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Resenha: Roma de Alfonso Cuarón, ou como transformar memórias em cinema

Nesta resenha analisamos os pontos altos de Roma, a belíssima homenagem de Alfonso Cuarón a Libo Rodríguez, uma mulher essencial em sua vida

5 anos atrás

Eu já sabia que não ia ser nada fácil pra mim escrever uma resenha sobre Roma, o filme que Alfonso Cuarón criou para a Netflix, e que já está disponível no serviço, mas ainda pode ser assistido em algumas salas de cinema do Brasil.

Esse filme é uma bela homenagem a Libo Rodríguez, a mulher que trabalhava em sua casa quando Alfonso Cuarón era criança em uma família de classe média no bairro de La Roma, Cidade do México. Cuarón nada seria hoje em dia se não fosse essa mulher, e isso fica claro e transparente em cada cena de Roma, que é um filme tão poético quanto encantador.

O filme venceu o Leão de Ouro deste ano, e é um dos grandes favoritos para as premiações do ano que vem, incluindo o Oscar. Ele também já foi indicado ao Globo de Ouro nas principais categorias.

Cena de Roma de Alfonso Cuarón

O cuidado com a produção, o universo de detalhes e a grandiosidade do design desse filme é outro capítulo, assim como a busca por histórias de pessoas comuns sobre sua criação e personagens que foram tão importantes para ele quanto Libo. Sobre o filme também paira a polêmica da estreia em cinemas, que foi feita apenas alguns dias antes do lançamento na Netflix, produtora do filme.

Como eu já falei neste post sobre o espetacular design de produção do filme e o garimpo de histórias reais no que certamente vai virar um belo documentário, e também falei neste outro sobre a polêmica do lançamento no México, esta resenha é mais sobre o sentimento que o filme me despertou, além de alguns aspectos técnicos que me deixaram impressionado.

Em primeiro lugar, um disclaimer sobre esta resenha. Roma é um filme que me emocionou como poucos nos últimos anos, e também que eu acredito que o cinema precise de mais filmes como ele, repletos de humanidade, sentimento e também muita gratidão. Essa resenha se dedica principalmente a destacar o que eu senti durante a exibição do filme, e não tem maiores pretensões.

Em segundo lugar, esse filme definitivamente não é para qualquer um. Por ser algo tão pessoal, inspirado diretamente pelas memórias de Cuarón, ele também pode ser difícil para muitas pessoas. Se não funcionou para você, eu entendo. Eu adorei rever o filme e poder captar outros detalhes, algo que senti necessidade de fazer para escrever melhor esta resenha, por isso até recomendo que tente assistir com outros olhos, mas sem nenhum tipo pressão. Ninguém é obrigado a gostar de nada, nem mesmo ler este texto.

Apesar de ser aparentemente um filme bem simples, com poucas camadas, ele está bem longe disso. Cuarón não busca mostrar a visão das crianças, Roma conta as coisas do ponto de vista de Cleo (personagem inspirada em Libo), mostrando sua relação com o mundo, e sua realidade, que é muito mais complexa e sofrida do que a das crianças, que ela mesmo se esforça tanto para proteger.

Ao longo da incrível história contada por Cuarón nas duas horas e quinze minutos deste filme, existem cenas que chegam a ser dolorosas de assistir, talvez por serem reais demais, possíveis demais. Para quem cresceu nos anos 70, em um país não tão diferente do México, o filme exala verdade em cada uma de suas cenas.

Respeito a opinião de quem não conseguiu mergulhar no filme, pra citar uma das cenas mais tocantes, afinal não é fácil embarcar em um filme tão pessoal, mas para mim pelo menos, Roma foi o ponto de partida para uma jornada na direção das minhas próprias memórias de criança, e só por isso eu já seria muito grato ao cineasta.

Cena de Roma de Alfonso Cuarón

Existem filmes que aparentemente são bem simples, e que contam uma história linear, com começo, meio e fim. Roma não é um destes filmes. Apesar do roteiro se permitir a ter uma leitura mais rasa, dependendo do espectador, o que acontece em cena é muito maior, muito mais grandioso.

Mais uma vez, não estou criticando quem não tenha tido a mesma leitura que eu do filme, apenas apresentando a minha opinião e os sentimentos que ele me despertou. Não quero com este texto criticar ou muito menos desacreditar a opinião de ninguém, assim como não espero que levem a minha visão como a única possível. A graça do cinema é essa, cada um enxerga de uma forma.

Roma é um daqueles filmes nos quais o espectador pode observar só o que está acontecendo na superfície, mas se ele fizer isso, vai perder o melhor da experiência. Existe muita coisa acontecendo por trás do óbvio, basta apurar o olhar. O filme é repleto de informações e referências a cada quadro. Assim como nos melhores filmes de ação, existem muitos detalhes que são passados nos cantos da tela, e prestar atenção neles faz toda a diferença.

