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Quando a Roma Antiga ajudou na pesquisa de neutrinos

Roma Antiga não é exatamente o primeiro lugar que você pensa quando o assunto é física nuclear, mas acredite, ela foi fundamental

2 anos atrás

Se você era marinheiro da frota mercante de Roma, por volta do ano 80 Antes de Cristo, há uma chance de não ter tido um bom dia. A rigor, há chance de que você tenha morrido horrivelmente em um naufrágio na costa da Sardenha, mas se serve de consolo, você ajudou a avançar a Ciência.

Navio romando usado em Ben-Hur (Crédito: Wikimedia Commons)

Não imediatamente. Seu navio ficou perdido no fundo do mar por milênios, enquanto impérios nasciam e morriam, florestas avançavam e recuavam, civilizações desapareciam, máquinas terríveis e maravilhosas passavam na superfície e no ar, ignorando sua existência.

Até que em 1988 uma expedição descobriu seu navio e sua carga que valia ouro: Toneladas e toneladas de chumbo.

Chumbo era valioso para Roma, o império tinha mil e uma utilidades para o chumbo. Ele era usado para fazer moedas, pesos para balanças, estatuetas, balas para fundas, e principalmente, encanamentos.

Canos de chumbo da Roma Antiga (Crédito: Reprodução Internet)

Claro, os romanos não sabiam que chumbo era um metal pesado (quer dizer, tecnicamente sabiam) e causava intoxicação. Eventualmente aprendemos e banimos encanamentos de chumbo. Os EUA por exemplo proibiram por Lei o uso do metal encanamentos... em 1986.

Esse chumbo do naufrágio ficou fora de circulação por 2000 anos, e não virou nada disso. Ao contrário, ele foi se modificando aos poucos, até se tornar ligeiramente diferente do resto do chumbo usado na superfície do planeta. Tudo tem a ver com... radiação.

Não que chumbo seja particularmente radioativo. Tudo na Terra é radioativo, de uma pedra de Urânio até aquela sua ex que te stalkeia no Instagram. Nós somos formados por elementos químicos, nem todos, isótopos estáveis.

Isótopos instáveis emitem radiação, na forma de partículas Alfa, Beta, Raios Gama ou neutrinos. Quando isso acontece, o átomo se transmuta em outro elemento, que pode ser instável ou não.

Aqui uma pedrinha de Urânio, emitindo partículas:

Chamamos meia-vida o tempo necessário para que, por emissões aleatórias, 50% dos átomos em uma amostra tenham se transmutado em outro elemento. Esse valor varia de isótopo para isótopo. Uránio238, por exemplo, tem uma meia-vida de 4.463 bilhões de anos, após os quais 50% terão se transformado em Tório234. Já o Tório234 tem uma meia-vida de 21 dias.

Alguns isótopos possuem meia-vida de milissegundos, rápido demais até para detectarmos em laboratório. Outros são mais tranqüilos.

Na seqüência de decaimento radioativo do Urânio238, os elementos finais são o polônio210, com meia-vida de 138,3 dias, que eventualmente se transmuta em chumbo206, um dos 119 isótopos estáveis do elemento.

Mesmo com isótopos estáveis, sempre há contaminação, é notoriamente difícil separar isótopos do mesmo elemento, e para complicar, radiação de outros elementos acabam afetando mesmo os isótopos estáveis, transmutando-os.

Isso acontece principalmente pela ação dos raios cósmicos, partículas altamente energéticas, vindas do espaço exterior, que atravessam a atmosfera e acabam acertando algum átomo na Terra. Estique seu polegar. Neste exato momento vários milhões dessas partículas estão atravessando seu dedo. Tá sentindo formigar?

Isso quer dizer que mesmo materiais estáveis, como chumbo, apresentam radiação residual, que é muito pequena, mas pode ser problemática se você está medindo partículas igualmente minúsculas, como neutrinos.

Cientistas precisam se blindar contra todo tipo de radiação, para que os neutrinos apareçam nos detectores, e o maior deles fica na Itália, 5km dentro de uma montanha. O laboratório do Instituto Nacional de Física Nuclear utiliza seu próprio Tesseract (na verdade vários), um cubo de Dióxido de Telúrio, mantido a temperaturas criogênicas.

Um cubo de Dióxido de Telúrio. (Crédito: Our Man in Italy / Amazon Prive Video)

Quando um neutrino atravessa o cubo, caso atinja algum átomo (o que é muito raro) gera um aumento de temperatura, um pentelhonésimo de micronada, mas o suficiente para ser detectado.

O problema é que mesmo dentro da montanha, o material à sua volta afeta o detector, e mesmo chumbo é ativo o suficiente para também interferir.

Aí entra o nosso naufrágio.

Os lingotes de chumbo do naufrágio. (Crédito: INFN)

O chumbo que permaneceu por dois mil anos no fundo do mar ficou protegido dos raios cósmicos, seus isótopos decaíram sem interferência, e nenhum material radioativo novo foi criado. Ele se tornou um chamado metal de baixa radiação de fundo.

O navio naufragado carregava 1000 lingotes de 33kg de chumbo, e quando a descoberta foi anunciada, os físicos ficaram de olho grande. Os arqueólogos, compreensivelmente não gostaram da idéia, o que levou a longas negociações, que só foram finalizadas em 1991.

Como os arqueólogos não tinham dinheiro para remover todos os lingotes, os físicos fizeram uma doação de US$210 mil, para financiar o projeto.

Foi acordado que os físicos poderiam então ficar com 120 lingotes, mas eles antes de derretidos terão as inscrições removidas e preservadas.

Lingotes de chumbo romanos (Crédito: Reprodução Internet)

A colaboração acabou indo além da mera troca de lingotes. Os arqueólogos estavam presos em uma discussão sobre a origem dos lingotes, alguns diziam que vinham de minas de Roma, outros que eram do exterior, pois Roma preferia preservar seus recursos locais, como estratégicos.

Os físicos analisaram a composição dos isótopos dos lingotes, e ela era compatível com chumbo das minas de Cartagena, na atual Espanha.

O chumbo está sendo usado no CUORE (Cryogenic Underground Observatory for Rare Events), no laboratório nacional de Gran Sasso, nos Apeninos. O material é fundamental para o estudo de neutrinos, e é fascinante pensar como isso tudo soaria alienígena para aqueles marinheiros de 2000 anos atrás.

Os detectored do CUORE (crédito: INFN)

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