Carlos Cardoso 9 anos atrás
Fotografia é uma das muitas formas que humanos desenvolveram para representar a realidade, mas a história de que uma foto vale por mil palavras esquece de dizer que assim como essas 1.000 palavras podem ser mentirosas, a imagem também não retrata a realidade, só uma interpretação dela.
Nossa percepção de cores é individual. Mulheres reconhecem mais tonalidades do que homens, e nem falo daquelas mutunas com 4 sensores cromáticos em vez de 3. Jovens escutam em frequências mais altas do que velhos, e todo mundo que já trabalhou em um CPD com mulheres sabem que elas estão 20 ºC abaixo da temperatura ambiente.
Da mesma forma nossas máquinas, nossa tecnologia capta o mundo de formas limitadas. Filme fotográfico comum era sensível a uma faixa de infravermelho, filtros para essa frequência resultavam em imagens diferentes. Há filtros polarizados, que eliminam reflexos “naturais” e muito mais.
As lentes também causam diversas alterações nas imagens. Lembre-se, o que nós achamos que vemos é bem mais do que realmente vemos. Se você focar na palavra “vemos” desta frase, a uma distância de uns 2 palmos do monitor a menos que mova os olhos não conseguirá ler três ou quatro palavras adiante.
Uma lente fotográfica precisa captar e focar muito mais informação, e se não são tão versáteis quanto nossos olhos, são bem melhores cada uma em sua categoria. Uma lente macro permite que a gente faça fotografias assim:
De uma forma bem simplificada quanto maior a distância focal de uma lente menor o ângulo de visão e maior a ampliação. Por isso um binóculo com ampliação de 5x permite que você veja a Lua inteira, mas um telescópio com 200x de ampliação só mostra um pequeno pedaço dela.
Um modelo de lente interessante, cuja teoria vem de Johannes Kepler são as teleobjetivas. Elas usam lentes prismas e espelhos para conseguir uma lente cuja distância focal é maior do que o tamanho físico da lente. É uma trapaça, mas o resultado final é o mesmo e você não precisa de uma lente Kid Bengala.
Além de extrema ampliação uma teleobjetiva tem um efeito colateral interessante: ela comprime a percepção de profundidade da cena. Ela não altera perspectiva como alguns dizem, esta permanece, mas ao contrário dos T-Rex objetos na lente estão mais distantes do que aparentam. Assim:
Essas fotos foram tiradas da mesma distância no mesmo local, apenas trocando a lente.
Você certamente já viu aqueles vídeos e fotos de estradas absurdamente onduladas, verdadeiras montanhas-russas:
Esse efeito é muito utilizado para criação de imagens artificialmente dramáticas:
Em verdade esse bicho passa a mais de 150 m da cerca.
Quando você não tem horizonte para trabalhar a perspectiva, uma teleobjetiva gera resultados ainda mais dramáticos:
Este aqui então é um exagero:
Lindo, não? Pois é. Mas que diabos isso tem a ver com o título?
Eu explico: o mundo INTEIRO está chilicando com este vídeo:
Todos os suspeitos habituais estão “explicando” que o 787 em questão está sem passageiros, bem leve e por isso consegue decolar “praticamente” na vertical. NENHUM dos portais, que deveriam ter PROFISSIONAIS versados em fotografia se deu ao trabalho de pesquisar se realmente um 787 mesmo vazio pode decolar “praticamente na vertical”.
Sequer se tocaram que a câmera estava em um outro avião, e definitivamente não estava voando a 100 m do 787.
Breaking News: não pode. Em condições insanas de decolagem, com um avião sem interior pouco combustível e os pilotos com cabelo cortado e de jejum um 787 pode chegar a um ângulo de ataque de 30 graus. Um tiquinho menos que os 85 graus de uma decolagem “quase vertical”.
Veja um 787-9 em uma decolagem insana de quase 30 graus, ano passado:
Note que quando o câmera alivia no zoom o efeito é bem menos dramático.
A compressão da teleobjetiva é bem evidente aqui, nessa longa exposição noturna:
Você acha mesmo que algum avião comercial decola assim? Bem, se você se informa pelos grandes portais, corre esse risco. Os estagiários pelo visto nunca fizeram uma ponte-aérea.
Pior: além de desconhecerem os efeitos de compressão de uma teleobjetiva os estagiários desconhecem, pelo visto, a existência do Show Aéreo de Paris, já que a internet está cheia de fotos e vídeos dos anos anteriores.
Um muito bom aliás é este de Le Bourget. Nele um A380 decola “verticalmente” de uma das pistas. De qual, não sei, mas a menor das 3 tem 1,8 km de comprimento; a maior, 3 km. O efeito é bem mais acentuado e dramático do que o que virou pauta em tudo que é site.
Aviões são máquinas incríveis, voar sobre o Atlântico em uma noite de lua cheia é um momento em que a gente pensa “deveriam ter mandado um poeta”. Aviões encurtam distâncias, aproximam pessoas e ampliam horizontes, mas nem um SR-71 é rápido o suficiente para fazer gente tacanha se distanciar de seus preconceitos, medos irracionais e deslumbramento raso de bobagens de internet.