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O estranho caso da mulher que conseguia escrever, mas não podia ler

Um acidente vascular cerebral recente deixou uma mulher de 40 anos de idade com alguns sintomas incomuns.

10 anos atrás

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Não, o seu médico não tem esse problema.

Podia ser apenas mais um caso como o meu, que preciso praticamente usar carbono 14 pra decifrar meus próprios hieroglifos, mas esse caso é muito mais interessante: uma bela manhã, a professora MP (ela teve seu nome verdadeiro preservado no estudo) foi fazer a chamada da sua turma quando se deu conta de que não conseguia ler o diário que estava a sua frente. Ela então tentou ler o livro que usaria naquela manhã, mas só o que conseguiu ver foram símbolos ininteligíveis.

Ela não sabia ainda, mas tinha sofrido um AVC (Acidente Vascular Cerebral), que atingiu uma parte muito específica do seu cérebro, deixando-a com esses sintomas nada usuais, mas completamente funcional em todas as outras áreas. O estudo do caso desta mulher de quarenta anos é um olhar fascinante para o que o cérebro é capaz de fazer.

O AVC que MP sofreu interrompeu a conexão entre a “zona da linguagem” e o córtex visual do seu cérebro, enquanto outras conexões sensoriais continuaram conectadas àquela mesma zona. Os resultados disso são bem estranhos, por assim dizer: ela não consegue ler, mas ainda consegue escrever e entende perfeitamente o inglês falado, no que os médicos chamam de “cegueira para palavras”. Outra coisa interessante é que ela ainda tem reações emocionais quando vê as palavras escritas, mesmo sem reconhecê-las:

Por exemplo, quando lhe mostraram a palavra “sobremesa” por escrito, MP exclamou: “Oooh, eu gosto disso!”. Quando momentos depois mostraram a palavra “aspargos” sua resposta foi bem diferente. “Eu não gosto dessa palavra, algo nela me perturba”, ela disse.
 
Preservar estas reações se provaram de alguma utilidade. SP (mãe de MP) relata um acontecimento recente em que durante uma sessão de terapia mostraram duas cartas para sua filha. Perplexa, MP rapidamente entregou uma carta de volta para sua mãe e colocou a outra em sua bolsa, dizendo: “Esta é de um amigo meu e esta outra é sua”. Quando perguntada sobre quem esse amigo era, ela não soube dizer, mas seu nome no entanto provocou uma resposta emocional, que serviu como um poderoso indício contextual.

MP teve seu AVC em outubro de 2012 e desde então ela tem reconstruído sua vida de maneira espantosa. Ela não pode mais lecionar e chora quando fala sobre a falta que sente de ler para as crianças (eu também ao ler isso), mas ela tem um novo trabalho como voluntária na comunidade e até mesmo desenvolveu uma forma de “ler” própria que contorna o seu problema de uma maneira bem esperta.

Quando ela se depara com uma palavra, MP dirige a sua atenção para a primeira letra, que ela não é capaz de reconhecer. Ela então isola aquela letra e começa a desenhar com o dedo cada letra do alfabeto em ordem até encontrar a letra correspondente a que ela está olhando. “Essa é a letra M”, ela declara então vitoriosa, depois de traçar as 12 letras anteriores do alfabeto com seu dedo enquanto decifrava a palavra à sua frente. Três letras depois, ela é capaz de encurtar este exercício com um palpite: “Esta palavra é a mãe (mother em inglês)”, ela anuncia com orgulho.

Há muito mais detalhes no estudo de caso completo, que o site Neurology Journal disponibilizou. É um artigo científico bem acessível e vale cada momento da leitura. No fim, MP é uma prova da força de vontade e determinação com que as pessoas podem encarrar seus problemas, que por vezes parecem intransponíveis, e do quanto ainda temos que aprender sobre este órgão tão misterioso do corpo humano, o cérebro.

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