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Sonho de Anti-Ícaro

Titã é a maior lua de Saturno. Além da vista ela tem várias características únicas incríveis. Talvez a maior delas seja tão incrível que rendeu mais que um artigo, virou um conto de ficção científica, pois de outra forma seria inacreditável. Divirta-se.

7 anos atrás

titan

Hoje não é o meu dia.

Ok, isso é meio óbvio, se você levar em conta que estou caindo em direção a Titã, minha fiel cápsula se desfazendo em plasma, enfrentando uma atmosfera 1,4 vez mais densa que a da Terra. Retrofoguetes? Já eram. Suporte de vida? Zero. O minúsculo reator nuclear que alimenta a Dorothy (não pergunte)? Está perfeito exceto por um buraco no meio feito por um dos meteoritos.

Era para ser um dia comum, talvez no século XXII trabalhar em Titã fosse manchete, mas em 2234 é rotina. Meu trabalho é dar manutenção na rede de satélites de comunicação que mantém a Terra em contato com a Lua mais inflamável do sistema solar.

É sério, literalmente chove gasolina por aqui. Ok, na verdade pouco, chove mais acetileno e metano. Nossa base fica às margens de um lago de metano. Titã é um paraíso e um pesadelo para árabes e seus poços de petróleo e hippies e seus biodigestores.

Mas eu divago. Se esse fosse meu último registro eu pensaria em algo mais nobre, mas agora sei que não vou morrer. Alguns minutos atrás, tinha certeza. Não houve qualquer aviso quando uma revoada de fragmentos de alguma colisão ancestral de asteróides estilhaçaram o satélite. Uma hora ele estava ali, debaixo da minha aparafusadeira, no instante seguinte, nada, só uma nuvem de fragmentos.

Por sorte minha conexão era somente à minha cápsula, coisa que percebi quando senti um puxão no cabo de segurança. Dorothy girava sem controle, o que não era possível. As redundâncias das redundâncias tinham redundâncias.

Chegando perto me lembrei de um velho filme enquanto usava os jatos de manobra do traje para igualar a rotação e segurar na escotilha. Titã girava e eu comecei a ficar com visão de túnel. Agradeci mentalmente aos professores que me fizeram ver os documentários sobre Neil Armstrong e como ele passou pelo exato mesmo problema com a Agena.

titan1

O sistema de navegação estava fora do ar, a energia só nas baterias, alarmes ressoavam no meu capacete e por um momento achei que estava sendo alvejado por aliens: feixes de luz muito intensa preenchiam o interior da cabine. Era o Sol distante entrando por buracos no casco. Buracos em uma nave espacial. Não é preciso ter diploma em engenharia espacial para saber que isso não é bom, e eu tenho. Vários.

Acionei o sistema de navegação manual, algo controverso e não usado em mais de cem anos, mas que os projetistas se recusam a remover das naves. Benditos projetistas. Usei o manche para ativar os jatos de metano pressurizado com hélio e reverti a rotação da nave. Próximo passo, danos.

Depois de alguns minutos mudei minha estratégia e passei a lista somente os sistemas em funcionamento. Não havia muita coisa. Comunicações, só o rádio do traje, de curto alcance. Navegação, como eu disse, já era. Retropropulsores, foram pro espaço, literalmente. Dois dos quatro motores laterais não estavam mais lá. Jatos de manobra ainda funcionavam. E havia o problema da radiação.

A região em volta de Saturno não é muito hospitaleira, a radiação é imensamente maior que a que temos na superfície da Terra, por isso nossas naves são bem protegidas. O problema é que meu fiel reator nuclear, que nunca deu defeito agora estava, como eu disse, com um buraco no meio. Eu tinha menos de 10 minutos para resolver isso, ou morreria de envenenamento por radiação em um ambiente protegido da terceira maior fonte de radiação do Sistema Solar. E não, SilverTape não resolve. É uma das poucas coisas além das capacidades desse objeto mágico.

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Eu tinha que voltar e rápido. Precisava de idéias. A primeira e mais desagradável foi admitir que meus colegas em Titã são muito mais inteligentes do que eu (ao menos coletivamente, mas eu jamais admitiria isso para eles) e poderiam pensar em algo. Eles tinham toda a telemetria até a falha das comunicações.

Puxando alguns cabos conectei o rádio do traje na antena principal, apontei para onde deveria estar o satélite geo, digo titanestacionário mais próximo e sintonizei. Não deu 100% certo, minha velocidade gerava um efeito Doppler considerável, o mesmo problema que quase fez com que fracassasse o pouso da Huygens em 2005. Ou 2050? Nunca lembro.

Consegui captar frases soltas no meio da estática. Eles tentavam me alertar dos problemas que eu já sabia. Vamos lá, caras, eu quero sugestões.

bzzzz**** radiação ****BZZZzzzttt**** reentrada periapse iminen*** bzzzzz velocidade terminal

BINGO!

Titã é um lugar único com características únicas como você encher o tanque do carro com metano que cai do céu e ter que pagar pelo oxigênio (mentira, todos os carros são elétricos, somente um dos engenheiros construiu por conta própria uma moto off-road com motor de combustão. Lisa, aquela louca).

Uma das características únicas é que Titã é grande mas é fofo. Sua massa é de 1,8 vez a da Lua, mas como sua densidade é pequena, a gravidade superficial é só de 0,8 da Lua da Terra. Mas esse não é o ponto.

