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Shokonsai – preparação para um ensaio

14 anos atrás

Ensaios fotográficos são, a meu ver, uma das grandes expressões fotográficas que podemos ter acesso. Grandes fotógrafos fizeram carreira apenas fazendo esse tipo de produção. O mais interessante é que esses fotógrafos ganham a classificação de artistas e figuram em grandes museus e galerias ao lado de mestres da pintura. Mas, afinal de contas, o que é um ensaio fotográfico? Muitos ao ouvirem essa expressão já se lembram instantaneamente de fotos da Playboy ou outra revista masculina. Mas, a coisa é bem mais profunda. Ensaio fotográfico é uma prática que envolve contar uma história. O objeto a ser retratado pode ser uma festa, um local, uma cultura, um modo de vida, ou simplesmente pessoas em uma determinada situação ou local. O ensaio tem como objeto algo que é importante para o fotógrafo a ponto de ser registrado e guardado para a posteridade.

Aqui não é como na ciência onde ditam que se deve ter a tal da “imparcialidade científica”. Nunca vi um bom ensaio onde o fotógrafo não tivesse uma ligação e empatia com o objeto fotografado. Óbvio que existem os ensaios encomendados, mas esses eu nem gosto de citar. A escolha do objeto fotográfico é uma coisa que vai do íntimo de cada um e pode ser traumático para alguns. Em minha juventude passei por várias crises por achar que não tinha alcançado ainda o meu objeto. Com a idade e a experiência isso tende a passar e, como em um passe de mágica, a resposta surge para cada um. Hoje, assim como em toda a extensão de minha vida na fotografia, eu sei que sou um retratista. Minha missão é contar a história através da expressão das pessoas. Ser uma testemunha de sua existência (que vai continuar existindo em meu registro até mesmo depois que minha própria existência se findar) e mostrar suas histórias, anseios, esperanças e tristezas através de minhas imagens.

Mas, qual a importância e relevância de um ensaio fotográfico? Contar uma história através de uma seqüência de imagens é algo mágico que pode ser usado para celebrar um evento, registrar um momento importante, enaltecer uma beleza natural, denunciar uma injustiça, tornar eterno aquilo que vai se acabar, seja pela mão do homem ou do tempo e, acima de tudo, tornar mais rico o acervo de emoções humanas. Para ter sucesso, um ensaio deve seguir duas regrinhas principais. A primeira é manter uma unidade formal. Como formal podemos determinar uma unidade no estilo fotográfico, no modo de composição e nos parâmetros técnicos. Alguns fotógrafos chegam a usar a mesma câmera e a mesma lente para garantir essa unidade. A segunda, e mais importante, é manter uma unidade temática. É fundamental não se desviar do assunto e de suma importância que o conjunto das imagens passe ao expectador a noção de linha narrativa para poder contar uma história coesa.

Nesse primeiro semestre do ano tive a oportunidade de realizar uma atividade inédita em minha carreira de professor de fotografia: montar um curso cujo objetivo era a realização de um ensaio fotográfico. O evento escolhido para ser retratado foi o Shokonsai (Convite as Almas) que é realizado no Cemitério Japonês de Álvares Machado. Aliás, esse é o único Cemitério Japonês (ohaka) fora do Japão e uma das poucas coisas na região do Oeste Paulista tombada pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turismo do Estado de São Paulo). A escolha se deu por ser uma das poucas manifestações culturais tradicionais da região e por eu já conhecer o local e já ter fotografado o evento por vários anos.  A celebração para os mortos na cultura nipônica é muito diferente da tradição Ocidental. O dia começa com uma cerimônia budista e continua com apresentações de danças, música, Taiko, karaokê e comidas típicas. Uma ótima oportunidade para fotografar quase tudo (pessoas, espetáculos, monumentos, celebrações). Um ótimo exercício fotográfico.

A primeira dificuldade que vi pela frente foi o público alvo do curso. Não esperava que conseguisse muitos alunos para um curso mais longo do que o habitual (programei a oficina para durar 40 horas), afinal de contas o evento era importante e várias aulas práticas temáticas eram necessárias. Para minha surpresa, esse foi o curso que mais tive inscritos, onde o total chegou a 35 participantes. O básico do curso para passar aos alunos a real experiência de se contar uma história através de um ensaio fotográfico segue um pequeno roteiro (que não foi criado por mim, mas é uma metodologia seguida há muito tempo). Em primeiro lugar, temos que encontrar o tema de nossa intervenção (o problema mais complicado de todos). O segundo passo é pesquisar intensamente sobre esse tema até poder montar uma seqüência de imagens em seu planejamento. O terceiro passo, que é derivado do segundo, é encontrar a verdadeira história do seu tema. A verdadeira história do Shokonsai não está nos livros ou jornais, está na conversa com os participantes, os mais velhos, os verdadeiros guardiões da tradição. O quarto passo é construir a sua linha temática com preocupação de capturar as dinâmicas e emoções, para que o observador das imagens possa ser tocado. E por último, porém não menos importante, você deve planejar suas fotos. Um ensaio não se constrói de maneira rápida. Alguns demoram até 10 anos para ter sua história contada de maneira adequada.

Depois de mais de dois meses trabalhando com essa turma, que até rendeu uma intervenção fotográfica em Dracena, nos dirigimos para o Cemitério Japonês no segundo domingo de julho e passamos o dia partilhando alegrias e tristezas da colônia nipônica na região. Um dia que foi muito intenso. Assim como esperado, alguns mais alheios às tradições da Terra do Sol Nascente acharam tudo muito estranho, afinal os cemitérios são lugares tristes em nossa cabeça. Porém, os mais abertos a emoções e sentimentos realmente sentiram o impacto e o poder de tudo aquilo. Alguns até se esqueceram da fotografia e participaram das atividades como convidados e apreciadores. Isso é normal quando você tem empatia com o objeto fotografado. Já aconteceu comigo também, mas eu era o único do grupo preparado para o que iria acontecer por lá. Mas, como esperado, o momento mais poderoso do evento foi a cerimônia das velas, onde às 18:00h uma vela é colocada sobre cada túmulo. Um espetáculo visual que sinto por poucos terem presenciado e registrado.

Avaliação e resultados? Foi muito pouco. O consenso de 100% dos alunos é de que um dia apenas não é o suficiente para registrar todas as facetas do evento. Muitos dizem que vão continuar retornando nos próximos anos e essa é uma oportunidade magnífica de formarmos um coletivo fotográfico para o registro do evento aqui na região (o que vai deixar de ser uma atividade solitária para mim). Mesmo tendo certeza de que apenas raspamos a superfície das oportunidades, a Prefeitura Municipal de Álvares Machado acreditou na proposta e vai bancar uma exposição com essas fotos que deve circular a região. No mais, nossa experiência deve render um DVD, pois também filmamos muita coisa (uma atividade que estou vendo cada vez mais com bons olhos).

Sei que o texto ficou meio longo, mas a mensagem para quem chegou ao final é essa. Às vezes, o seu objeto fotográfico pode estar ao seu lado. Uma bela história que merece ser contada. Você só precisa de vontade, sensibilidade e uma câmera fotográfica.

Abaixo algumas fotos feitas no dia.

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