Meio Bit » Arquivo » Internet » Marco Civil da Internet: conversamos com Flávia Lefèvre Guimarães, ex-integrante do conselho consultivo da ANATEL

Marco Civil da Internet: conversamos com Flávia Lefèvre Guimarães, ex-integrante do conselho consultivo da ANATEL

Conversamos com Flávia Lefèvre Guimarães, que já foi do conselho consultivo da Anatel, sobre a aprovação do projeto de Lei do Marco Civil da Internet na Câmara dos Deputados.

10 anos atrás

marco_civil_aprovado

Conversamos com sobre o Marco Civil da Internet com Flávia Lefèvre Guimarães, ex-coordenadora jurídica do IDEC e ex-membro do conselho consultivo da ANATEL de 2006 a 2009. Flávia também é integrante da diretoria de infra-estrutura de Telecom da FIESP, Mestre em processo civil pela PUC-SP e participa do Conselho Consultivo da PROTESTE, onde está desde a sua fundação em 2001. Em sua página em uma rede social, Flávia cita Pierre Lévy: “O Brasil está na vanguarda. O Marco Civil da Internet é muito bom e o melhor é que ele foi feito de forma colaborativa”.

MB: Em primeiro lugar, por qual motivo a aprovação do Marco Civil da Internet era tão importante? O que estava realmente em jogo?

Flávia: O PL 2126/2010 pretende estabelecer princípios para a convivência dos mais diversos interesses na internet. E estabelecer esses princípios e regras é fundamental. Primeiro porque a internet é um ambiente com um enorme potencial econômico, o que significa que grandes grupos tendem a se apoderar deste espaço e se não tivermos regras, o caráter público e a finalidade social das redes pode ser solapado de modo que a internet se transforme num negócio simplesmente.

Ocorre que a internet é um espaço público onde devem ser preservados os direitos fundamentais das pessoas, tais como o direito de se comunicar, de se informar, de se educar e buscar cultura e de exercer manifestações políticas. Além disso, tem papel preponderante para os estados, na medida em que os Poderes Públicos atuam em grande medida na internet como, por exemplo, na emissão de documentos, na atividade tributária, no sistema financeiro, nos sistemas previdenciários, no sistema eleitoral, entre outros.

Sem regras de convivência na internet estamos sujeitos aos interesses privados daqueles com mais força para fazer prevalecer suas posições, deixando os cidadãos em situação de extrema vulnerabilidade.

Costumo dar como exemplo a Floresta Amazônica, que é um patrimônio difuso. O que restaria da floresta se não tivéssemos o Código Florestal?

O MCI é que vai garantir que governos e empresas não se apropriem de um espaço público comprometendo a democracia e a inclusão digital. Estamos tratando de um direito fundamental reconhecido como tal pela ONU e que está na pauta de regulamentação tanto na Europa quanto nos EUA.

MB: Por que as empresas telefônicas estavam posicionadas contra a neutralidade da rede?

Flávia: Porque é a neutralidade que as impede de fatiar a internet, de colocar pedágios altos para acesso aberto e ilimitados como temos hoje, dando acesso para os mais ricos e restringindo a inclusão digital. Querem, além de vender velocidades de acesso diferenciadas, com o que podemos concordar, vender acesso limitado a aplicativos específicos, transformando a internet numa tv à cabo, que contratamos hoje por pacotes de canais. E, por trás disso, há uma questão de fundo: para que todos tenham acesso aberto à internet são necessários grandes investimentos que as empresas não podem e não querem fazer.

Por isso temos defendido que o governo cumpra a Constituição Federal e a Lei Geral de Telecomunicações e assuma o papel principal que recebeu dessas leis para promover a inclusão digital, realizando investimentos públicos em parceria com a iniciativa privada, estabelecendo metas de universalização, viabilizando que a infraestrutura que serve de suporte para o acesso à internet chegue para todos os cidadãos, inclusive os mais pobres. Só que as teles prefeririam que se estabelecesse um MCI com direitos chinfrins, do tamanho do compromisso delas com o interesse público e com a pouca disposição de realizar investimentos. Porém, na hora de definirem preços e tarifas os olhos crescem e a ANATEL faz vista grossa.

MB: Muita gente espalhou nas redes sociais a ideia de que a neutralidade da rede seria algo imposto por decreto, uma forma de censura, quando é justamente o contrário, trata-se na verdade de uma luta pelo simples direito de continuar usando a Internet de forma livre. O que você diria para estas pessoas?

Flávia: Diria para refletirem muito sobre essa afirmativa perigosa. Pensem em qual realidade estaríamos hoje se não tivéssemos uma Constituição Federal limitando a atuação de governos e de agentes públicos. O MCI vem muito mais para orientar as práticas de agentes econômicos e entes públicos na formulação de políticas para o uso da internet do que para cercear direitos. É justamente o oposto: o MCI protege a liberdade e a privacidade.

