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Videogames, tiroteios, e de quem é (e não é) a culpa

Parentes das vítimas do tiroteio em Uvalde processam a Activision, em que videogames como Call of Duty aliciariam criminosos em potencial

28/05/2024 às 12:03

Mais uma vez, videogames voltam a ser o centro das discussões, como o bode expiatório para a violência e catalisador de crimes. Um dos mais recentes casos foi o tiroteio de 2022 na Robb Elementary School, na cidade de Uvalde, Texas, em que Salvador Ramos, na época um ex-aluno da escola de 18 anos, invadiu e matou a tiros 19 alunos e dois professores, e feriu 17 outros, antes de ser morto pela polícia.

O "culpado"? A série Call of Duty, que Ramos teria jogado usando o mesmo tipo de arma que adquiriu para realizar o ataque, um fuzil estilo AR-15.

Segundo a acusação, atirador de Uvalde escolheu arma usada no ataque, usando Call of Duty: Modern Warfare (2019) como referência (Crédito: Divulgação/Infinity Ward/Activision)

Segundo a acusação, atirador de Uvalde escolheu arma usada no ataque, usando Call of Duty: Modern Warfare (2019) como referência (Crédito: Divulgação/Infinity Ward/Activision)

Corta para 2024: parentes das vítimas do ataque abriram um processo contra a Activision, distribuidora do game, a Microsoft, a companhia matriz, o Meta, e a fabricante de armas Daniel Defense, acusando as primeiras de promoverem a arma no game e no Instagram, e a última por fabricar e vender o fuzil.

Videogames e violência... de novo

Como já discutimos várias e várias vezes, os videogames apenas são a mídia da vez usada como alvo preferencial, a ser atribuída como a fonte de todo o mal que existe no mundo. Antes deles foram o RPG, a TV, o Rock 'n Roll, os quadrinhos, o rádio, o cinema, as Penny Dreadfuls, publicações baratas com histórias de crime, populares na Inglaterra vitoriana...

Paralelamente aos games, a mídia, políticos e defensores dos "bons costumes" vira e mexe também batem em jogos de cartas que os jovens gostam, como Magic: The Gathering, Yu-Gi-Oh! (que foi alvo de uma perseguição pesada no Brasil), e até Pokémon, desenhos animados (animes preferencialmente), mangás e quadrinhos (esses nunca se safaram por completo), e por aí vai.

Ninguém quer buscar soluções difíceis para problemas complexos, como combater a falta de segurança, ou agir para coibir a entrada das pessoas no crime, melhorando a qualidade de vida de todos, isso dá trabalho e é caro, é muito mais fácil mostrar que está fazendo algo sem fazer nada, pondo a culpa nos outros.

Focando nos videogames, a desculpa de que a evolução da mídia banalizou o crime e a violência, tornando o público insensível também é furada, o mesmo pode ser dito de filmes e séries, cada vez mais gráficos e explícitos, sem contar o óbvio: a imensa maioria dos gamers não se converte em psicopatas, tampouco em encanadores (ou pisoteadores de tartarugas) porque jogaram Mario, ou arquitetos por serem fãs de SimCity.

No entanto, a correlação espúria "videogames incitam a violência" persiste. No caso do atirador de Uvalde, Salvador Rolando Ramos, ele teria jogado Call of Duty: Modern Warfare usando o mesmo tipo de arma que adquiriu para executar o ataque, o que foi entendido pela ala anti-games como uma "prova" da responsabilidade do título da Treyarch.

Porém, o mais novo processo não parou no game.

