Dori Prata 2 anos atrás
Os videogames sempre foram uma forma de entretenimento focada na parte visual, com as empresas chegando a se vangloriar da quantidade de polígonos que cada objeto conseguia mostrar na tela. Mesmo assim, isso não impediu que cegos tentassem se divertir com a mídia e foi pensando nessas pessoas que em meados da década de 90 nascia o Real Sound: Kaze no Regret, um dos projetos mais fantásticos da história dos jogos eletrônicos.
Fundada em 1994 por Kenji Eno, a Warp Inc. — hoje From Yellow to Orange (FYTO) — era um estúdio que aos poucos foi chamando a atenção graças aos adventures que produzia, jogos que muitos costumam classificar como “cinema interativo”. Foi de lá que surgiram jogos de suspense que fizeram um certo sucesso na época, como D e Enemy Zero, fazendo com que a desenvolvedora conquistasse alguns fãs.
Entre eles estavam pessoas que não enxergavam e que começaram a enviar cartas a Eno agradecendo pelo trabalho que ele vinha realizando. O motivo para esta admiração estava no fato de que por também ser um compositor, o game designer sempre deu muita atenção ao áudio de suas criações, com a música e os efeitos sonoros chegando a fazer parte da jogabilidade, como foi o caso do Enemy Zero. Naquele jogo tínhamos que enfrentar inimigos invisíveis, com o som feito por eles sendo a única maneira de sabermos onde estavam.
Fascinado pela ideia de pessoas que conseguiam aproveitar suas criações mesmo tendo que lidar com uma limitação tão importante, Kenji Eno começou a pensar em como ele poderia criar um jogo que pudesse ser melhor aproveitado por este tão apaixonado público. A ideia no entanto não era desenvolver algo apenas para os cegos, mas sim uma experiência que pudesse ser aproveitada por todos, conforme ele explicou em uma entrevista para o site 1Up:
“Tive a chance de visitar pessoas com deficiências visuais e aprendi que existem pessoas cegas que jogam games de ação. É claro, elas não são capazes de ter a experiência completa e elas meio que tentam se forçar a serem capazes de jogar, mas estão fazendo o esforço. Então pensei que se você desligar o monitor, também estará apenas ouvindo o jogo. Então, após terminar o jogo, você poderá ter uma conversa em pé de igualdade sobre ele com uma pessoa cega. Esta foi a inspiração por trás do Real Sound: Kaze no Regret.”
Restava saber como um projeto tão ousado seria financiado e foi aí que entrou outra jogada de mestre de Eno. Para garantir que o título fosse exclusivo do Sega Saturn, o criador pediu que a fabricante doasse mil consoles para pessoas cegas, cada um deles acompanhando uma cópia do jogo que a Warp desenvolveria. Além disso, a embalagem do game ainda contaria com algo incomum, que era uma folha de instruções impressa em braille.
Com o enredo tendo sido escrito por Takamatsu Ogawa, a história que se passava em Tóquio falava principalmente sobre amor e medo, começando com uma dublagem que dizia que “de vez em quando, quando conhece outra pessoa, você tem a sensação de que não é a primeira vez.” Essa era a deixa para acompanharmos Izumi Sakurai, uma estudante que mudava para uma nova escola e lá se aproximava de Hiroshi Nonomura. Os dois logo se apaixonam e decidem fugir, mas o plano não se concretiza e a dupla acaba perdendo contato.
Funcionando como um audiogame, durante a maior parte do tempo resta ao jogador apenas acompanhar a narração, com ele tendo que tomar uma decisão em momentos em que a história pode seguir por mais de um caminho. Nessa hora é possível ouvir um sino que avisa a pessoa que ela precisa escolher como o enredo se desenrolará.
Real Sound: Kaze no Regret chegou ao Sega Saturn em 1997 e recebeu uma versão para o Dreamcast dois anos depois, onde inclusive passou a contar com um modo visual. Porém, ele apenas adicionou algumas imagens estáticas em certos momentos da história e que nada tinham a ver com o que estava sendo contado. Mesmo assim, o jogo conseguiu criar uma complexa atmosfera apenas aproveitando as ótimas dublagens, músicas e efeitos sonoros que se encaixavam de maneira magistral.
Embora o título nunca tenha se mostrado um grande sucesso comercial, uma continuação chamada Kiri no Orgel e voltada para o terror chegou a entrar em produção, inclusive com propagandas chegando a ser publicadas em revistas japonesas, mas devido a problemas com tecnologia de compressão de áudio, ela nunca foi finalizada. Também existiam planos para um terceiro capítulo, este chamado Spy Lunch e adotando um tom cômico, mas seu desenvolvimento não passou dos estágios iniciais.
