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NSA perdendo parte da história da Computação, por má vontade

Fitas com aula de Grace Hopper não podem ser liberadas sem checagem pela NSA, que não é obrigada a adquirir equipamento compatível

17/07/2024 às 10:30

A NSA, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, possui um acervo audiovisual (cuidado, PDF) com diversas gravações, boa parte delas confidenciais, que fazem parte do histórico e memória do país. Boa parte do catálogo é bem antigo, ainda gravado em fita, que nunca foi digitalizado e, por isso, arrisca se deteriorar e acabar perdido para sempre.

Um desses conteúdos que pode acabar no limbo, é uma aula de quase 90 minutos ministrada pela contra-almirante da Marinha Grace Hopper (1906–1992), uma das pioneiras da Ciência da Computação, parte do time de programadores originais do Mark I, e desenvolvedora da linguagem de programação FLOW-MATIC, a pedra angular do COBOL.

Grace Hopper em seu escritório, em foto tirada nos anos 1980 (Crédito: Cynthia Johnson/Getty Images)

Grace Hopper em seu escritório, em foto tirada nos anos 1980 (Crédito: Cynthia Johnson/Getty Images)

Acontece que a aula de Hopper, armazenada em duas fitas, exige um tipo de reprodutor que a NSA não tem, e não é obrigada a adquirir; para piorar, a agência não pode liberar o material sem checar seu conteúdo antes, mesmo para fins de restauração, prendendo-o em um loop de má vontade.

NSA e preservação vs. burocracia

Para entender a gravidade da situação, é preciso saber primeiro quem foi Grace Hopper. Embora nascida em uma época em que mulheres não eram levadas a sério em STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), sua curiosidade para entender como as coisas funcionavam a levaram a se formar em 1928 em Física e Matemática pelo Vassar College; em 1930, ela completou seu mestrado, e em 1934, se formou Doutora em Matemática, ambos em Yale.

Quando a Segunda Guerra Mundial estourou, Hopper, que tinha uma carreira sólida como professora no Vassar College, tentou se alistar na Marinha, mas foi rejeitada por ser "velha demais" (em 1940, ela já tinha 34 anos) e magricela (47 kg, muito abaixo do IMC, visto sua altura de 1,67 m), e que seu trabalho original era "essencial para o esforço de guerra". Só em 1943, ela conseguiu uma licença e entrou para o WAVES (Women Accepted for Volunteer Emergency Service), uma divisão de mulheres voluntárias para cuidar dos office duties, enquanto os homens combatiam.

Hopper acabou se formando Tenente e em 1.º lugar da sua turma, e acabou indo parar na divisão do Mark I, em Harvard. Ela criou uma série de conceitos essenciais em Computação até hoje, e definiu parâmetros para o desenvolvimento das linguagens de programação que usamos, em geral em inglês, mas que podem ser adaptadas para qualquer outro idioma, como uma camada de interpretação.

Em linhas gerais, Grace Hopper ensinou os computadores a "falarem" a língua humana.

Durante sua carreira profissional e militar (ela foi aposentada e reconvocada várias vezes, até se retirar em definitivo em 1986, aos 79 anos, tendo violado todos os recordes de idade máxima; depois disso foi trabalhar na área privada, até sua morte em 1992), Hopper deu diversas aulas em tudo que foi canto dos Estados Unidos, de universidades a órgãos governamentais.

É famosa a sua explicação do que é um nanossegundo e um microssegundo, usando pedaços de fio, respectivamente 30 cm e 300 m, para ilustrar a latência entre satélites e a Terra, cada um representa a distância que um sinal elétrico precisa viajar em dado tempo, na velocidade da luz (~300 mil km/s). Um geoestacionário, por exemplo, está a 120 ms distante da Terra, ou 35.786 km; um da StarLink, entre 25 e 60 ms (de 340 a 550 km). A latência é o dobro disso, já que a comunicação é de ida e volta, logo, 240, 50 e 120 ms, na ordem.