Processo acusa a série Call of Duty de ser "o maior anunciante" de armas de fogo (Crédito: Reprodução/Treyarch/Activision)

Processo acusa a série Call of Duty de ser "o maior anunciante" de armas de fogo (Crédito: Reprodução/Treyarch/Activision)

O processo (cuidado, PDF), aberto nos estados do Texas e da Califórnia, acusa diretamente a Activision, como distribuidora de Call of Duty: Modern Warfare, e o Instagram, de agirem como aliciadores para potenciais criminosos, o primeiro como "o maior anunciante" de armas de fogo da atualidade, ao introduzir nos games da franquia representações fieis das reais; já a rede social teria veiculado inúmeros anúncios direcionados da Daniel Defense, a fabricante do fuzil, a Ramos, que teriam o influenciado a comprá-lo.

O documento inclui uma captura de um anúncio, exibindo um AR-15 ou similar montado na traseira de uma caminhonete, com a chamada de texto "não seja uma vítima". Microsoft e Meta, as respectivas companhias matrizes, também foram incluídas no processo, bem como a Daniel Defense, por usar a plataforma do Instagram para promover seus produtos, fabricar e vender a arma usada no ataque.

O que o processo não aponta, foi a completa incompetência da polícia de Uvalde em lidar com o caso, que o Departamento de Justiça dos Estados Unidos classificou como "um fracasso inimaginável" e "uma sequência de erros em liderança, tomadas de decisão, táticas, policiamento e treinamento", atribuídas como as causas do número alto de casualidades, que poderiam ter sido evitadas se Ramos tivesse sido neutralizado mais rápido. Quase todos os policiais envolvidos na ação foram demitidos, ou forçados a se aposentarem.

As reações quanto ao processo foram as esperadas. Em nota, a Activision disse que o atentado foi "horrendo e devastador", e que a companhia "expressa seus sentimentos aos familiares das vítimas e à comunidade" de Uvalde, mas completa apontando para o óbvio ululante, "milhões de pessoas ao redor do mundo jogam videogames, e elas não cometem atos horríveis".

Já a Associação dos Softwares de Entretenimento (ESA), entidade que representa as desenvolvedoras e distribuidoras de games nos EUA, foi bem menos polida, e disse que o processo "não tem fundamento algum". Usando uma analogia meio besta, seria o equivalente a processar a Ana Maria Braga por usar uma faca em seu programa, a Rede Globo por exibir a atração, a Tramontina por fabricá-la, o Google por veicular anúncios e links de compra, e a Amazon por vendê-la, tudo porque a mesma faca foi usada em um crime.

Essa histeria em torno dos games como a causa de todos os males sempre volta a cada nova tragédia envolvendo ataques com múltiplas vítimas, principalmente em escolas, e não necessariamente envolvem armas de fogo. Nos anos 2000, o folclórico ex-advogado Jack Thompson se tornou infame por sua cruzada contra a mídia, em especial a franquia Grand Theft Auto, que ele tentou várias vezes relacionar às ocorrências, mesmo as mais deslocadas.

Como resultado, Thompson teve sua licença cassada em 2008, por isso qual não foi minha surpresa ao descobrir que ele, hoje um ativista, defende o uso de videogames como ferramenta educacional, embora ainda acredite que jogos violentos influenciam o público, e que se tivesse a oportunidade, faria de novo tudo o que fez.

Jack Thompson, de detrator a defensor (!) dos videogames (Crédito: Jack Thompson/acervo pessoal)

Jack Thompson, de detrator a defensor (!) dos videogames (Crédito: Jack Thompson/acervo pessoal)

No mais, fica a nota que mesmo aqueles que costumavam vilanizar os videogames podem ver usos positivos da mídia, mesmo mantendo suas convicções anteriores. É bem provável que Thompson hoje estaria defendendo nos tribunais um ban de Call of Duty, devido ao ataque em Uvalde.

Quanto ao processo movido contra Activision e cia., embora eu entenda a dor e sofrimento dos familiares das vítimas, culpar a ferramenta ou quem a criou não resolve o problema. Se há alguém responsável nesse caso a ser punido, são os policiais que deixaram Ramos tocar o terror por tempo demais, antes dele ser neutralizado.

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