Mesmo assim, Real Sound: Kaze no Regret tornou-se o jogo para cegos mais popular de todos os tempos, chegando a ter uma das vertentes da sua história sendo transmitida através da rádio Tokyo FM em 1997.
Nascido em 1970 no município de Arakawa, Kenji Eno desde cedo mostrou um enorme interesse por duas coisas: música e games. Isso o levou a trabalhar na empresa chamada Interlink, onde esteve diretamente envolvido na criação de jogos, mas a falta de liberdade para tocar seus projetos era algo que o deixava muito incomodado. Percebendo que teria que se livrar das amarras impostas por ser um mero funcionário, em 1989 ele juntou algumas economias e fundou a EIM (Entertainment Imagination and Magnificence).
Contudo, aquele que deveria ser o salto que deveria lhe garantir autonomia não funcionou como imaginava. Para garantir que teria dinheiro para pagar as contas, ele fechou contratos para criar continuações ou spin-offs para séries famosas, mas assim, Eno precisava continuar seguindo as imposições feitas por aqueles que controlavam tais franquias.
Aquela situação acabou prejudicando muito a saúde mental de Kenji Eno, que conseguiu se dedicar ao estúdio até 1992, quando encerrou suas atividades e passou a atuar como consultor para uma revista de automóveis. O interesse por voltar a trabalhar com games só retornaria dois anos mais tarde, após o game designer visitar a Macworld. Ele então decidiu fundar a Warp, estúdio que contava com a participação de, entre outros, um jovem animador chamado Fumito Ueda.
Produzindo títulos principalmente para o 3DO, os projetos chamavam a atenção não somente por seus estilos pouco convencionais, mas também por acompanharem brindes no mínimo estranhos. Por exemplo, quem comprasse o Short Warp ganharia algumas camisinhas (?!), enquanto cada cópia do Real Sound: Kaze no Regret trazia consigo um saco cheio de sementes de erva.
Sua carreira também ficou marcada por atitudes polêmicas. Quando estava desenvolvendo o jogo D, Eno queria chocar o público e uma das maneiras de fazer isso seria incluindo uma cena de canibalismo. Sabendo que a censura não a aprovaria, ele entregou para a avaliação uma versão sem este trecho e após o título ser aprovado, trocou os discos e enviou para publicação aquilo que tinha idealizado.
Outra situação surgiu como resposta à maneira como a Sony estava menosprezando o lançamento do Enemy Zero, tendo diminuído para um terço a produção de cópias. Inicialmente o jogo seria exclusivo para o videogame da empresa, mas em 1996 Eno participou de uma conferência da Sony onde mostrou o logo do PlayStation se transformando no do Saturn. Ou seja, ele conseguiu anunciar o título para o console da Sega num evento da concorrência! Pouco depois, durante a Tokyo Game Show, Eno divulgou um vídeo onde funcionários da sua empresa dançavam e cantavam enquanto jogavam no chão pelúcias do Muumuu, mascote que a Sony havia criado para o jogo Jumping Flash!.
O problema é que fechar aquelas portas acabou não se mostrando uma estratégia acertada, com as vendas dos quatro jogos que a Warp criou para o Saturn passando longe de serem boas. Então, logo após eles lançarem o D2, o estúdio teve que fechar as portas e as empresas que Eno criou nos anos seguintes — a Superwarp e a From Yellow to Orange — nunca repetiram o sucesso dos anos de glória do game designer.
Mesmo assim, uma mente tão brilhante quanto a de Kenji Eno poderia dar vida a uma nova obra de arte a qualquer momento, mas no dia 20 de fevereiro de 2013 a indústria dos games foi abalada com a terrível notícia de que ele havia morrido. Vítima de uma insuficiência cardíaca decorrida da hipertensão, o japonês nos deixou com apenas 42 anos.
O que ficou foi a dedicação de Eno aos games, ao seu público e o respeito por aqueles que acreditaram nas suas ideias. Em certa ocasião, o game designer foi questionado sobre porque não relançava o Real Sound: Kaze no Regret, afinal muitas pessoas adoravam o game, quando ele explicou que “o contrato provavelmente não é mais válido, mas a razão para eu não ter feito nada com esse jogo é que fiz uma promessa à Sega naquela época e ele é exclusivo por causa disso.”