O ponto é que Titã tem atmosfera, muita atmosfera. Quase tudo nitrogênio, algum metano, hidrogênio pra dar liga e algumas impurezas. E essa atmosfera é densa, 1,45× mais densa que a da Terra. E isso vai salvar minha vida.

Usei meu computador de pulso para calcular a manobra de desaceleração com os propulsores de manobra. Não é preciso muito, Titã tem uma velocidade de escape de 2,6 km/s, na Terra são 11, minha órbita era bem mais lenta que isso. Sequer esgotei os tanques para começar a cair de vez em direção ao solo.

Neste momento feixes de plasma e pedaços do escudo térmico passam pelas escotilhas, já diminuindo, bem mais rápido que na mesma manobra na Terra. Em pouco tempo acionarei os ferrolhos explosivos (obrigado, Apollo I, descansem em paz) e me lançarei aos céus alaranjados, esperando que minha obra-prima de última hora funcione.

Eu explico o motivo desse aparente suicídio: se eu ficar tempo demais dentro da cápsula nem os excelentes médicos da base conseguirão evitar que até os cânceres que desenvolverei nos próximos minutos peguem câncer. A matemática não fecha, eu preciso sair antes. E não tenho paraquedas: os engenheiros conceberam que paraquedas em cápsulas são redundância DEMAIS.

O segredo aqui se chama Velocidade Terminal. Um sujeito chamado Galileu demonstrou dramaticamente que objetos caem com a mesma velocidade independente de sua massa, o que é lindo mas é falso. Isso só acontece na ausência de atmosfera, do contrário a aceleração constante da gravidade é contrabalançada com o aumento de forças aerodinâmicas. Por isso uma folha solta do alto de um prédio não cai na mesma velocidade que um leitão, mas não faça esse experimento, é crueldade e você não tem idéia de quanto nós pagaríamos por uma fatia de bacon em Titã.

Velocidade Terminal de um objeto é calculada como a raiz quadrada de duas vezes a massa multiplicada pela aceleração gravitacional, dividido pela densidade do fluido, multiplicada pela área do objeto e o coeficiente de arrasto e… — coisas diferentes caem em velocidades diferentes quando não estão no vácuo, entendeu?

Na Terra a menos que você seja uma bomba aerodinâmica, dificilmente chegará ao chão a mais de 280 km/h. Não é um grande consolo, muito maior é a mancha vermelha que deixará na paisagem. Mas Titã é diferente.

Temos menos gravidade e mais atmosfera. Estou caindo em uma tigela de melaço. Conferindo pela centésima vez as contas do computador, minha velocidade terminal será de 6,8 m/s ou 24 km/h.

Paraquedistas mimados acham 4,6 m/s muito rápido, mas paraquedistas de combate com equipamento completo chegam a pousar a 8 m/s. 6,8 vai doer mas eu aguento. Isso, claro, é a pior das hipóteses.

Dorothy treme ao meu redor, os alarmes silenciados, só o vento me lembrando que estou caindo. À minha volta um monte de retalhos do isolamento térmico da cabine, metros e metros de Mylar Wylar, Mixlar ou outro daqueles tecidos sintéticos que leigos acham que é ouro mas custa muito mais caro. Passei os últimos minutos cortando esses pedaços e os prendendo a meu traje. Para isso a mágica SilverTape serve.

Valeu, garota. Obrigado me despeço de Dorothy enquanto ejeto a escotilha e me lanço no vazio. Estou a uns 3.000 metros de altitude. Estendo meus braços e pernas, e meu wingsuit improvisado funciona perfeitamente. Dorothy cai como uma pedra, se afastando de mim e levando para longe seu mortal coração radiativo partido. Hell hath no Fury, já dizia Shakespeare.

Minha reserva de oxigênio é ampla, baterias carregadas (obrigado de novo, Dorothy) e o rádio do traje começa a pegar sinais de telemetria. Estou a um quarto de planeta de distância da Base, mas meus colegas nunca estiveram longe. Uma luz no poente chama minha atenção. É um de nossos helicópteros, com suas pás ridiculamente curtas e estrutura ridiculamente frágil, ambos perfeitamente adequados para Titã. Quando será que a estética irá se sobrepor à funcionalidade?

Eu estou caindo com estilo, mais lentamente que em todos os poucos saltos que fiz na Terra, minha maior dúvida é se mirarei em terra ou na água, digo, metano. Decido que em terra é mais calmo para o sistema de suporte de vida do traje. Sorrio ao perceber que um natural e instintivo movimento de corpo me direcionou para a praia. Talvez hoje não seja um dia tão ruim assim.

“Cápsula 4, aqui é Resgate 1, estamos a 4 minutos de sua posição, temos você em nossas câmeras, qual seu status, câmbio?”

Reconheci imediatamente a voz de Lisa, minha amiga e adversária amigável em quase tudo. Estiquei um dos braços, coloquei o outro para trás, meu corpo girou 360 graus, quase tão lentamente quanto os 15 km/h que eu estava caindo.

“Todos os sistemas nominais, vou pousar na praia imediatamente ao norte, próximo ao grande bloco de gelo. E pode me chamar de Supergirl!”

“Valentina, você é insuportável!”

NOTA: todas as informações técnicas são reais, inclusive a velocidade terminal de Titã. Se você sobreviver à reentrada, atingirá o chão a 24 km/h. SEM PARAQUEDAS.

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