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Star Trek: quando A Ira de Khan enfrentou A Ira dos Fãs

Nos 40 anos de Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan, confira os perrengues de produção pelos quais o 2.º filme baseado em Star Trek passou

2 anos atrás

Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan completou 40 anos em junho de 2022. O segundo filme baseado em Star Trek é hoje um clássico, considerado não apenas o melhor de toda a franquia nos cinemas, como foi responsável por reacender o interesse público, a ponto da CBS voltar a produzir uma nova série de TV, com A Nova Geração, cinco anos depois.

Embora seja indiscutivelmente o melhor filme da franquia, a produção de Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan foi um inferno (Crédito: Reprodução/Paramount)

Embora seja indiscutivelmente o melhor filme da franquia, a produção de Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan foi um inferno (Crédito: Reprodução/Paramount)

O sucesso e o reconhecimento de A Ira de Khan, no entanto, não veio de maneira fácil. As decisões de roteiro do filme (que nem era a história original) causaram conflitos dos mais diversos,  e quando este vazou, jogou os trekkers na confusão, com alguns "fãs" chegando a enviar ameaças de morte a produtores.

Star Trek fora do altar

Lançado três anos após Jornada nas Estrelas: O Filme (1979), A Ira de Khan vai em uma direção completamente diferente de seu predecessor. A aventura em que Kirk, Spock e cia. lidaram com a entidade/sonda V'Ger foi, simplificando muito, um episódio estendido da Série Clássica, seguindo os mesmos ideais de otimismo, estabelecidos uma década antes por Gene Roddenberry.

O grande problema, uma boa performance na TV não necessariamente se traduz na tela grande, e é sempre bom lembrar, Star Trek foi cancelada ao fim da 3.ª temporada, após ter sido movida para um horário "morto", às noites de sextas-feiras. O filme era complicado, com um ritmo que mesmo na época foi considerado lento, e mesmo tendo ido muito bem de bilheteria, foi um fracasso de crítica.

Claro, Roddenberry pretendia seguir a mesma linha do filme de 1979. No roteiro original da sequência que ele escreveu, a tripulação da Enterprise seria envolvida em mais um episódio estendido, desta vez com viagem no tempo, para evitar um plano dos klingons de alterar o passado da Terra, evitando o assassinato do presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy.

A Paramount precisava de alguém para culpar, e sobrou pro Gene (Crédito: arquivo internet)

A Paramount precisava de alguém para culpar, e sobrou pro Gene (Crédito: arquivo internet)

O "MacGuffin" do filme, na versão de Roddenberry, seria o Guardião da Eternidade, a entidade no centro do melhor episódio da TOS (e para muitos, o melhor de toda a franquia) The City on the Edge of Forever, que recentemente reapareceu em Star Trek: Discovery.

A resposta dos executivos da Paramount foi a pior possível: descontentes com a fraca recepção de crítica e com o custo altíssimo do primeiro filme (US$ 44 milhões, na época MUITA grana), não só o roteiro foi rejeitado, como Gene acabou "chutado" para fora da continuação. Ele acabou movido para uma posição de "consultor executivo" decorativa, no que Roddenberry não tinha mais nenhum poder de decisão.

A produção passou para as mãos de Harve Bennett, que fato curioso, nunca havia visto um episódio sequer da Série Clássica. Ele teria um orçamento muito menor à disposição (US$ 12 milhões) para fazer um filme melhor que o anterior, e para isso, seria preciso tomar algumas liberdades quanto à ideia de Roddenberry para Star Trek.

No primeiro filme, que ele considerou "chato", Bennett notou a total ausência de um vilão memorável, no que no seu entendimento, o segundo filme deveria focar na ação. Após ver uma rodada de episódios clássicos, ele encontrou em Khan Noonien Singh, o déspota super-humano do século XX que apareceu em Space Seed, o candidato ideal para antagonista da película.

Considerado "o vilão perfeito" para o filme, e posteriormente o maior antagonista da franquia Star Trek, Khan Noonien Singh (Ricardo Montalbán) ressurgiu após Gene Roddenberry ser "chutado" da produção (Crédito: Reprodução/Paramount)

Considerado "o vilão perfeito" para o filme, e posteriormente o maior antagonista da franquia Star Trek, Khan Noonien Singh (Ricardo Montalbán) ressurgiu após Gene Roddenberry ser "chutado" da produção (Crédito: Reprodução/Paramount)

Com o episódio da série terminando com Khan e seus seguidores isolados em um planeta remoto, por misericórdia (e quebra de protocolo) de James T. Kirk, era possível explorar o personagem em uma missão que o colocaria novamente em conflito com a Enterprise. Restava saber como fazer isso.