Segundo a Variety, não importa qual a importância do papel, todos os atores foram escolhidos a dedo pelo próprio Cuarón, que buscava na sua própria memória se a pessoa funcionaria ou não no personagem. Ele percorreu o México em uma busca incessante para encontrar a Cleo ideal, e acabou escolhendo Yalitza Aparicio, uma professora de escola de Tlaxiaco, Oaxaca, a região do México na qual Libo nasceu e foi criada.

Yalitza Aparicio como Cleo em Roma de Alfonso Cuarón

O esforço de Cuarón foi recompensado, pois a atuação dela como Cleo é sensacional, apesar de contida. Em nenhum momento a personagem soa exagerada e muito menos caricata, só pra citar as duas armadilhas mais óbvias para um papel como este. Não é todo dia que encontramos uma atriz capaz de emocionar usando apenas o seu olhar, que no caso de Cleo, é quase sempre distante.

É claro que Roma tem alguns defeitos, afinal de contas, nada é perfeito nessa vida. Li uma crítica pertinente que dizia que Cuarón deveria ter mostrado mais a vida de Cleo longe da família, o que realmente seria bem interessante, mas esse é um lado que o cineasta opta por mostrar em apenas algumas cenas. Acredito que Cuarón tenha tentado se manter fiel as suas memórias, e Libo possivelmente tenha sido mais taciturna e calada, ainda que muito carinhosa, mas a verdade é que a personagem Cleo poderia sim ter uma voz mais ativa no filme.

De qualquer forma, aposto que ela gostou da homenagem. O interessante é que indo além da sua criação, Cuarón também deve a Libo boa parte do seu amor pelo cinema, que fica tão claro nesse filme. Dentro (ou a redor) das salas de cinema mostradas no filme acontecem cenas essenciais para o andamento da história que é contada na tela. Vocês imaginem só a gratidão que essa criança sente por ela.

Em mais de uma cena, vemos crianças fantasiadas de astronautas, o que de certa forma simboliza que os sonhos de infância podem se tornar realidade, por mais improváveis que pareçam ser um dia. A influência de Marooned, filme de John Sturges que tem um trecho mostrado em Roma, acabou levando o menino que queria ser astronauta a fazer um filme sobre o espaço, e com ele ganhar os maiores prêmios da indústria de entretenimento. É por isso que este filme é tão forte, por ser tão verdadeiro.

Além de ter referências diretas ao filme Gravidade, Roma também me lembrou bastante Filhos da Esperança, principalmente nas cenas de conflitos populares, mas não só por isso. É interessante ver estes easter eggs de outras obras da carreira Cuarón sendo citadas em um filme tão intimista quanto este.

Cena de Roma de Alfonso Cuarón

A direção de fotografia é um dos pontos altos de Roma. Enquanto escrevia o seu filme mais pessoal, Alfonso Cuarón ia imaginando tudo com a visão de seu colaborador de longa data, Emmanuel Lubezki, o Chivo, e os dois chegaram a fazer juntos a preparação do novo filme, mas na hora de começar a gravar, ele não tinha mais agenda disponível.

Lubezki não deve ter mesmo muito tempo livre, afinal depois de ter ganhado seu primeiro Oscar de direção de fotografia em 2014 com Gravidade (ele já tinha sido indicado 5 vezes) ao lado de Cuarón, ele ganhou mais dois Oscars por Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) e O Regresso, em uma parceria com o diretor Alejandro Iñarritu.

Chivo então sugeriu e insistiu para que Cuarón vestisse ele próprio o chapéu de diretor de fotografia, e o resultado final é primoroso. Não só pela sua carreira mas também pela sua sugestão ao seu amigo, podemos dizer que Chivo é um homem de visão. Para auxiliá-lo na tarefa, Cuarón convocou Galo Olivares, que foi operador de câmera e colaborador de fotografia em Roma, e nas palavras do diretor também é um ótimo diretor de fotografia, apesar de não ter exercido esta função no filme.

Cena de Roma de Alfonso Cuarón

A câmera digital escolhida foi uma ARRI Alexa 65 de grande formato, com o objetivo declarado de fugir da estética clássica dos filmes antigos em preto e branco. O visual em preto e branco não é saudosista. Ele é nitidamente digital (sem trocadilhos), e não lembra em nada o preto e branco de filmes antigos.

Nas palavras do cineasta: "Eu não queria que fosse um preto e branco vintage — um preto e branco que parecesse ter sido feito nos anos 60 ou 50. Eu queria um preto e branco digital que abraçasse, e não tentasse esconder sua qualidade digital, com uma resolução incrível, HDR e definição impressionantes."

No podcast Behind the Screen do The Hollywood Reporter, em uma conversa com Carolyn Giardina (depois de assistir ao filme, clique aqui essa escutar conversa, o papo realmente foi ótimo), Cuarón disse que a maior parte das cenas de Roma foi filmada usando a técnica de rotoscopia, para que Cuarón tivesse a oportunidade de recriar quadro por quadro, se fosse preciso.

