Ronaldo Gogoni 2 anos atrás
Ludwig van Beethoven (1770-1827) é considerado um dos maiores compositores da história da música ocidental. Suas obras figuram entre as mais executadas e referenciadas da música clássica e fora dela, e seu legado influenciou inúmeros músicos nos séculos seguintes. Em 1817, a Sociedade Filarmônica Real de Londres comissionou duas composições, que viriam ser suas 9ª e a 10ª Sinfonias.
Enquanto a magistral 9ª foi concluída entre 1822 e 1824, Beethoven não deixou mais do que anotações esparsas da 10ª, devido sua saúde debilitada e por já estar quase que completamente surdo, vindo a falecer aos 56 anos. A obra permanece inacabada, mas graças à Inteligência Artificial, podemos ter uma ideia de como a Sinfonia poderia ter sido.
Busto de Beethoven do escultor alemão Hugo Hagen (1818-1871), baseado na máscara mortuária do compositor. Acervo da Biblioteca do Congresso dos EUA (Crédito: W. J. Baker/Library of Congress)
O esforço de apresentar uma versão completa do que poderia ser a Sinfonia No. 10 em Mi bemol maior foi conduzido como parte das comemorações dos 250 anos do nascimento de Beethoven. O assunto rendeu inúmeros estudos, tratados e discussões ao longo dos anos, e divide opiniões de historiadores musicais, quanto a como seria conduzido o processo criativo do compositor acerca dessa obra em particular.
A bem da verdade, ninguém nunca saberá o que se passava pela cabeça de Beethoven enquanto ele tentava compor a 10ª Sinfonia, mas isso não impediu outros de tentarem apresentar resultados com base nos esparsos rascunhos deixados para trás. Em 1980, o musicólogo Barry Cooper, que é organizador do acervo do músico alemão e um dos maiores especialistas em sua obra, apresentou o que poderia ser o Primeiro Movimento, tendo se baseado nas anotações e preenchendo possíveis lacunas.
No entanto, apresentar uma versão completa da 10ª Sinfonia é algo absolutamente impossível, por Beethoven não estar mais por aqui. No entanto, o uso de IAs e sistemas especialistas vem sendo aplicado nesse sentido há algum tempo, para prover possíveis versões de composições se baseando no estilo de músicos do passado.
No início de 2019, o Instituto Karajan da Áustria, responsável por promover esforços de tecnologia e inovação envolvendo música, reuniu uma equipe composta de profissionais de ponta na área: Dr. Ahmed Elgammal, professor e diretor do Laboratório de Arte e IA da Universidade Rutgers, Walter Werzowa, compositor australiano criador do jingle da Intel, Dr. Mark Gotham, especialista em música e computação da Universidade de Cornell, e Dr. Robert Levin, professor e musicólogo de Harvard.
Esse time foi incumbido de desenvolver uma IA que fosse capaz de assimilar a obra de Beethoven, identificar o estilo usado pelo compositor nos rascunhos da 10ª Sinfonia, mastigar tudo e entregar uma versão completa da composição, que se aproximasse ao máximo do que poderia ser considerado uma obra legítima, criada pelo alemão.
Página das notas deixadas por Beethoven para a 10ª Sinfonia (Crédito: Reprodução/Beethoven House Museum)
O time responsável pela obra teve que separar o trabalho em etapas. Primeiro, era preciso traduzir os rascunhos de Beethoven e identificar onde cada parte se encaixaria, distinguir fragmentos, como uma fuga ou um scherzo, e colocar tudo em ordem, de acordo com o conhecido processo criativo do compositor.
A seguir, o trabalho de IA a cargo do prof. Elgammal seria desenvolver um sistema que pudesse entender como Beethoven compunha. Por exemplo, a Sinfonia No. 9 em ré menor, op. 125, Coral, foi construída em torno dos famosos quatro acordes introdutórios. O sistema especialista deveria ser capaz de fazer o mesmo, pegar trechos curtos e "esticá-los" em passagens completas.
A IA também teria que entender como Beethoven fazia a transição entre scherzos, trios e fugas, ou seja, se mostrar capaz de compor uma coda, a seção que finaliza uma passagem e introduz a próxima, no estilo do autor original. Por fim, o software teria que juntar todas as composições e orquestra-las de forma coesa, determinando quais instrumentos seriam usados e em que momentos.
Resumindo, programar uma IA desse nível é um trabalho de corno inacreditável, tanto que o projeto consumiu dois anos. Ela foi alimentada com inúmeras composições de Beethoven, de modo a entender e assimilar seu processo criativo e estilo, para só então, com base nos rascunhos, completar a 10ª Sinfonia.
Os primeiros resultados, apresentados em novembro de 2019 a um time de especialistas, já haviam se mostrado promissores. Ao ouvirem trechos no piano, eles não sabiam dizer quais partes vinham dos rascunhos de Beethoven, e quais haviam sido criados pela IA. Alguns dias depois, uma apresentação com um quarteto de cordas teve resultados similares, e apenas profissionais inteirados dos fragmentos originais souberam identificar corretamente quem compôs o quê.
Após 20 meses, o time conseguiu fazer com que a IA compusesse dois movimentos completos, com cerca de 20 minutos de duração. Você pode ouvir um trecho a seguir:
A primeira apresentação pública da 10ª Sinfonia de Beethoven/IA será realizada no dia 9 de outubro de 2021, em Bonn, Alemanha, cidade-natal do músico.
Claro que o caso levanta uma série de implicações e discussões. Há desde a discussão se a IA deveria ser usada nesse sentido, de completar obras inacabadas de músicos, pintores e arquitetos, considerando que elas têm maior valor ao serem mantidas no estado em que foram deixadas por seus criadores.
Outros defendem, com um quê de razão, que sistemas especialistas e softwares não são capazes de criar nada original, por não terem senso de criatividade próprio. De fato, IAs precisam ser alimentadas com dados nos quais se baseiam para inferirem o que pode ser uma possível criação, tendo criações passadas como uma referência.
Só que usando aquela excelente alfinetada do fraco filme Eu, Robô, a maioria dos humanos também não são capazes de comporem algo como uma sinfonia de Beethoven, ou pintar um quadro no nível de Leonardo da Vinci e Vincent Van Gogh. Mesmo sendo chutes e adivinhações, uma IA ainda sai na frente do afegão médio.
Podemos até argumentar que uma IA não é nada sem os humanos que a programam, mas sendo estritamente crítico, nenhum dos envolvidos no projeto se chama Ludwig van Beethoven, e o experimento não é nada mais do que isso: uma elucubração sobre o que poderia vir a ser a 10ª Sinfonia, e não um atestado talhado na pedra (ou em software) de sua autenticidade.
No mais, o projeto da 10ª Sinfonia demonstra que seja na arte, seja na medicina, IAs e softwares estão se tornando cada vez mais especializados, o que poderá ser benéfico para todos no fim das contas.
Fonte: The Conversation