Em um primeiro rascunho, Kirk descobriria seu filho como o líder em uma rebelião em um planeta distante, com quem posteriormente se aliaria contra Khan, o verdadeiro cérebro por trás da situação. Posteriormente o roteiro mudou para o formato final, com o vilão buscando roubar uma poderosa nova arma da Federação, que originalmente se chamava "sistema Ômega". Para não tornar o filme militarista "demais", ela foi alterada para uma tecnologia de terraformagem, e renomeada para dispositivo Gênesis.

Ricardo Montalbán aceitou reinterpretar Khan por um cachê pequeno, apenas pelo prazer de voltar a Star Trek. Fato curioso, os envolvidos não se deram ao trabalho de esclarecer com o ator sobre sua disponibilidade de agenda, visto que na época, Montalbán era o protagonista da versão original da série A Ilha da Fantasia, que só chegaria ao fim em 1984. Fora isso, o ator lamentou que as limitações do roteiro (e orçamento) impediram que Khan e Kirk se encontrassem cara a cara no filme.

Problemas para todo lado

O outro problema que a Paramount tinha que lidar na época tinha nome e sobrenome: Leonard Nimoy. Naquela época, o ator estava de saco cheio de ser reconhecido apenas como Spock, tanto que sua autobiografia, publicada em 1975, se chama Eu Não Sou Spock.

O processo para trazê-lo de volta para o filme de 1979 já foi bem complicado, e Nimoy não estava nem um pouco animado para mais uma produção, até o momento que os produtores fizeram a fatídica promessa: Spock iria morrer. Só assim ele aceitou.

Leonard Nimoy só voltou para A Ira de Khan, quando lhe foi prometido que Spock iria morrer... o que gerou novos problemas (Crédito: Reprodução/Paramount)

Leonard Nimoy só voltou para A Ira de Khan, quando lhe foi prometido que Spock iria morrer... o que gerou novos problemas (Crédito: Reprodução/Paramount)

Esta não era a única alteração substancial no core de Star Trek. O filme se distanciaria da temática otimista de Roddenberry, em que os humanos do século 23 eram todos perfeitos e incorruptíveis, bons e sem falhas, livres de maldade, a fim de tratar a tripulação, especialmente Kirk (William Shatner) como um humano falho. Ou melhor, forçá-lo a lidar com seus defeitos, e o fato de estar ficando mais velho. Não por acaso, uma das primeiras cenas se passa na festa de aniversário do almirante da Frota Estelar.

Para refletir essas mudanças, a Federação se tornou menos idealista e mais militarizada; os uniformes vermelhos mais próximos dos reais da Marinha, por exemplo, são uma consequência disso, no que nem os coloridos da TOS, e nem os "pijamas" do primeiro filme, foram considerados adequados para uma abordagem menos otimista.

Embora Kirk seja impulsivo e mais belicoso, ele ainda era governado pelo ímpeto de sempre fazer o bem. Aqui, suas falhas se tornam bem mais visíveis, bem como seu impulso irracional de sempre querer vencer a todo custo, o que desta vez, ele não consegue.

Nem é preciso pensar muito de onde veio tudo isso. Quando Star Wars foi lançado em 1977, a Paramount tratou de sacar o primeiro filme de Jornada nas Estrelas como um concorrente; O Império Contra-Ataca (1980) foi um tremendo sucesso para a Fox, e havia a necessidade de ter algo semelhante como contraponto, menos "cabeça" e mais focado em ação. Logo, era preciso conflito.

Kirk é forçado a aceitar que assim como no teste do Kobayashi Maru, que abre o filme, ele se colocou em um cenário sem possibilidade de vitória, consequência de suas escolhas em vida, como deixar Khan "conquistar um planeta" ao invés de levá-lo preso, que seria o procedimento correto.

O diretor apontado para o filme, Nicholas Meyer (que imediatamente após A Ira de Khan, dirigiu o clássico O Dia Seguinte para a rede ABC), que também nunca havia assistido à série, apoiava uma versão mais real do futuro, no que tange ao comportamento humano.

