embora afirme defender a privacidade de seus usuários e os direitos humanos acima de tudo, é bem mais flexível quando se trata de fazer negócios em países com administrações mais fechadas.
A posição oficial (cuidado, PDF) da maçã é bem clara: "em países onde a legislação nacional e os direitos humanos diferem, nós (a Apple) seguimos o padrão mais elevado", o que pode significar qualquer coisa, inclusive qual abordagem é mais lucrativa para a companhia.
O código de conduta corporativo do Google, por sua vez, tem hoje como lema "organizar a informação global e torná-la universalmente acessível e útil", tendo abandonado o "don't be evil" faz tempo.
O argumento usado por Apple e Google, visando a flexibilização de seus valores em prol de atuarem em países que defendem políticas que batem de frente com seus valores, é uma alusão ao conceito chamado utopismo cibernético/utopismo digital (cyber-utopianism no original em inglês), que defende a propagação dos sistemas de comunicação digitais, não importa de que forma isso seja feita, para promover a inclusão e promover mudanças na sociedade, tendo a web como peça central e força de disseminação da democracia e direitos iguais.
Claro, o termo "utopia" já deixa claro que tal ideal é quase irreal, e o conceito como um todo é considerado uma ilusão, basta observar como medidas de restrição ao acesso são tratadas dependendo de quem as promove, seja a China, a Rússia, os EUA ou a União Europeia, por governos rivais, apoiadores e detratores. A onda do cancelamento digital de indivíduos também é um exemplo, com grupos "passando pano" para aqueles com os quais se alinham.
O utopismo digital também não passou no teste na Rússia. Google e Apple, entre outras empresas, são permitidas a operarem com seus serviços no país, desde que se adequem às determinações do Roskomnadzor, o departamento federal responsável pela regulamentação dos serviços de mídia e telecomunicações da Rússia, ou seja, o censor. O que o Kremlin mandar deverá ser seguido, e quem não se enquadrar pode responder de n formas.
Foi o que aconteceu recentemente, com as eleições para o Legislativo se aproximando. O grupo de apoiadores de Alexei Navalny, formado por membros exilados da Rússia because reasons (além do líder opositor, vários outros foram presos por conspiração), mantinham um app voltado a relacionar quais candidatos estavam mais bem posicionados nas pesquisas por região, como forma de incentivar a adesão dos eleitores àqueles que fariam oposição ao partido Rússia Unida, a atual situação.
No dia 17 de setembro de 2021, o primeiro dia das eleições, o app foi limado da Apple App Store e Google Play Store, com ambas empresas tendo cedido às pressões do governo russo. As medidas para regular a internet e controlar a eleição começaram obviamente com a prisão de Navalny e seus apoiadores, mas em julho, como forma de angariar a "cooperação" das gigantes tech, Putin aprovou uma lei exigindo que qualquer empresa digital externa, que tivesse um total superior a 500 mil usuários diários, deveria ter escritórios locais e empregados russos.
Na sequência, o governo ameaçou processar os funcionários locais da Apple e do Google, reduzir severamente o tráfego reservado aos serviços de ambas empresas, e proibir os serviços Apple Pay e Google Pay, num caso clássico de "uma mão dá, a outra tira". No fim, as companhias cederam às exigências e pulverizaram o app de Navalny, sob o risco de que as tensões escalassem ainda mais e os prejuízos se acumulassem.
Olhando de fora, o sistema da internet Rússia parece ser tão fechado quanto o da China, mas o governo é mais permissivo com quem quiser fazer dinheiro no país, desde que os interessados sigam as regras, que se resumem a não contrariar o czar presidente Vladimir Putin, que assim como seu vizinho ursi-, digo, premiê Xi, é quem detém a palavra final.
Fonte: The Conversation