O primeiro ponto a ser esclarecido nesta discussão é quem possui atribuição legal para editar regulamentos para a aplicação das leis. E a resposta está nos arts. 84, inc. IV e 87, §1º, da Constituição Federal, que atribuem este poder privativamente ao Presidente da República e Ministros de Estado, que manifestam seus atos normativos por meio de Decretos.

Além disso, a neutralidade diz respeito à direito de acesso à internet e impede o tratamento discriminatório dos internautas por razões comerciais, políticas, religiosas, etc, temas estes que estão alçados ao patamar de políticas públicas. Ocorre que as Agências Reguladoras são meras implementadoras de políticas pré-definidas por lei ou por decretos regulamentadores.

Portanto e considerando que a neutralidade implica em questões de ordem técnica para a operação das redes, o art. 9º, do MCI necessariamente terá de ser objeto de regulamentação, o que só poderá ocorrer por meio de Decreto expedido pelo Presidente da República ou Ministro das Comunicações e, só posteriormente, de atuação da ANATEL para fazer cumprir o que ficar estabelecido, editando atos por meio dos quais exercita o poder de regulação e fiscalização e não regulamentação.

Ou seja, o texto do MCI só repete o que já está na Constituição Federal e não implica na autorização para que governos implantem o vigilantismo e o cerceamento dos direitos à livre manifestação do pensamento e à informação.

O uso que os governantes fazem de suas atribuições legais são questões de outra ordem e que não se confundem com os objetivos do MCI. Sendo assim, a Emenda Aglutinativa apresentada pelo Deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), neste mês de março, ao modificar o texto do art. 9º, para atribuir a ANATEL o papel de regulamentar sobre a neutralidade, afronta as competências estabelecidas pela Constituição Federal.

MB: Você acredita que a ANATEL funciona de forma isenta hoje em dia?

Flávia: Não. Integrei durante 3 anos o Conselho Consultivo da ANATEL representando os consumidores e acompanho as telecomunicações bem de perto desde 1998 e posso dizer que esta agência não cumpre o papel que a lei lhe atribuiu de garantir o equilíbrio entre os agentes do setor, pois suas decisões pendem sempre para os interesses dos grandes grupos econômicos deixando os consumidores brasileiros em situação de enorme desvantagem: temos os piores serviços e as tarifas mais altas do planeta.

MB: Caso a Emenda que propõe que o órgão possa regulamentar a neutralidade passe no plenário, quais são os riscos que o usuário comum está correndo?

Primeiro queria deixar claro que não podemos decidir quem vai regulamentar uma matéria com base no critério de se o órgão está ou não cooptado e sim com base no que determina a lei. Como já disse acima, o poder de regulamentar a lei é privativa do Presidente da República e dos Ministros de Estado. A ANATEL regula e fiscaliza.

Assim, no sentido de eliminar riscos acho a posição do DEM a respeito do tema a mais coerente: a lei definiria exaustivamente o princípio da neutralidade, sem deixar espaço para regulamentação seja pelo Poder Executivo seja pela ANATEL. Mas na prática essa solução é inviável, pois sempre surgirão novas questões de ordem técnica e prática ligadas à preservação da neutralidade passíveis de serem regulamentadas, já que estamos falando de setor extremamente dinâmico.

MB: Quem eram os verdadeiros inimigos do Marco Civil da Internet no Brasil, dentro e fora do Congresso? Como eles usaram a contra-informação para tentar convencer o público de que o MCI era a favor da censura ao defender a neutralidade?

Flávia: As grandes empresas e aqueles que têm medo do poder da informação e liberdade de expressão, ou seja, as forças políticas mais retrógradas do país, que associados nesse lobby desleal usam da massa ignorante para promover a contra-informação. É importante saber que o inimigo nº 1 do MCI — o Dep. Eduardo Cunha do PMDB-RJ — foi presidente da TELERJ e é financiado pelas teles. Então, não se deixem enganar por quem diz que defende a internet livre, mas está financiado por empresas que querem fazer da internet uma versão moderna das capitanias hereditárias.

MB: Para concluir, você sente uma sensação de vitória pela aprovação do projeto como está?

Flávia: Podemos dizer que o texto com as modificações feitas ficou melhor ainda. Especialmente o inc II do art. 9 mantendo a regulamentação por decreto, mas com consulta ao CGI e ANATEL, o que dará maior garantia de participação social nas definições sobre neutralidade. Quanto ao art. 15 e guarda obrigatória de dados é importante lembrar que o acesso só pode ser disponibilizado mediante ordem judicial, inclusive para autoridades policiais e Ministério Público.

MB: Muito obrigado por responder nossas perguntas. Para quem quiser conferir o texto do Marco Civil aprovado na íntegra, é só clicar aqui. Caso queira assinar o abaixo assinado pela aprovação do MCI no Senado, clique aqui.

Crédito da imagem: YouPix.

relacionados


Comentários