Uma das aulas de Hopper foi ministrada em 19 de agosto de 1982 no Fort Meade, o quartel-general da NSA e do 6.º Grupo Criptológico de Guerra da Marinha (CWG-6), e arquivada em duas fitas, TVC 930A e TVC 930B, com respectivamente 48 minutos e 15 segundos, e 40 minutos e 39 segundos de duração, totalizando 88 minutos e 54 segundos de material. Ambas foram armazenadas no acervo da Escola Criptológica Nacional, dedicado à história da criptologia e ligado ao Museu Criptológico Nacional, e é aqui que as coisas começam a se complicar.

Em 2021, o pesquisador Michael Ravnitzky fez uma requisição junto à NSA, através da Lei de Acesso à Informação dos EUA (FOIA), solicitando acesso às fitas, no que a agência respondeu, três anos depois, não ter encontrado "documentos responsivos". Após insistir que o material estava no acervo, e está devidamente relacionada (é possível localizar a aula no PDF anexo no início deste artigo) com o nome Future Possibilities: Data, Hardware, Software and People, veio a resposta:

"De modo a conduzir a busca, nosso departamento entrou em contato com a organização responsável, a fim de verificar se a fita requisitada ainda existe. Fomos informados de que há algumas potencialmente responsivas, mas se encontram em um formato que a NSA não possui os meios para visualizar, ou digitalizar (...).

Sem a capacidade de visualizar o conteúdo das fitas, a NSA não possui os meios para verificar sua responsividade, e a agência não é obrigada a localizar ou adquirir novo maquinário (atual ou descontinuado), de modo a atender a requisição."

Graças a fotos enviadas pela NSA, Ravnitzky constatou que a aula de Grace Hopper foi armazenada em duas fitas de uma polegada da Ampex, e embora houvessem três padrões diferentes no mesmo formato, encontrar alguém que preserve os reprodutores em bom estado (pombas, eu mesmo achei um colecionador com cinco segundos de Google, o dono da peça na imagem abaixo), e esteja disposto a disponibilizá-los a fim de que o material seja digitalizado e preservado, é trivial.

Porém, como todo órgão do governo que se preze, a resposta burocrática e de extrema má vontade da NSA deixa claro que a agência não tem a intenção de mover um dedo para nada; as fitas não podem ser acessadas porque não mais possuem um reprodutor compatível, assim não podem ser liberadas, e ela também não tem a obrigação de adquirir, ou mesmo de pegar emprestado, o maquinário compatível, se não quiser.

E pelo visto, não quer.

Um gravador de uma polegada da Ampex, fabricado nos anos 1960; essa "coisinha" pesa 49 kg (Crédito: LabGuy's World) / nsa

Um gravador de uma polegada da Ampex, fabricado nos anos 1960; essa "coisinha" pesa 49 kg (Crédito: LabGuy's World)

Publicado originalmente no MuckRock, blog de uma organização que ajuda pessoas a requisitarem FOIAs junto ao governo, o artigo atraiu a atenção de gente disposta a fornecer seus equipamentos preservados, a fim de salvar a aula de Grace Hopper, antes que as fitas se deteriorem além do ponto de recuperação, mas segundo seu CEO Michael Morisy, ele não tem certeza se o movimento vai resultar em um ato concreto.

A grande variável da questão, infelizmente, é convencer a NSA de que ela não precisa fazer quase nada, a não ser aceitar o empréstimo de reprodutores para que as fitas sejam verificadas e liberadas, para um processo de digitalização e posterior preservação, desta vez de forma mais durável, mas a agência tem autonomia sobre seu acervo, e detém a palavra final, que até o momento, é "não".

Enquanto isso, uma parte importante da história da Computação, cuja preservação para as próximas gerações seria importante e até crucial, vai lentamente se perdendo no tempo, vítima da má vontade e burocracia.

Fonte: MuckRock, Gizmodo

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