Isso, claro, enfureceu Gene Roddenberry. Embora afastado, ele continuava a azucrinar a produção e fez o que pôde para fazer o projeto desandar. Ele chegou a escrever uma carta de 9 páginas para Bennett, onde insistia que o filme divergia do que ele considerava "o princípio de humanos perfeitos em um futuro otimista". Porém, a força de A Ira de Khan vem justamente de explorar as rachaduras na utopia.

Como uma apelação direta não surtiu efeito, Roddenberry teria vazado o script inicial do filme, para jogar os fãs na briga. Foi neste ponto que o público não só descobriu que Spock iria morrer, como ele bateria as botas no início do filme.

Os fãs perdem a linha

A partir daqui, as coisas ficaram realmente feias. Susan Sackett, uma associada de Roddenberry, chegou a soltar o spoiler da morte de Spock em uma convenção, em uma clara manobra para jogar o público contra o filme. A mídia embarcou no buzz e ampliou o barulho.

Gene Roddenberry se via como uma espécie de curador de Star Trek, no que todos os autores teriam que seguir as suas diretrizes para a franquia, o que a maioria odiava, por considerá-las limitadores de boas histórias. Pense assim: se ele estivesse vivo, a Seção 31, que surgiu em Deep Space Nine, nunca seria introduzida.

O que faz de A Ira de Khan um bom filme é justamente mostrar que o futuro não é tão ideal, e que humanos podem e serão falhos, mas na época da produção, boa parte do público ficou do lado de Gene e contra o filme, e as coisas saíram do controle.

Robert Sallin, um dos produtores, chegou a receber ameaças de morte, ao ponto de ser obrigado a contratar seguranças para ele e sua família.

Quando o roteiro foi vazado (dizem, pelo próprio Gene), os fãs ficaram mais os menos assim (Credito: Reprodução/Paramount) / star trek

Quando o roteiro foi vazado (dizem, pelo próprio Gene), os fãs ficaram mais os menos assim (Credito: Reprodução/Paramount)

Apesar de todos os protestos, A Ira de Khan fez US$ 97 milhões e foi um estouro, considerando que foi um filme barato, observável nas locações, quase sempre de estúdio. As pontes da Enterprise, da Reliant e a do teste do Kobayashi Maru, por exemplo, são o mesmo cenário, com arranjos diferentes.

Talvez a parte mais cara foram os efeitos, produzidos pela Industrial Light & Magic, dos visuais aos práticos, como o modelo da USS Reliant, a primeira nave a Federação de classe diferente da Enterprise a aparecer na franquia, e os vermes de Ceti Alpha V, que usaram um modelo ampliado da orelha do ator Walter Koenig, para fazer a cena de close em que a criatura sai do ouvido de Pavel Chekov.

Fato curioso, até a companhia de George Lucas entrar no projeto, o filme se chamaria The Revenge of Khan, no que foi mudado como um gesto de boa-vontade para o nome final, de modo a não ficar parecido demais com o próximo Star Wars, que até então era conhecido como The Revenge of Jedi.

No fim, salvaram-se todos em Star Trek

Com o tempo, os ânimos de todos os envolvidos mudaram, graças ao sucesso comercial de A Ira de Khan, com até Leonard Nimoy fazendo as pazes com seu legado, tendo inclusive lançado uma nova autobiografia em 1995, no que ele abordou os bastidores da série, chamada... Eu Sou Spock.

Por mais conturbada que a produção do segundo filme de Star Trek tenha sido, ele se provou crucial para mostrar pela primeira vez, que há espaço para contar histórias sobre o lado menos idílico da Federação, explorar falhas e pecados dos personagens, e as consequências de erros passados, que podem render roteiros bem interessantes. De novo, vide Deep Space Nine.

Isso não quer dizer que o otimismo é chato, nem de longe. Strange New Worlds é otimista e é sensacional, mas também sabe explorar cenários onde não há possibilidade de um final feliz, como em Lift Us Where Suffering Cannot Reach, uma história baseada no conto Aqueles Que Se Afastam de Omelas, de Ursula K. Le Guin.

Assim como em Star Wars, Star Trek tem lugar para todo o tipo de histórias, Lower Decks é uma farra em cima dos dogmas da franquia, mas no seu núcleo ainda é ditada pelo otimisto e altruísmo.

A Ira de Kahn hoje pode parecer um produto estranho, que destoa das produções anteriores e posteriores da franquia, mas foi importante para estabelecer que é possível, sim, extrair um bom filme em um futuro cheio de gente boazinha, para mostrar que toda utopia tem pés de barro.

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