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Apple, compras digitais e o direito à posse "de mentirinha"

Processo contra a Apple por bloquear conteúdos comprados na App Store reacende discussão sobre posse x licença de uso digital

3 anos atrás

A Apple está sendo processada nos Estados Unidos em uma ação coletiva, que acusa a companhia de encerrar as contas Apple ID de seus usuários, em casos arbitrários onde alega que houve "infração dos Termos de Serviço", sem nunca ter esclarecido a causa aos reclamantes. Em um processo paralelo, o reclamante lesado afirma ter perdido o acesso a conteúdos e apps adquiridos na App Store e no iTunes, no valor de quase US$ 25 mil.

A Apple se defende, dizendo que conteúdos adquiridos não correspondem a acesso permanente de apps, filmes e etc, levantando novamente a discussão sobre posse e licença de uso de conteúdos digitais, e os termos que cada empresa usa ao oferecer seus produtos.

Apple App Store no iPhone (Crédito: Ronaldo Gogoni/Meio Bit)

Apple App Store no iPhone (Crédito: Ronaldo Gogoni/Meio Bit)

A ação coletiva e o processo individual (cuidado, PDF), este movido por Matthew Price, se apoiam no mesmo argumento, de que a Apple usa o termo "comprar" de maneira incompatível com a terminologia que todos entendem. De certa forma, o que a maçã faz não é diferente de nenhuma outra companhia que oferece produtos e serviços, sejam físicos ou digitais, de que o usuário ao adquirir um filme, um app, um jogo ou etc, está na verdade pagando por uma licença de uso, e não pela posse do mesmo.

Os processos envolvendo a Apple se focam em dois pontos. Primeiro, os critérios arbitrários que a companhia usa para encerrar a conta de um usuário, baseando-se em seus Termos de Serviço, que são bastante vagos. Basicamente, se a empresa detectar mau uso, ou mesmo suspeitar de que o usuário infringiu alguma regra, o acesso à Apple ID pode e será revogado de forma unilateral. Nisso, todo o conteúdo adquirido e atrelado ao perfil se torna indisponível.

O que os reclamantes apontam em ambos os casos, é o fato de que a Apple não esclarece ao usuário quais foram as infrações cometidas, ou mesmo se foi um mero caso de suspeita não verificada, o que se converte em um cancelamento da Apple ID definitivo, irreversível e sem direito a apelação.

Ao mesmo tempo, a Apple se reserva no direito, segundo os Termos de Serviço, de cortar o acesso a todos os conteúdos adquiridos pelos usuários, caso a conta seja encerrada, independente de quanto os mesmos gastaram, o que não será reembolsado.

Para a Apple, "compra" não é o mesmo que compra (Crédito: Divulgação/Apple)

Para a Apple, "compra" não é o mesmo que compra (Crédito: Divulgação/Apple)

Neste caso, os reclamantes alegam que a Apple (e por tabela, outras companhias) não é clara o bastante ao esclarecer o que ela chama de "compra" de conteúdos e aplicativos, o que na verdade é uma licença de uso, que pode ser revista, alterada ou cancelada quando e como a empresa desejar. Essa falha de comunicação viabiliza ambos processos, por permitir a dupla interpretação, em que uma compra, para o usuário, significa posse permanente, uma vez que pagou pelo produto.

A Apple, por sua vez, não pensa dessa forma, o que não é surpresa. O usuário em si não é o "dono" de um filme, um app ou game, pois os direitos dos mesmos pertencem aos estúdios e desenvolvedores, dos quais a maçã, e outras companhias distribuidoras, retiram sua parte da receita bruta. O problema é que a companhia usou argumentos falhos para se defender.

Em sua resposta, a maçã disse que “nenhum consumidor razoável acreditaria” que conteúdos comprados na App Store e/ou iTunes ficariam disponíveis por tempo indeterminado em suas plataformas, ou que o usuário teria direito irrestrito a eles, mesmo após sua Apple ID ser encerrada, por motivos que a empresa não se incomoda de esclarecer.

Sob seu entendimento, o termo de "comprar" que usa não é comprar per se, o usuário é obrigado a saber que está pagando por uma licença de uso, e assim, o ato não constitui propaganda enganosa. No entanto, o juiz distrital John Mendez não comprou a desculpa da Apple, e rejeitou um pedido da empresa para dispensar os processos.

A Amazon enfrenta um processo similar, envolvendo o "acesso ilimitado" a conteúdos comprados no Prime Video, mas que podem ser removidos sem aviso aos usuários.

Posse x Licença de Uso

A discussão da posse digital x licença de uso é antiga, e não se restringe à Apple. Desde o início dos anos 2010 e a expansão das lojas de aplicativos móveis, usuários apontam para as óbvias falhas da distribuição de apps, jogos e conteúdos pela internet, em detrimento de um meio físico. De um modo geral, a distribuidora não pode entrar nas casas para apreender  filmes em DVD ou Blu-ray, ainda que os mesmos também sejam apenas concessões de uso, e não posse propriamente dita.

No caso de produções audiovisuais, oficialmente o usuário não tem autorização para realizar transmissões do mesmo em meios públicos sem as devidas licenças, e mesmo o ato de emprestar ou revender é discutido, o que se tornou um assunto controverso envolvendo os planos originais para o Xbox One.

No geral, empresas deixam claro que o usuário está adquirindo uma licença de uso, e não uma posse definitiva, em seus Termos de Serviço, como a Apple acima, e a Valve em relação ao Steam, entre outros, mas quem realmente costuma ler tais documentos?

Mesmo vendido em mídia física, MAG não existe mais (Crédito: Divulgação/Zipper Interactive/Sony Interactive Entertainment)

Mesmo vendido em mídia física, MAG não existe mais (Crédito: Divulgação/Zipper Interactive/Sony Interactive Entertainment)

Mesmo o argumento do lançamento físico x digital não se sustenta em certas ocasiões, como no caso de MAG, um FPS multiplayer apenas online e vendido em mídia física, lançado em 2010 para o PS3. Seus servidores foram desligados em janeiro de 2014, e como ele não continha modos single player offline, o título simplesmente deixou de existir. Desde então, os discos físicos de MAG se tornaram pesos de papel.

Embora um desligamento de servidores não seja exatamente uma revogação de serviços com base nos Termos de Serviço, é fato que os jogadores que compraram MAG não podem mais jogá-lo de nenhuma forma, mesmo tendo a mídia física em mãos.

Claro que há casos como o GOG, a Humble Store e outras lojas, que vendem jogos e softwares sem DRM, o que permite ao usuário baixar, salvar e usar os conteúdos como achar melhor, mas são exceções à regra.

Voltando ao caso da Apple, a empresa poderá ser obrigada a restabelecer o acesso aos conteúdos adquiridos pelos usuários, mesmo após o encerramento de suas Apple IDs em circunstâncias nunca esclarecidas, mas dificilmente isso gerará uma espécie de jurisprudência, visto que ela, e outras empresas, explicam em seus Termos de Serviço (que ninguém lê, convenhamos) que não vendem a posse de conteúdos, e sim licenças de uso, que podem ser revistas conforme os donos dos mesmos e distribuidoras desejarem.

No mais, é provável que a Apple acabe mudando a forma como usa o termo "comprar", o que pode ser seguido por outras lojas, a fim de evitar confusões do tipo.

Fonte: Ars Technica

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