Além da produção, roteiro, direção e da fotografia, Cuarón é o responsável pela edição, como aliás acontece em praticamente todos os seus filmes. Em Roma, Cuarón fez o trabalho em parceria com Adam Gough, que já tinha trabalhado como estagiário de edição com ele em Filhos da Esperança.

Durante as filmagens, o diretor não deu sossego ao elenco e equipe enquanto não conseguia captar os sentimentos que estavam no seu roteiro. Uma cena de 4 minutos com Cleo e a família dentro de casa teve 64 tomadas. O cineasta e Gough foram montando o filme em blocos enquanto ele ia sendo gravado. Cuarón chegou a usar trechos de algumas tomadas usando a rotoscopia, e assim aproveitar as melhores partes quando entendia que a atuação dos atores ou quem sabe a iluminação teria ficado melhor em outro take.

Uma coisa bem diferente deste filme é que os atores não tinham acesso ao roteiro para ler inteiro, e assim não sabiam essencialmente o que iria acontecer no resto do filme. A cada dia eles iam descobrindo o que teriam que fazer na hora de gravar, em mais uma curiosa etapa do processo complexo criado por Cuarón para tentar traduzir suas memórias.

É bom deixar claro que o roteiro de Roma foi escrito e segundo seu autor, é bem complexo, mas muito mais que os diálogos, ele traz o grande universo de detalhes da produção, as músicas a serem usadas, e o clima de cada cena ou locação, além dos sentimentos que o cineasta queria passar.

Cena de Roma, de Alfonso Cuáron

Quando chega a cena da praia, pra mim uma das mais fortes que vi este ano no cinema, o espectador já está tão envolvido com a história de Cleo, ou melhor, de Libo, que ela chega a ganhar ares de super-heroína. A cena em si foi extremamente complexa, pois Cuarón queria que tudo acontecesse no mesmo plano, apesar da gravação ter sido feita em diferentes momentos do dia.

As crianças foram filmadas em ângulos diferentes, e esse processo levou várias horas, assim toda a cena precisou ser ajustada quadro a quadro para equilibrar as diferentes condições de luz ao longo do dia. Para aumentar a dramaticidade da cena, o nível do mar também foi elevado com efeitos especiais. Analisando somente esta cena, dá pra entender por qual motivo os efeitos e a pós-produção de Roma custaram uma boa fatia do seu orçamento de US$ 15 milhões.

Indo além dos impressionantes detalhes técnicos, o que mais impressiona nesta cena, e ao longo do filme todo, é a incrível humanidade da personagem principal, que não se importa de arriscar tudo que tem na vida por aquela família que ela tanto ama.

O que é mostrado na tela é uma visão mágica, mas também muito real do México no começo dos anos 70. Eu me identifico desde sempre com o olhar de Alfonso Cuarón, por isso sou até suspeito para falar, mas pra mim este filme é uma verdadeira obra de arte, uma preciosidade para ser guardada para a posteridade.

Como ele é uma produção original, não existe risco de ser retirado do catálogo da Netflix, assim ele ficará para sempre ali, para ser visto e revisto por todos os amantes do cinema. Aproveito para agradecer pessoalmente a Netflix por esta bela produção, e dizer que fico na torcida para que eles invistam mais em filmes de arte como Roma.

Uma mulher tão incrível quanto ela deve ter sido realmente merecia uma homenagem tão poderosa quanto Roma. Essa não foi a primeira homenagem de Cuarón a Libo Rodríguez, que participou como atriz de E Sua Mãe Também, último filme que Cuarón tinha dirigido no México, e que conta uma outra história bem pessoal de Alfonso e seu irmão Carlos Cuarón, que também assina o roteiro.

Peço desculpas pelo tamanho desta resenha, mas é difícil não me empolgar falando sobre algo que eu gostei tanto. Certamente as palavras fluem bem mais ao tentar descrever o que senti em o que é essencialmente é um filme sobre memórias do que ao falar sobre o último trailer do blockbuster do próximo verão.

Com esse filme, o objetivo de Cuarón não foi ser nostálgico, e sim respeitoso com seu passado. Em uma entrevista a Variety, ele explica o que o levou a criar Roma: “eu acredito que realmente queria entender, montar as peças. Jorge Luis Borges fala sobre como a memória é um espelho opaco e quebrado, mas eu vejo mais como uma rachadura na parede. A rachadura é qualquer dor que tenha acontecido no passado. A gente tende a colocar várias camadas de tinta sobre ela, tentando cobrir a rachadura. Mas ela ainda está lá.”

Ao invés de cobrir a sua rachadura do seu passado, Cuarón resolveu compartilhá-la com o mundo, não deve ter sido fácil encarar todos esses fantasmas. Ë de se admirar a coragem do cineasta ao abrir esta caixa de Pandora. Muitas vezes as memórias se perdem, e voam para longe, como grãos de areia no vento. Fico feliz de ver que Alfonso Cuarón preservou as suas melhores memórias com Libo para a posteridade, pois essa é uma história que realmente merecia ser contada, até por todos os sacrifícios que Libo fez por ele.

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